O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Desarquivando o Brasil CXCV: Zé Celso e os territórios do teatro e da liberdade

O homem de teatro morreu hoje, e o que posso dizer sobre ele é que, sempre que precisávamos de Zé Celso, José Celso Martinez Corrêa, ele estava lá.
Anos atrás, quando estava em São Paulo a maior ocupação urbana da América Latina, e ela estava sob ameaça de uma ação de reintegração de posse, Zé Celso apareceu para dar solidariedade. Fabio Weintraub fez o convite para ele se apresentar na Ocupação Prestes Maia e publicou fotos desse momento. O Oficina fez lá, em 20 de fevereiro de 2007, uma apresentação baseada em Canudos, com Zé Celso no papel de Antônio Conselheiro, na analogia entre a luta pela terra na peça e na luta pela moradia na cidade. No mesmo dia, o grande geógrafo Aziz Ab'Saber (um apoiador de primeira hora da ocupação e de sua biblioteca, organizada por Severino Manoel de Souza) falou sobre Canudos:

Naquele momento, pensei que a concepção de teatro de Zé Celso passava pela noção de territorialidade, o que lhe permitia participar de forma tão pertinente dos debates sobre o meio urbano e a habitação, e de compreender o tipo de espaço que é o Teatro Oficina - o que era mais uma razão para lutar por ele e pela obra de Lina Bo Bardi. A configuração do Oficina, com o palco como rua e o público naquelas arquibancadas, tantas vezes convocado a delas descer (e quantas vezes os artistas nelas sobem), parece-me acentuar o caráter político do teatro, não só pelos textos encenados, mas pelo próprio espaço da encenação, do rito.
Canudos, por sinal, foi um dos três maiores espetáculos que vi em teatro (salvo o teatro de ópera, que é outro gênero) na vida, e os outros dois não eram brasileiros.
Em outro momento em que pedimos ajuda a Zé Celso foi o lançamento em São Paulo de uma campanha que foi realizada nos idos de 5 de abril de 2014 em prol das terras e direitos indígenas, "Índio É Nós", terminaria com uma mesa com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl e a demógrafa e antropóloga Marta Azevedo. Elas não precisam de apresentação, claro. Eu fiz a mediação.
Kehl teria feito a última fala: ela aproveitou para convidar para o lançamento do livro de memórias de Augusto Boal e aproveitou para "reverenciar" Zé Celso, que estava assistindo. Ele levantou-se e falou, de improviso, entre outras coisas, que "O Shakespeare fala de ser ou não ser, o que é maravilhoso. Mas o Oswald fala de tupy or not tupy no sentido do corpo indígena, que todos humanos têm muito".
Ele tinha 77 anos. Disse que passou a ver o terreno do teatro Oficina como tekohá, mencionou a concepção revolucionária de Lina Bo Bardi e o conflito com Sílvio Santos, e a razão de insistir na luta: "Não é para mim. Eu não podia deixar que [...] aquela terra fechasse".
Marcelo Zelic passou por trás de Zé Celso para falar com Maria Rita Kehl. Logo depois, Zé Celso fez outra surpresa e terminou a fala. Depois disso, chamei-o de "xamã do teatro brasileiro", lembre que, dia 19, faríamos a "Marcha para refundação da cidade de Piratininga" com o pessoal Teatro do Oficina e chamei David Karai Popygua (o mesmo que, nove anos depois, faria o duplo indígena de Peri na ópera O Guarani, de Carlos Gomes), que chamou para os atos do seu povo em 17 e 24 de abril.
Por causa da campanha, nós queríamos em São Paulo fazer um ato com os Guaranis do Jaraguá no 19 de abril e chamamos algumas companhias de teatro para participar. A única que aceitou foi a maior, a mais antiga e a mais jovem de todas com que falamos, o Oficina, por causa do comprometimento de Zé Celso com as causas indígenas. Se bem me lembro, foi ele que deu a ideia de que o ato fosse uma "refundação" da "cidade de Piratininga".
Saímos do Vão do MASP (depois eu leria um ficcionista contemporâneo escrevendo em nome próprio, fora dos livros, que "lugar de índio não é na Paulista"; os Guaranis já fizeram VÁRIOS atos lá), com Letícia Coura puxando com sua forte voz "Tupi or not Tupi" de Surubim Feliciano da Paixão, com uma estrofe nova escrita por Fabio Weintraub, que era um dos organizadores da campanha.
Descemos a Consolação, paramos no Cemitério para reverenciar Oswald de Andrade, fomos até o Parque Augusta, que estava sendo ameaçado de destruição pelo capital imobiliário. A mobilização para conservá-lo durou alguns anos e foi vitoriosa. Lembro de David identificando, dentro do Parque, árvores da Floresta Atlântica.
Boa parte do pessoal ficou lá, onde havia uma programação própria da campanha pelo Parque. Os que restaram seguiram até o Bexiga e o Oficina. João Baptista Lago fez um vídeo com Zé Celso e os outros artistas do Oficina: https://www.youtube.com/watch?v=9MAnqDrIIpM. A performance incluiu os Choros 10 de Villa-Lobos e cantos antropofágicos.
Zé Celso estava bem, cantou e dançou. Também nesse momento víamos sua adesão à causa indígena 
pela questão da luta territorial.
Em 2014, vi sua peça Walmor y Cacilda - O RoboGolpe. Cinquenta anos depois do golpe que derrubou João Goulart, ele via e encenava a atualidade do autoritarismo e a resistência da cultura. Escrevi uma nota naquela ocasião, destacando a questão das terras indígenas:

Zé Celso, sempre antenado com o presente, inclui os índios desde o início da peça. Para ele, e isso é explicitado no "poema primal" que lê perto do final da peça (levanta-se nesse momento; é impactante, pois estava em cadeira de rodas até então), o núcleo do golpe é o "direito absoluto de propriedade": em nome dele, e contra as reformas da base, foi dado o golpe, em nome dele os índios são espoliados de suas terras, e o próprio Oficina está sendo ameaçado (há décadas) pelo grupo de Silvio Santos.

Já no início da peça (no vídeo, depois dos 28 minutos), os atores declamaram "Sem reintegração de posse/ A terra é de Oxóssi". Contra os "assassinos da mata selvagem, nossa mãe geratriz".

Em 2017, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) autorizou que prosseguisse o processo de autorização da construção das torres do Sílvio Santos - um destombamento, de fato. Outro dia mesmo escrevi sobre OUTRO destombamento na região, o que parece que se tornou uma especialidade dos soi-disant órgãos de defesa do patrimônio em São Paulo.
Naquele ano, o Oficina estava remontando O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Em 1967, Zé Celso foi o primeiro a montar essa peça. Como escrevi na época, tanto naquele momento quando na remontagem, com o próprio Renato Borghi voltando meio século depois ao papel de Abelardo I, Oswald era encenado depois de um golpe de Estado. Por causa de seu teatro, o Oficina foi considerado subversivo e foi destacado em panfleto do Ministério da Educação, o conhecido "Como eles agem". Segundo o documento, "é o teatro também utilizado como poderosa arma ideológica e de dissolução dos bons costumes"; mencionam-se os exemplos de O, Calcutá e Hair, e o Oficina como um dos grupos teatrais "acobertados sob o rótulo de 'Arte'", eles "movimentam-se no sentido de disseminar a ideologia comunista através de suas peças":





A peça referida é Na selva das cidades, de Brecht, que o grupo encenou com direção de Zé Celso já em 1969. O documento está no Arquivo Nacional.
A encenação, segundo artigo de Patricia Morales Bertucci, era crítica da ditadura justamente por meio da  apropriação dos materiais urbanos:

[...] foi uma intervenção no espaço simbólico do bairro do Bixiga, pois a arquiteta Lina Bo Bardi se apropriou dos objetos abandonados pelos antigos moradores dos cortiços desocupados pelo Estado, dos restos das demolições e do material de construção da Ligação Leste-Oeste no entorno do Teatro Oficina. Com isso, o grupo transformou a materialidade urbana em linguagem, o que considero como uma forma artística crítica de oposição simbólica da dominação do espaço pela ditadura

Tratava-se de restos produzidos pelas intervenções urbanas do prefeito nomeado pela ditadura, Paulo Maluf. É muito interessante que o Oficina tenha feito desses resíduos recusados do desenvolvimentismo um território de crítica e liberdade.
Na nota que escrevi em 2014, incluí alguns trechos de seu depoimento dado em uma das vezes em que foi preso pela ditadura, em 1978. Uma das prisões anteriores foi a de 1974, ano, como se sabe, da Revolução dos Cravos, que deu fim à ditadura salazarista em Portugal. Zé Celso foi para lá depois da prisão e, naquele país, teve suas atividades e declarações acompanhadas pelos serviços de informação, como soía acontecer com os exilados, banidos e pessoas consideradas perigosas para o regime que estavam no exterior.




Trata-se de um documento confidencial do Ministério da Aeronáutica de 6 de dezembro de 1974, guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Não verifiquei se a citação de Zé Celso no jornal português Diário de Lisboa está correta, mas é muito provável que esteja (deixo para algum eventual leitor eventualmente verificá-la). 

Afirmou ainda que, em PORTUGAL, "a liberdade está na rua" e que essa liberdade deve ser aproveitada para criar um Teatro novo, para se demonstrar "as condições que favorecem o fascismo". 

Um teatro como o Oficina, que faz da rua seu território, é capaz de nela soltar a liberdade para combater o fascismo, ainda um problema no Brasil. Imagino que a Companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, com o viúvo Marcelo Drummond e os outros artistas, continuará a saber fazê-lo.