O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 30 de março de 2016

Desarquivando o Brasil CXXII: Recomendações das Comissões da Verdade e a democracia no Brasil



Organizado pela jornalista Niara de Oliveira, ocorrerá mais um tuitaço #DesarquivandoBR, desta vez com a  exigência do cumprimento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujo relatório foi publicado em dezembro de 2014 (quase totalmente; o volume III só foi formatado no ano seguinte). Para mais informações, sigam o perfil https://twitter.com/desarquivandoBR e o blogue Desarquivando o Brasil.
Quem quiser colaborar, poderá:
  • Escrever textos sobre temas das recomendações da CNV; quem não tiver um blogue ou portal próprio, poderá mandá-lo para o Desarquivando o Brasil; e/ou 
  • Tuitar com os tópicos do cartaz acima; e/ou
  • Trocar a foto do avatar pela de um desaparecido.
As recomendações abrangem pontos que interessam a diversos movimentos sociais. Como se sabe, o Relatório da CNV tem uma seção dedicada apenas a conclusões recomendações no volume I (o capítulo 18), e possui outras no volume II, nos capítulos temáticos sobre violações dos direitos humanos dos povos indígenas e ditadura e homossexualidades. Por motivos que desconheço, as recomendações específicas sobre esses grupos discriminados foram ignoradas por quase toda a imprensa ao tratar do relatório da CNV, e mesmo por pesquisadores: o ISER, no seu importante monitoramento das recomendações, não apenas não as incluiu como não se deu o trabalho de explicar por que, metodologicamente, decidiu ignorar o volume II: http://www.revistavjm.com.br/projeto-mvj/monitorando-a-cnv/as-recomendacoes-da-comissao-nacional-da-verdade-ao-estado-brasileiro-vi-relatorio-de-monitoramento/  
Creio que o silenciamento dessas recomendações mostra que o problema, a discriminação, persiste. E o posterior silenciamento de todas elas, inclusive as do volume I, revela a persistência do legado da ditadura, eis que elas se referem ao enfrentamento do entulho autoritário por meio de, em sua maior parte, reformas legais e administrativas, medidas de verdade e memória, implantação de políticas públicas, em geral medidas de justiça reparativa, mas também de justiça corretiva, com a interpretação da lei de anistia de 1979 segundo a determinação do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, o caso Araguaia.
Trata-se, no seu conjunto, de um programa de "aperfeiçoamento" da democracia no Brasil, ou uma forma de torná-la mais efetiva. Menciono alguns exemplos, para que os leitores dessa nota percebam a variedade de assuntos que podem ser abordados no tuitaço (e, claro, na prática militante e política de todos os dias) e o seu alcance.

Como implantação de políticas públicas para justiça reparativa:
  • "Fortalecimento das políticas públicas de atenção à saúde dos povos indígenas, no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (Sasi-SUS), enquanto um mecanismo de reparação coletiva.";
  • "Regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental forma de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período investigado pela CNV, sobretudo considerando-se os casos de esbulho e subtração territorial aqui relatados, assim como o determinado na Constituição de 1988". 
O governo federal (a proba república de Belo Monte) não está a prestigiar essas medidas, em menosprezo não só aos povos indígenas, como à justiça de transição e ao trabalho da CNV; há ministro (hoje, da defesa; mas já foi dos esportes, e da ciência - afinal, ele nega o aquecimento global - tecnologia e inovação, de tanto sua inteligência e vanguardismo representam o atual governo) que relança o argumento da ditadura de que os índios estariam  sendo usados por "potências mundiais"... O latifúndio e o agrobanditismo, que inclui, além dos crimes ambientais, a grilagem de terras indígenas e o assassinato de índios, agradecem a tal inação oficial.

No campo das reformas institucionais:
Vocês estão vendo algo disso ocorrer? Ou os governos federal e estaduais caminham no sentido oposto das recomendações, mantendo a "democracia das chacinas", na lúcida nomenclatura das Mães de Maio? Lembremos que se trata de singular tipo de democracia em que um governador pode comparar uma chacina a um gol.

Medidas essencialmente legislativas, como
Está havendo ação de legisladores no sentido oposto, o de impedir o combate à discriminação de gênero, como no Recife, ou a grotesca moção dos vereadores de Campinas contra Simone de Beauvoir na prova do ENEM em 2015. Por pudor, não menciono o Congresso Nacional. No tocante à exclusão de civis da jurisdição da Justiça militar, o Ministro do STF Luís Roberto Barroso, em caso das ocupações militares nas favelas do Rio de Janeiro, logrou realizar até mesmo um retrocesso na jurisprudência, negando habeas corpus em caso de desacato na função atípica de policiamento ostensivo pelo Exército.

Entre as que envolvem diretamente o Poder Judiciário, esta pode ser a mais importante:
  • "Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições constitucionais e legais".
Ou seja, a interpretação de lei de anistia de acordo com os parâmetros do direito internacional dos direitos humanos. Muitos dos agentes públicos referidos estão nesta lista da CNV: http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/Capitulo%2016.pdf

Medidas de educação e de memória (o que inclui não homenagear os autores de graves violações de direitos humanos):

Trata-se de medidas que seguem produzindo resistência, e encontram todo tipo de dificuldade em um país que sabota a educação, a ponto de partidos contrários terem se servido do mesmo secretário de educação, notório por sua nulidade técnica e fraqueza teórica. Como fazer educação para direitos humanos em um país em que não se quer que a educação ocorra?

Prosseguimento das investigações, tendo em vista que a CNV somente arranhou algumas das temáticas:
Há muito mais. Reitero que a lista é apenas exemplificativa, e escolhi recomendações que ou não cumpridas, ou aquelas contra que o Estado brasileiro está agindo, como a saúde indígena, seguindo o caminho do sucateamento para o destino da extinção, e a submissão de civis à Justiça Militar, que foi empregada para a repressão política na época do #NãoVaiTerCopa, nas Jornadas de 2013 e em outros momentos.
Algumas Comissões da Verdade não fizeram recomendações, outras criaram diversas. Vale também reivindicar recomendações de outras Comissões. Lembro de algumas da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", não presentes no relatório da CNV:
  • "Que as empresas que contribuíram com a prática de violações aos direitos humanos sejam responsabilizadas como cúmplices de acordo com as leis internacionais";
  • "Pedido oficial de desculpas aos Estados da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai pela cooperação da ditadura militar brasileira com as ditaduras desses Estados, à margem do Direito Internacional";
  • "Que seja valorizada a memória da resistência da população negra contra a ditadura e que sejam homenageados seus militantes";
  • "Responsabilização penal, civil e administrativa, inclusive com perda de cargo, de todos os agentes públicos que, por ação ou omissão, contribuíram para as violações perpetradas pela Ditadura Militar, como juízes, promotores de justiça, agentes policiais e outros, que apesar de cientes das denúncias não se empenharam em garantir a segurança e a vida dos presos, ao não tomar as devidas providências, não solicitando investigação das denúncias";
  • "Revogação do atual Estatuto do Índio e instituição de novo Estatuto, que reconheça a autonomia dos povos indígenas como sujeitos coletivos e sua diversidade cultural" ;
  • "Reformulação do Sistema de Segurança segundo a diretriz da garantia das liberdades políticas, para que cessem a criminalização dos movimentos sociais e as prisões por motivo político";
  • "Recomendamos que a grande imprensa brasileira, a partir das informações contidas neste relatório e no relatório da CNV, faça uma retratação pública, retificando as informações mentirosas oriundas das versões da ditadura sobre os diversos episódios, principalmente a versão dos assassinatos dos mortos e desaparecidos políticos".

Para o tuitaço, inspirados na recomendação 27 do primeiro volume da CNV, isto é, o "Prosseguimento das atividades voltadas à localização, identificação e entrega aos familiares ou pessoas legitimadas, para sepultamento digno, dos restos mortais dos desaparecidos políticos", substituiremos as fotos de nossos avatares pelas imagens de desaparecidos. O capítulo 12 do volume I do Relatório lista os desaparecidos confirmados pela CNV; não são todos, claro, mas estes nomes devem servir: http://www.cnv.gov.br/images/documentos/Capitulo12/Capitulo%2012.pdf
Os desaparecidos da democracia, como Amarildo, podem também ser evocados, ressaltando a atualidade desta campanha.

quinta-feira, 24 de março de 2016

Desarquivando o Brasil CXXI: O Brasil e a última ditadura na Argentina




Neste 24 de março, completam-se quarenta anos do último golpe militar na Argentina. Em razão disso, a campanha DesarquivandoBR, hoje, fará um tuitaço sobre a data. Blogues participarão, e  resolvi me integrar à iniciativa, coordenada pela jornalista Niara de Oliveira, escrevendo uma nota a partir de documentos secretos sobre a Argentina do Conselho de Segurança Nacional brasileiro.
No campo das relações internacionais, Argentina e Brasil tiveram mais de um diferendo durante o século XX. Nos anos 1970, a construção da usina hidrelétrica de Itaipu foi um deles; a Argentina buscou apoio na ONU e na OEA contra os planos de Brasil e Paraguai.
Nos anos 1980, com os primeiros presidentes civis após as ditaduras, Raúl Alfonsín na Argentina e José Sarney no Brasil, houve de fato uma aproximação entre os dois Estados, que teve um marco na Declaração de Iguaçu, de 1985, e que levaria à constituição, na década seguinte do Mercosul.

No entanto, essa aproximação vinha de antes, de quando os dois países eram dominados por ditaduras. Após as negociações do ano anterior, pela primeira vez desde 1935 um chefe de governo brasileiro visitaria a Argentina, em 1980. Na verdade, era apenas a terceira visita de um presidente brasileiro ao país vizinho. As ocasiões ocorreram em 1900, com Campos Salles e, em 1935, com Getúlio Vargas.
Ramiro Saraiva Guerreiro, então Ministro das Relações Exteriores brasileiro, dirigiu ao General Figueiredo uma Informação sobre "Relações Brasil-Argentina. Visita do Senhor Presidente da República à Argentina", de 3 de março de 1980.
Um dos pontos interessantes do documento é a preocupação com a imagem internacional do Brasil, com a visita a uma outra ditadura, cujos graves crimes contra a humanidade já eram conhecidos, especialmente após a visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao país (embora os números do genocídio na Argentina ainda estivessem aquém das estimativas de hoje). A aproximação com o Brasil interessava à Argentina, atingida pelas denúncias das execuções extrajudiciais e dos desaparecimentos forçados, capitaneadas, entre outros, pelas Mães da Praça de Maio. Em dezembro de 1979, elas foram recebidas pelo Papa, e, em janeiro de 1980, ele pediu esclarecimentos ao governo argentino informações sobre os desaparecidos.
O governo brasileiro, apesar de seu próprio histórico de crimes, sentia-se um tanto constrangido com o encontro. É o que lemos em passagem da mencionada Informação:
A opinião pública internacional, dadas suas conhecidas prevenções, poderia conjecturar sobre uma hipotética iniciativa brasileira de estabelecer vinculações com os Governos militares do sul do Continente, revivendo arcabouços míticos como o bloco dos países do Cone Sul ou a organização para a defesa do Atlântico Sul, que encontram receptividade em setores dos demais países da sub-região.

Lendo este momento antológico de cinismo oficial, lembramos que há muito temos diversas provas de que a Operação Condor não tinha nada de mítico, e que o Ministério das Relações Exteriores (MRE) brasileiro participou da internacionalização da repressão política e das graves violações de direitos humanos cometidas pelas ditaduras do Cone Sul.

sexta-feira, 11 de março de 2016

O Direito contra a Filosofia: o pedido de prisão de Lula e as luzes do meio jurídico brasileiro


A longa petição (179 páginas) do Ministério Público do Estado de São Paulo com o pedido de prisão preventiva de um ex-presidente, feita a partir da investigação sobre "núcleo BANCOOP x OAS" que, segundo o MP, "utilizou, espertamente, institutos de direito civil e processual civil para alavancar os atos nucleares de inúmeros estelionatos e lavagem de dinheiro" (p. 81) envolvendo o "tríplex" tão noticiado, tem causado polvorosa por causa do pedido de prisão de Lula e da pecular curiosa cultura filosófica dos membros do MP/SP.
Não sou penalista, razão pela qual quase nunca escrevo sobre temas dessa especialidade (embora de vez em quando me peçam opiniões sobre "mensalão", "trensalão" e outros inumeráveis escândalos do sistema político nacional); quero dizer, no entanto, que Dalmo Dallari me parecer ter razão ao apontar a fragilidade técnica do pedido de prisão. Até o PSDB e o DEM, adversários políticos do PT, discordaram do pedido, o que é, de fato, um efeito inesperado da impressionante técnica jurídica do MP de São Paulo: lograr que inimigos concordem.
A citação de "Nietzche", "Marx e Hegel" poderiam, à primeira vista, denunciar uma cultura de almanaque. A curiosa dupla "Marx e Hegel" foi alçada aos tópicos mais frequentes do twitter. Chegou ao quinto lugar no Brasil.



Talvez os doutos membros do MP não conheçam tão bem o alemão e pronunciem Hegel e Engels da mesma forma, o que pode ter levado à confusão. Cito, porém, a peça:
101) De proêmio, apresentamos passagem da obra Assim falou Zaratustra:

“Nunca houve um Super-homem. Tenho visto a nu todos os homens, o maior e o menor.
Parecem-se ainda demais uns com os outros: até o maior era demasiado humano.”
102) Fundamental a referência à obra do filósofo alemão Friedrich Nietzche [sic], pois de forma muito racional estabelece que todos os seres humanos se encontram em um mesmo plano, premissa maior que norteará toda a construção do pedido de prisão preventiva do denunciado LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, qual seja, a do princípio constitucional da isonomia. [p. 166]
Ou seja, caiu o pedido, pois a "premissa maior" (será que eles acham que o raciocínio jurídico é um silogismo? isso é tão velho...) é falsa. Nietzsche, que trata mil vezes das "diferentes" "raças" humanas (ele é bem século XIX nisso) e argumenta como a raça judaica é mais forte do que a alemã, diferencia todo momento entre os "fortes" e os "fracos", e acusa o cristianismo, que ele detesta, por sua compaixão pelos fracos. Nietzsche é bastante contraditório, mas fundamentar o "princípio constitucional da isonomia" nele não dá. Mesmo que os doutos membros do MP soubessem escrever-lhe o nome.
A citação, ademais, possui outro sentido: não uma feliz constatação da igualdade entre os homens (Nietzsche não acreditava nisso, por sinal), mas bem outra coisa: é a fala da "populaça", que Nietzsche desprezava, contra os homens superiores.

A desleitura filosófica tem como referência uma edição de Assim falou Zaratustra pela Martin Claret. Denise Bottmann mostra a inacreditável semelhança da tradução feita não se sabe bem por quem (dois nomes se revezam para esse livro nas diferentes edições da M. Claret) com a de José Mendes de Souza: http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2011/11/zaratustra-martin-claret.html
Esse tipo de bibliografia, que merecia uma investigação, é a promovida pelo MP/SP. Atitude lamentável, e não só em termos intelectuais.
Da página 168 em diante, o MP/SP fundamenta o pedido aparentemente no fato de que não gosta de Lula, pois as razões são fracas: ele ter dado entrevista coletiva, ter conseguido medida liminar administrativa no Conselho Nacional do Ministério Público (para o MP/SP, essa medida ou o próprio Conselho eram ilícitos?), o telefonema flagrado involuntariamente por Jandira Feghali, ele não querer ser preso (motivo para prender quase toda humanidade) etc.
129) As atuais condutas do denunciado LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, que outrora chegou a emocionar o país ao tomar posse como Presidente da República em janeiro de 2003 (“o primeiro torneiro mecânico” a fazê-lo de forma honrosa e democrática), certamente deixariam Marx e Hegel envergonhados.
A dupla Marx e Hegel é engraçada. No entanto, mesmo que os doutos membros do MP soubessem o nome do segundo violino, a citação é absurda. Creio que Lula foi sincero quando disse a Mino Carta "você sabe que eu nunca fui de esquerda". Nos tempos de ditadura militar, Lula fazia diferenças entre os "trabalhadores", que ele liderava, e os "comunistas", cujas causas eram outras. Que esses grupos (e mais outros) tenham se unido na fundação do PT só anunciava que as disputas de poder nesse partido seriam fortes - e levaram a expulsão de alguns de seus membros, ainda durante a ditadura, e a criação de outro partido, já no governo de Lula, o PSOL.
Se alguma sombra de socialismo tivesse ainda restado, as gestões de Lula e Dilma a teriam apagado de vez. Somente gente desinformada e/ou burra e/ou louca e/ou com morte cerebral ocorrida na época da Guerra Fria poderia ver nesses governos em prol da especulação financeira (nunca os bancos ganharam tanto, os governistas adoram propagandear), do agronegócio, contrários aos índios, quilombolas e extrativistas, uma "ditadura comunista". Aliás, uma estranha ditadura esta, de um partido que já teve diversos nomes presos...
Se Marx e Engels ficariam envergonhados seria com a política de conciliação de classes do lulismo, que está fazendo água sem parar. De qualquer forma, isso também não seria razão para prender ninguém, ao contrário do que o MP/SP parece pretender.
Li gente escrevendo que a peculiar cultura filosófica do MP/SP decorre da falta de filosofia nos concursos jurídicos. Vi um amigo falar que isso é a falta de filosofia nos cursos de Direito. Em certo sentido, acho que é bem o contrário: uma petição como aquela é representativa da introdução de filosofia nos cursos jurídicos. E também nos concursos. Depois de o MEC ter previsto, nas diretrizes curriculares do Direito, disciplinas como antropologia e filosofia, as editoras viram, claro, uma oportunidade de lucrar com mais livros didáticos. Porém, como introduzir essas disciplinas se quase ninguém do Direito fazia pesquisa nessas áreas? Se quase ninguém pesquisava, como achar professores para lecionar, senão em outras áreas?
Seria belo ver vários grupos de pesquisa com membros da filosofia e do direito trocando experiência e trabalhando juntos. Essa é a exceção, infelizmente. Se, em regra quase ninguém estudou a Teoria pura do Direito de Kelsen, apresentada por tantos pós-graduandos que tampouco a leram como a responsável por todo o conservadorismo do meio jurídico brasileiro, a noção de pureza, se entendida (fora dos parâmetros kelsenianos) como endogamia e corporativismo, é de fato interessante para caracterizar esse meio.
Na chamada educação jurídica, esse isolamento teórico das faculdades de direito (que, às vezes, se manifesta na exigência de diploma em direito para matérias como história, ciência política etc.) tem gerado as versões paralelas da filosofia que somente são encontradas nessas faculdades - em qualquer outro lugar, tais versões se dissolvem, não suportam o contato com o ar ou, simplesmente, com o pensamento. Cursos sobre Aristóteles que não citam o filósofo, versões de Hannah Arendt como se ela tivesse sido uma historiadora do direito internacional são exemplos desta subliteratura que denota como o meio jurídico é hostil à reflexão, e como, entre o prestígio e a inteligência, ele sacrifica sempre esta última.
Em outra nota deste blogue, escrevi sobre uma obra de "formação humanística" para concursos jurídicos e expliquei os princípios que animavam esse tipo de literatura:
  • De preferência, ignorar a literatura primária; se vamos tratar de Platão, para que citar alguma obra de Platão? Assumamos que o que esses autores escrevem, no fundo, não interessa, e vamos direto para os resumos.
  • Em relação aos comentadores, escolher também obras de divulgação, inclusive coleções de bolso - se forem sobre outro assunto, não há problema, tudo seria uma coisa só.
  • Escolher pouquíssimos comentadores, afinal, tudo teria um sentido só, não existiriam divergências teóricas na recepção, por exemplo, de Montesquieu.
  • Dar preferência a autores com formação em direito; afinal, eles dominariam todos os assuntos; seria tolo achar que algum filósofo teria algo a dizer sobre Hobbes.
  • Citar apenas obras publicadas em português, pois nada de relevante se escreveu em outra língua (ao menos antes da tradução; faz-se uma pequena exceção para o espanhol, que possui a virtude de ser bem parecido).


Há livros para graduação que seguem tais diretrizes. Podem-se ler em cursos publicados de filosofia do direito, escritos por autores brasileiros, coisas deste tipo: "Heidegger jamais publicou comentários sobre a  filosofia de Karl Marx, de quem foi contemporâneo."; "O Direito, de acordo com Karl Marx, deveria ser teoria fundamental para equacionar politicamente a sociedade conforme um modelo justo de distribuição de riquezas."; "Em 1983, [Habermas] reassumiu cátedra na Universidade de Frankfurt até aposentar-se, em 1994. Morreu em 2010."
Ou seja, considerar contemporâneos filósofos de séculos diferentes, achar que Marx dizia que o Direito (!!!) levaria à "justa distribuição de riquezas" e matar um filósofo que continua vivo no momento em que escrevo estas notas são ensinamentos que as maiores editoras jurídicas no Brasil (neste caso, a Saraiva) publicam na qualidade de livro didático. Ensinamentos provavelmente úteis para chegar às instâncias de poder no meio jurídico brasileiro.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Poesia e tremor II: as Tróiades de Guilherme Gontijo Flores e o poeta como precipício

Escrevi há pouco tempo algumas considerações sobre o último livro de poesia de Leonardo Gandolfi, Escala Richter, e afirmei que "poetas contemporâneos de países e continentes diferentes, mas afetados por crises com mais de uma semelhança (políticas de 'austeridade', ascensão da direita, ataque aos serviços públicos, a catástrofe como princípio de governo) encontrem essa metáfora geológica para o que os aflige": o tremor de terra.
Outro caso sísmico, bem diverso do anterior, foi o livro/sítio Tróiades: remix para o próximo milênio, de Guilherme Gontijo Flores. O livro impresso, publicado pela Patuá em 2015, vem com 25 cartões que, numa face, apresentam o poema e, noutra, a imagem correspondente. Nas duas versões, temos seis temores/tremores diferentes; quase um quarto dos poemas do conjunto recebe este título:
Temor/Tremor

Trêmulos trêmulos
membros
levem meus rastros
para o servil
dia desta vida
O outro título com seis poemas é "Puerilia"; tratam, claro, de jovens ou crianças, mas sempre em relação à morte. Tanto no livro quanto no sítio as fotografias, escolhidas do Wikicommons, referem-se a massacres, guerra, morte (incluindo arte funerária), escravidão, tortura, sombras inquietantes, exatamente como os poemas. A música, que só pode ser ouvida no sítio na internet, foi retirada da mesma fonte. "Genocide - Symphonic Holocaust" (eu a desconhecia) foi escrita por Maurizio Bianchi, que compõe com ruídos. Embora curta, pode-se ouvi-la fascinado por horas, trata-se do tipo de peça que não tem começo ou fim determinados.
No tocante aos poemas, todos buscam "A coisa mais bela", título de dois dos poemas: "Feliz de quem morre em guerra/ e vê tudo consigo con/ sumir-se". A visão que nos oferecem revela as coisas em ruína e dilaceração.
Temor/Temor

Nosso presente por você

arrancar os cabelos
um golpe sobre o peito

que resta

Creio que muitos não terão reconhecido, nas citações, o método de composição; transcrevo o início e o fim de "Tombeau", e será logo descoberto:
Um anjo
tenta se afastar daquilo que olha
esbulhado boquiaberto
e de amplas asas

[...]

Preferia pousar
acordar os mortos
remontar os fragmentos
porém do paraíso sopra
um vendaval
que enlaça suas asas
e ele não sabe mais fechá-las
arrastado ao futuro
ele vai de costas
e a pilha de ruínas à sua frente
alcança o céu
Falta a tempestade do progresso, mas é fácil de ver que o poema vem diretamente do nono aforismo de "Sobre o conceito da história", de Walter Benjamin. Guilherme Gontijo Flores, que já é um dos maiores tradutores brasileiros (recomendo, além de seu Propércio, o que publica no blogue Escamandro), escreveu a partir de três tragédias, Hecuba e Troiades de Eurípides e Troades de Sêneca: trechos dessas peças "foram recortados, traduzidos livremente e remanejados e remontados", segundo o autor. O único texto posterior é o de Benjamin.
As indicações do colofão vão dos "3200 anos do incêndio de Troia" até "11 anos de conflito em Darfur", passando pelos "522 anos de extermínio indígena nas Américas", resumindo todas essas datas no "tempo indeterminado da escravização do homem pelo homem."
Que temporalidade se manifesta nesta obra? A guerra seria tão atemporal quanto um fenômeno geológico, o terremoto? Ademais, que tipo de atualidade teria um livro em que quase todos os textos têm fonte na Antiguidade e, nesse aspecto, entram em choque com boa parte das fotos?