O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quinta-feira, 24 de março de 2016

Desarquivando o Brasil CXXI: O Brasil e a última ditadura na Argentina




Neste 24 de março, completam-se quarenta anos do último golpe militar na Argentina. Em razão disso, a campanha DesarquivandoBR, hoje, fará um tuitaço sobre a data. Blogues participarão, e  resolvi me integrar à iniciativa, coordenada pela jornalista Niara de Oliveira, escrevendo uma nota a partir de documentos secretos sobre a Argentina do Conselho de Segurança Nacional brasileiro.
No campo das relações internacionais, Argentina e Brasil tiveram mais de um diferendo durante o século XX. Nos anos 1970, a construção da usina hidrelétrica de Itaipu foi um deles; a Argentina buscou apoio na ONU e na OEA contra os planos de Brasil e Paraguai.
Nos anos 1980, com os primeiros presidentes civis após as ditaduras, Raúl Alfonsín na Argentina e José Sarney no Brasil, houve de fato uma aproximação entre os dois Estados, que teve um marco na Declaração de Iguaçu, de 1985, e que levaria à constituição, na década seguinte do Mercosul.

No entanto, essa aproximação vinha de antes, de quando os dois países eram dominados por ditaduras. Após as negociações do ano anterior, pela primeira vez desde 1935 um chefe de governo brasileiro visitaria a Argentina, em 1980. Na verdade, era apenas a terceira visita de um presidente brasileiro ao país vizinho. As ocasiões ocorreram em 1900, com Campos Salles e, em 1935, com Getúlio Vargas.
Ramiro Saraiva Guerreiro, então Ministro das Relações Exteriores brasileiro, dirigiu ao General Figueiredo uma Informação sobre "Relações Brasil-Argentina. Visita do Senhor Presidente da República à Argentina", de 3 de março de 1980.
Um dos pontos interessantes do documento é a preocupação com a imagem internacional do Brasil, com a visita a uma outra ditadura, cujos graves crimes contra a humanidade já eram conhecidos, especialmente após a visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao país (embora os números do genocídio na Argentina ainda estivessem aquém das estimativas de hoje). A aproximação com o Brasil interessava à Argentina, atingida pelas denúncias das execuções extrajudiciais e dos desaparecimentos forçados, capitaneadas, entre outros, pelas Mães da Praça de Maio. Em dezembro de 1979, elas foram recebidas pelo Papa, e, em janeiro de 1980, ele pediu esclarecimentos ao governo argentino informações sobre os desaparecidos.
O governo brasileiro, apesar de seu próprio histórico de crimes, sentia-se um tanto constrangido com o encontro. É o que lemos em passagem da mencionada Informação:
A opinião pública internacional, dadas suas conhecidas prevenções, poderia conjecturar sobre uma hipotética iniciativa brasileira de estabelecer vinculações com os Governos militares do sul do Continente, revivendo arcabouços míticos como o bloco dos países do Cone Sul ou a organização para a defesa do Atlântico Sul, que encontram receptividade em setores dos demais países da sub-região.

Lendo este momento antológico de cinismo oficial, lembramos que há muito temos diversas provas de que a Operação Condor não tinha nada de mítico, e que o Ministério das Relações Exteriores (MRE) brasileiro participou da internacionalização da repressão política e das graves violações de direitos humanos cometidas pelas ditaduras do Cone Sul.



O encontro entre Figueiredo e Videla, dois autores de graves violações de direitos humanos, selou a paz no tocante a Itaipu. Nesse subgênero das Relações Internacionais que é o da literatura escrita por diplomatas, é interessante ler como o contexto das ditaduras, das denúncias internacionais e da luta pela democracia é em muitas vezes ignorado por esse tipo de autor. Sérgio Danese, por exemplo, no seu Diplomacia presidencial (Rio de Janeiro: Topbooks, 1999) fala de "tom de emoção e recordação" que "permeou toda a visita" (que emoções viviam os presos políticos?) e nem mesmo menciona a palavra ditadura ao tratar do evento.
Neste estudo, "Direitos Humanos", parte das "Informações sobre a Argentina" para a visita de 1980, vê-se que o governo brasileiro sabia bem disso. Citam-se as estimativas da Associação para Promoção de Direitos Humanos, de 6500 desaparecidos, da Ordem dos Advogados de Nova Iorque, 10 mil, e da Anistia Internacional, entre 15 e 20 mil, que, enfim, era a que estava mais próxima da realidade e que o MRE considera, em outro ponto, "provável exagero".
Ademais, o governo brasileiro estava a par das críticas feitas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) contra a Argentina, que se isolava, recebendo críticas também dos Estados Unidos, que estavam sob a administração de Carter. Segundo Marcos Novaro e Vicente Palermo, "A partir de la visita CIDH, todo fue peor porque el mundo occidental apareció uniformemente enfrentado al ser nacional" (Historia Argentina: La dictadura militar 1976/1983.Buenos Aires: Paidós, 2006)

Outro ponto da avaliação do governo brasileiro sobre a Argentina foi o de que "a partir do advento do regime de 24 de março daquele ano" (1976) que o governo argentino resolveu "dialogar diretamente" sobre Itaipu, na seção sobre "Relações Brasil-Argentina".
A inventividade diplomática para a a elaboração de eufemismos revela-se em momentos como esse, em que uma ditadura nomeia outra. A avaliação estava correta, e a aliança entre os regimes, oportuna sob o ponto de vista da repressão continental, de fato ocorreu.
Nesses documentos, no entanto, não se menciona a colaboração para a prisão e desaparecimento de opositores.

O colapso da ditadura argentina, precipitado pela fragorosa derrota na Guerra das Malvinas, fez com que esse país tivesse um presidente civil antes do Brasil.
Alguns documentos revelam a preocupação da ditadura brasileira do impacto da democratização da Argentina sobre o Brasil: ela levaria ao fortalecimento pelas eleições diretas para presidência, indesejado pelos militares, que não queriam deixar de controlar a transição política? 

Neste Informe do Ministério da Marinha-Estado Maior da Armada, sobre o "Desempenho inicial do governo Alfonsín", reproduz-se a opinião do ex-embaixador da Argentina no Brasil Oscar Camilión (ele morreu neste ano; foi ministro da defesa de Menem e com ele condenado por contrabando de armas) de que a "defesa contra as diretas tornou-se mais dura diante dos fatos acontecidos na ARGENTINA, cuja repetição no BRASIL foi considerada indesejável por setores dotados de muita força." Tais setores não são nomeados, mas certamente a cúpula militar estava entre eles.
Alguns documentos sigilosos do governo brasileiro, chefiado nominalmente por um civil mas tutelado pelos militares, revelam a desconfiança, ainda em 1985, em relação ao novo regime na Argentina.
Cito agora um documento do Conselho de Segurança Nacional, "Argentina. Síntese de Conjuntura", de dezembro daquele ano.

O Conselho de Segurança Nacional brasileiro via "com preocupação" os resultados das eleições de 3 de novembro de 1985, por causa da votação que a esquerda recebeu. Via-se "endoutrinamento marxista" nos jovens militares e nas universidades, e "infiltração da esquerda nos sindicatos", beneficiando o peronismo.
O documento, exatamente como os que a ditadura militar brasileira produzia, menciona "desaparecidos" entre aspas. O governo brasileiro sempre contestou que cometesse os desaparecimentos forçados e, em regra, sempre atribuiu esse crime aos próprios grupos de esquerda ou às próprias vítimas.
O governo brasileiro começaria a reconhecer oficialmente sua responsabilidade em relação aos desaparecidos somente com o presidente Fernando Henrique Cardoso, o que levou à aprovação da lei n. 9140, de 4 de dezembro de 1995, que "Reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979".

Dez anos antes disso, estava o Conselho de Segurança Nacional do governo Sarney avaliando que a "questão dos 'desaparecidos' [...] constituiu-se num símbolo da violação dos direitos humanos". Seguindo a cartilha da doutrina de segurança nacional, que não vê outra natureza nas denúncias de direitos humanos senão a de criar conflitos e hostilidades contra o governo (que se identifica com o próprio Estado), o documento logo afirma que o "símbolo" foi "habilmente utilizado, inclusive pelo próprio Governo para alardear a plena urgência das liberdades democráticas na ARGENTINA".
Não era uma questão urgente? O que importa é que isso "na prática vem permitindo a livre e ostensiva atuação de diversos grupos ativistas com suas manifestações contestatórias dirigidas contra governos de outros países".
Além da histórica oposição à liberdade de expressão, vemos nesse ponto do documento do CSN brasileiro outro problema: a crítica da esquerda argentina a ditaduras e a governos tutelados pelas Forças Armadas, como era o caso do Brasil, que ainda não tinha nova Constituição, tampouco uma assembleia constituinte já eleita, e cuja "Nova república" tinha incontáveis pontos de continuidade com o regime anterior.
Há outras críticas do CSN (que seria extinto pela Constituição de 1988), que não mencionarei para não abusar da paciência de quem quiser ler esta nota. Muitas delas abordam o tratamento que o governo Alfonsín dava aos militares, especialmente os julgamentos dos autores de graves violações de direitos humanos.

Menciono outra crítica, do Adido do Exército junto à Embaixada Brasileira na Argentina, o Coronel Areas, em  16 de outubro de1984. Videla estava preso (saudado, segundo o documento, pelos carcereiros e pelos agentes da polícia federal presentes), bem como o Almirante Emilio Massera.
No entanto, prisioneiros da esquerda também estavam lá, e Mario Fibernich, líder Montonero preso no Brasil, seria levado ao mesmo presídio. "O governo vai criar uma situação grotesca mantendo presos no mesmo lugar os mais graduados chefes militares do processo que derrotou os mais graduados e influentes chefes do terrorismo subversivo."
Mais adiante, afirma-se que o então chefe da Secretaría de Inteligencia del Estado (SIDE), Roberto Pena teria dito ao Embaixador brasileiro deveria cortar algumas cabeças do governo, inclusive "a dele próprio".
Sabemos da longa história que levou às leis de anistia e, finalmente, à retomada dos processos contra os genocidas no século XXI.
Os ditadores encontraram-se em 1980 e tiveram destinos muito diferentes: Videla foi julgado, condenado e morreu preso; Figueiredo, o ditador brasileiro, morreu em paz, intocado. Os julgamentos penais contra os genocidas jamais ocorreram no Brasil - aqui, os genocidas podem descansar tranquilos e condecorados. Daqui do Brasil, portanto, temos razões especiais para alegrar-nos e reconhecer a vitória das Abuelas, das Madres, dos H.I.J.O.S., do povo argentino, enfim, neste 40 anos de militância.

Nota: Todos os documentos referidos podem ser acessados por meio do Portal Memórias Reveladas do governo federal brasileiro.

Nota 2: Muitos participaram do tuitaço, e alguns autores lograram escrever textos especialmente para o evento:
Bissotto escreveu sobre episódio da repressão na Argentina, em que a a luz elétrica foi apagada para captura de militantes políticos; Soca abordou, em longo artigo, corpos não identificados de vítimas da política de extermínio conhecida como "voos da morte"; Domeneck tratou da poesia revelada pela coleção Los detectives salvajes, coordenada pelo poeta argentino Julián Axat, que já recuperou obras de vários autores que foram vítimas do terror de Estado.

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