O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

O dia da consciência negra e Não adianta morrer, de Francisco Maciel


Neste 20 de novembro de 2018, dia da consciência negra, Francisco Maciel volta a falar, às 15:30h, na FlinkSampa 2018, a  6ª Festa de Conhecimento, Literatura e Cultura Negra. O evento desta vez homenageia Conceição Evaristo e sua programação, que inclui eventos específicos para o público infantojuvenil e atividades esportivas pode ser lida através desta ligação: http://flinksampa.com.br/
Dia 19, ele falou na mesa "Saber literário: práticas e saberes no mundo da escrita", com Renato Nogueira e António Quino e mediação do curador da Festa, Tom Farias.
Não adianta morrer (São Paulo: Estação Liberdade, 2017) é um livro excepcional. Ele nasceu, como se pode ler na coluna de Rodrigo Casarin, em outubro de 2017, da "chuva de cinzas humanas [que] caiu sobre a Maia de Lacerda. Vinham de corpos de jovens incinerados numa caçamba de lixo". Essa visão macabra no Rio de Janeiro, no bairro do Estácio, aparece mais de uma vez, como nos capítulos 'Pedreira" e "Santa maldição". Álvaro Costa e Silva, em resenha para a Folha de S.Paulo, "Obra de ficção humaniza frios números da barbárie", destacou que a "obra nada tem de autorreferente. Está na contramão da literatura produzida atualmente no Brasil. Os personagens —Guile Xangô, Vavau, Beleco, as Comadres, os Quatro Mandelas— existem além do próprio umbigo."
O livro confirma a independência literária de Francisco Maciel, que não integra nenhuma turma de escritores contemporâneos brasileiros, inclusive de outros nomes da literatura negra brasileira. A diversidade das histórias - praticamente todo capítulo pode ser lido como um conto - acaba por formar um todo na recorrência das situações e no retorno dos personagens. O mosaico nunca se fecha perfeitamente, o que é adequado para a complexidade das situações, e para ações que tanto já se esgotaram (na ideia de que a cidade já está morta) quanto se repetem no futuro (como no capítulo "Tigre Xangô 2100").
Este romance ganha seu caráter paradoxalmente em se apresentar como uma espécie de cidade, que abriga outros gêneros, como o conto, a poesia, o samba enredo, o ensaio e até mesmo o libreto de ópera.
Paul Celan é um dos autores citados nesse romance (assim como no anterior, O primeiro dia do ano da peste), especialmente o famoso poema "Todesfuge", sobre campos de concentração, com o "túmulo nos ares" escavado pelas próprias vítimas; diz Celan, "a morte é um mestre da Alemanha".
No Rio de Janeiro, as cinzas dos mortos também são entregues aos ares. Em outro capítulo de Não adianta morrer, experiências da Segunda Guerra Mundial são contadas por um antigo combatente, João Amorim; sobre os alemães, ele conta a Rafa que "achavam que os brasileiros eram bárbaros e que os nossos soldados negros eram canibais. Deviam achar o mesmo dos negros americanos." O jovem, que é um assassino frio (como se vê desde o capítulo "O caderno de notas da Sibila"), faz uma bravata, conta que tomaria o Monte Castelo "com o pé nas costas", "juntando todas as favelas". Amorim concorda, mas replica que "vocês são os alemães"...
Uma cidade que abriga imaginariamente uma guerra mundial? Casarin e Costa e Silva ressaltam a presença da violência no romance. Eu diria mais: a retórica da guerra atravessa-o, bem como ao lamento dos mortos, cada vez maior, e inútil, pois morrer é inútil para cessar o massacre - que seria, no Rio de Janeiro, "A vida apenas, sem mistificação" (o conhecido poema de Drummond, sem este verso, é citado na segunda epígrafe do romance, após um trecho de Memórias póstumas de Brás Cubas)?
A retórica da guerra, em continuidade da doutrina da segurança nacional, volta-se preferencialmente contra o chamado "inimigo interno" que, neste livro, são especialmente os negros e os moradores de favelas.
Os exemplos dessa retórica e do extermínio proliferam em todos os capítulos. Basta aqui citar um dos mais inesperados para quem não conhece a ficção de Francisco Maciel: Josefina, a ratinha cantora de Kafka, torna-se objeto de um plano de opereta, ou "popereta". No libreto planejado, "Ela é negra [...]/ Ela é a única/ E com seu desaparecimento/ Também desaparecerá/ A música". Enquanto isso, 'Os corpos estão queimando/ Na caçamba de lixo, entre pneus,/ E as cinzas caem sobre os becos" ("Josefina Popereta").
O 20 de novembro também é a consciência dessa chuva, que não cessou de cair. A recente ascensão de políticos racistas pode torná-la tempestade.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Desarquivando o Brasil CXLIX: A memória, esse país canibal: lançamento de O amor, esse obstáculo, de Micheliny Verunschk




Hoje, em São Paulo, sairá o último volume da trilogia de romances de Micheliny Verunschk sobre a ditadura militar brasileira: O amor, esse obstáculo (São Paulo: Patuá, 2018). Deixo aqui o início da apresentação que fiz para este livro, que cruza as dimensões das memórias individuais e coletivas. Um dos traços originais do livro é o fato de sua trama se passar já depois da atuação da Comissão Nacional da Verdade. Ele busca explorar o campo que a CNV deixou por descobrir, e cuja atualidade se mostrou dramaticamente tão viva com as eleições de 2018, na vitória, inclusive para presidência da república, de candidatos negacionistas da história e incentivadores de crimes contra a humanidade. No livro, a personagem com Alzheimer é apresentada como símbolo da memória do país...



A memória, esse país canibal: a trilogia de Micheliny Verunschk sobre a ditadura militar brasileira


Depois dos romances Aqui, no coração do inferno (Patuá, 2016) e O peso do coração de um homem (Patuá, 2017), Micheliny Verunschk completa sua trilogia sobre a ditadura militar com O amor, esse obstáculo.
Os personagens do rapaz canibal e da filha do delegado torturador, que haviam se encontrado na imaginária cidade de Santana do Mato Verde na primeira parte da trilogia, voltam a cruzar-se neste volume, que representa mais um exemplo do novo ciclo de memória cultural na literatura brasileira contemporânea.
Neste último romance, Laura, a personagem principal, tenta encontrar a verdade sobre a própria história familiar, especialmente no tocante aos crimes cometidos por seu pai, um torturador que atuou para a ditadura sob o codinome de Capitão Garrote.
Além da tortura e das execuções extrajudiciais de caráter diretamente político, ela tenta entender a violência doméstica que ele produziu, o que pode ter incluído tortura e feminicídio avant la lettre, e que leva à ideia do amor como obstáculo, escolhida como título do livro. A repressão política e a violência de gênero cruzam-se de maneira complexa em O amor, esse obstáculo; elas podem aliar-se, mas também podem ser cometidas de maneira autônoma, e ambas sobreviveram à ditadura.
O peso do coração de um homem teve Cristóvão como centro da narrativa. Agora, Laura volta a ser narradora. O livro inicia-se com a notícia da morte do pai. Ele é encontrado enforcado, o que suscita suspeitas: cometera suicídio, ou fora assassinado por haver comparecido à Comissão Nacional da Verdade para depor sobre as graves violações de direitos humanos por ele perpetradas durante a ditadura? O episódio não deixa de evocar o assassinato de Paulo Malhães pouco depois de seus depoimentos à Comissão da Verdade do Rio e à Nacional.
As providências do enterro do Capitão Garrote são tomadas pelo clube militar, que ele frequentava.
A protagonista decide retornar à cidade natal para recuperar o seu passado, que se confunde, sob certos aspectos, com a história recente do país. Confrontada com as várias dificuldades na tentativa de esclarecer os crimes cometidos pelo pai, desabafa: “Mas o que eu gostaria mesmo é que o mar se levantasse e devolvesse os mortos que foram atirados do céu, que cada um dos desaparecidos nos voos da morte retornasse com seu nome, suas histórias, seus dedos refeitos em coral e sal a apontar os culpados”. Laura sabe, no entanto, da impossibilidade desse resgate.
No romance, conta-se também o reencontro de Laura com Cristóvão, o rapaz canibal, no Rio de Janeiro, o que gera mais desdobramentos à narrativa. Nos volumes anteriores da trilogia, vimos que o pai dela o havia prendido em casa para evitar que ele fosse linchado, e que ela escolhera perder a virgindade com ele. Agora, essa história se torna mais evidentemente alegórica do país: “O fato cru e sem retoques é que papai tornara a nossa casa uma casa-canibal”.
A história é contada, por conseguinte, a partir do prisma da memória e da busca da verdade.
Por essa razão, há algo muito significativo em comum entre esta trilogia e o primeiro romance de Verunschk, Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, 2014). No livro anterior, também nos deparamos com a exploração da memória e a busca pela verdade, além da tematização da violência contra a mulher.
Nesta última parte da trilogia, permanece o traço estilístico de usar citações como sequências da narrativa; um dos capítulos é um poema de Juan Gelman, escritor argentino que foi vítima, com sua família, da ditadura de seu país e da uruguaia.
Nesta apresentação, não contaremos o final do livro; fazemos notar, no entanto, que o desfecho deixa ainda elementos a resolver, assim como o processo histórico que o país hoje atravessa no tocante às continuidades da ditadura.
Da personagem da madrasta, que perdeu a memória por causa do Alzheimer, temos uma revelação importante da história. Ela repetidamente é apresentada a Laura, e dela se esquece, o que leva a este comentário: “Assim a memória individual, assim a história de um país”.
No século XXI, teria começado, segundo Rebecca J. Atencio (em Memory’s Turn: Reckoning with Dictatorship in Brazil, The University of Wisconsin Press, 2014), um novo ciclo de memória cultural na literatura brasileira contemporânea: depois de os temas relativos à ditadura militar terem sido postos de lado, os escritores passaram a retomá-los ou reinventá-los.


domingo, 4 de novembro de 2018

Desarquivando o Brasil CXLVIII: Seminário Espaços de Exclusão (LEER-USP) e as prisões políticas: uma fala sobre o "Bagulhão"


No dia cinco de novembro de 2018, ocorrerá na FFLCH/USP o Seminário Espaços de Exclusão: História e Memória, organizado pelo LEER (Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação) da Universidade de São Paulo.
Nesta matéria do Jornal da USP, "Lembrar do calabouço para não esquecer o perigo da injustiça", a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, coordenadora do Laboratório, explica os propósitos do Seminário.





Farei uma breve fala sobre prisões políticas durante a ditadura militar, com foco no Bagulhão. Este é o resumo da comunicação:
Além da prática sistematizada de tortura, desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais, a repressão política durante a ditadura militar fez amplo uso das prisões arbitrárias. As próprias condições de detenção dos prisioneiros políticos, tanto antes quanto depois das condenações judiciais, violavam as determinações legais. Por conseguinte, esses prisioneiros buscaram transformar os espaços de reclusão em espaços de resistência, por meio de ações como greves de fome e denúncias que chegaram à imprensa internacional. Esta comunicação, com base em documentos sigilosos produzidos pelo Estado brasileiro, terá como centro a análise da longa denúncia da ditadura militar pelos presos políticos em São Paulo (apelidada de “Bagulhão”), feita logo depois do assassinato de Vladimir Herzog em outubro de 1975.


Já escrevi sobre esta denúncia feita pelos presos políticos em São Paulo, inclusive na publicação feita pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", de cujo lançamento participei em 2014: https://opalcoeomundo.blogspot.com/2014/06/desarquivando-o-brasil-lxxxv-lancamento.html
Somente em 1978 um jornal brasileiro, o Em Tempo, publicou a lista dos torturadores. Na audiência, Bernardo Kucinski, que era, na época, o seu editor, fez um depoimento inesperado e contou que havia sido contrário à publicação, e se surpreendeu com o enorme impacto que ela gerou: https://youtu.be/-atw8-96gnY?t=4122
O governo brasileiro, em vez de investigar as denúncias do documento, que, por sinal, ele já conhecia, decidiu processar o jornal com base na Lei de Imprensa. Ao lado, reproduzo o começo de uma Informação do Ministério do Exército sobre a matéria, "Presos denunciam 233 torturadores", diz respeito a essa iniciativa. No meu artigo, explico por que ele não conseguiu processar o periódico: o governo perdeu o prazo.
No entanto, houve uma resposta informal do terrorismo pró-ditadura, na forma de três atentados a bomba em 1978: dois em Belo Horizonte, e um na sucursal de Curitiba.

A foto de um desses atentados gerou a capa do "Dossiê sobre os atentados terroristas cometidos por grupos para-militares em Belo Horizonte", A quem interessa o terror?, de setembro de 1978. Devo falar desse e de outros documentos dessa época, em que a liberdade de expressão era recompensada com atentados e na qual as denúncias contra as ilegalidades oficiais tinham que ser feitas no exterior.