O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Uma ária favorita: "Casta diva", da "Norma", de Bellini (30 dias de ópera: Dia 9)

O tópico é muito difícil. Há diversas árias geniais, como escolher? Tantas preciosidades, trata-se de um verdadeiro embarras de richesses.
Adotarei a definição do Dicionário Grove da ária como uma canção que pode ser destacada de seu contexto. Tradicionalmente, trata-se de um momento em que o público se concentra para ouvir com mais atenção, seja para aplaudir, seja para vaiar, e o cantor está só, podendo contar (ou não) com o apoio do(a) regente, da orquestra ou, às vezes, do coro.
Ela pode adotar a forma de uma breve serenata, como a de Don Giovanni, "Deh vieni alla finestra", mais uma tentativa de sedução na ópera de Mozart: https://youtu.be/i7Teu60nNYc?t=6063
A ária pode corresponder a uma longa cena, como "Scherza infida", do personagem título da ópera Ariodante, de Haendel; o príncipe julga-se traído por sua amada Ginevra (mas tudo não passa de   uma conspiração, ela é fiel) e lamenta o amor aparentemente perdido: https://www.youtube.com/watch?v=ihuqZmfOA1M
Algumas delas se tornaram tão célebres que foram transportadas para outros contextos; cinema, televisão, propaganda. Muitos já ouviram o Barbeiro de Sevilha anunciando que é o "faz-tudo" da cidade de Sevilha na ópera homônima de Rossini: https://www.youtube.com/watch?v=WxFOQVsE2Oo; ou o libertino Duque de Mântua acusando as mulheres do que ele realmente é, volúvel (mobile), no Rigoletto de Verdi: https://www.youtube.com/watch?v=SKmpFupDtZ0. Muito conhecido é o grito de guerra da Valquíria na ópera de Wagner: https://youtu.be/YC6f8FbnVMQ?t=27. Quem não ouviu uma cigana na Espanha explicando, em um ritmo de dança, a Habanera, sua própria visão do amor, na Carmen de Bizet: https://www.youtube.com/watch?v=oGqRADwPDHA; ou a Rainha da Noite exigindo da filha que assassine Sarastro em A flauta mágica, de Mozart: https://youtu.be/JzFi-7H9TKs?t=119?
O deslocamento pode ser tão radical que a saudação de um rei persa para uma bela árvore (o "Ombra mai fu" do Serse, ou Xerxes, de Haendel), pode, em mais um abuso teocrático, ser tocada como se fosse uma oração cristã; nesta apresentação pode-se ver o original: https://www.youtube.com/watch?v=PbfGLpDdXPY
Com a influência de Wagner e a tentativa da melodia infinita, muitos compositores passaram a evitar a forma da ópera de números isolados, e a forma da ária declinou. Apesar disso, ela não desapareceu, compositores contemporâneos continuam a investir nesses momentos em que as habilidades do cantor são realçadas.
Certa ópera barroca, pelo contrário, tornou-se o reino da ária e do cantor (como em Vivaldi), que aparecia em cena, fazia seu solo e ia embora. Os cantores interpretavam certas árias que lhe caíam bem em qualquer ópera, pois eram seus sucessos pessoais. Nesse contexto, em que a unidade da obra não era realmente o objetivo da apresentação, a diferenciação entre os solos obedecia, em princípio, mais à lógica dos afetos expressos do que a uma caracterização específica dos personagens.
Em Mozart, no Classicismo, não é assim: as árias do Fígaro, o servo, não se confundem com a do Conde, embora eles possam ser cantados pelo mesmo intérprete. No entanto, ainda em compositores que vieram depois, pode-se ouvir o mesmo tema empregado em óperas de caráter diferente (cômico e sério) e para personagens bem diversos: por exemplo, uma jovem apaixonada em Sevilha e uma rainha inglesa, segundo a música de Rossini. Nesses casos, a diferenciação entre os personagens e os afetos deve ser obra dos intérpretes.
O compositor pode indicar muito pelo caráter das árias; basta a audição para descobrirmos que a jovem Marzelline, filha do carcereiro, não tem chance alguma com Fidelio, ajudante de seu pai, porque lhe é dada uma ária estrófica bonita, mas simples (https://youtu.be/G8haA-lpBoo?t=701), enquanto Fidelio (que é, na verdade, uma mulher, Leonore) tem um recitativo heroico que antecede uma ária composta, com a primeira parte mais lenta, e a segunda, mais rápida, que se eleva perigosamente a um si agudo.
Leonore travestiu-se para salvar o marido injustamente preso. Quando ele, Florestan, aparece na solitária em que foi confinado, ele também canta uma ária composta e com agudos difíceis na segunda seção, mais rápida. Sabemos, então, que ficarão juntos, pois já tinham sido unidos pela música de Beethoven!
A ária para esta nota, além de ser uma das minhas favoritas, escolhi-a por ter sido descrita brevemente pelo personagem principal de meu romance Gravata lavada (Patuá, 2019), Mariano, no segundo parágrafo:


Nesse capítulo, um grupo monta uma peça que corresponde a uma adaptação do poema Indulgência plenária, de Alberto Pimenta, sobre a vida e o assassinato de Gisberta Salce, transexual brasileira que vivia na cidade do Porto.
Na peça, os atores interrompem a ação para que a diretora peça um depoimento da plateia. Rosa, que estava a assistir, toma a palavra, a página começa com o meio de sua fala. Depois do depoimento, os atores retomam a ação, e uma cantora interpreta a "Casta diva" (ária que quase deu título ao livro de Pimenta). Mariano Miro, o protagonista, descreve resumidamente a ária, que, de fato, começa e termina em quietude. O que ele não diz é que ela é muito difícil de cantar...
A ária ocorre no primeiro ato da ópera Norma, de Vincenzo Bellini e do libretista Felice Romani. Os gauleses querem fazer guerra contra os invasores, os romanos. Norma, a grande sacerdotisa, opõe-se; em transe profético, revela que Roma não será derrotada por eles, e sim cairá por causa de seus vícios, cairá consumida. Depois desse recitativo dramático e impressionante, ela ordena a paz e ora para a Lua, a casta deusa, para que ela derrame a paz e tempere os corações ardentes.
Depois de terminada a ária, sabemos que ela está preocupada com a ausência de Pollione, o militar romano por quem ela se apaixonou, de quem teve duas crianças, e que é a razão para que ela não queira a guerra contra Roma... Como Pollione aparece antes dela na ópera, já sabemos que ele está de olho em uma sacerdotisa mais jovem, Adalgisa, e quer levá-la para Roma. Teme, porém, a reação de Norma.
Aqui, pode-se ver Montserrat Caballé, a grande cantora espanhola, falecida em 2019, interpretando a ária em Orange, em noite de ventania que deixa tudo mais poético (as roupas parecem flutuar) e no seu inigualável auge vocal: https://www.youtube.com/watch?v=tqUi1T7hYQw. O solo da flauta expõe a melodia antes de o soprano começar a cantar, procedimento comum na ópera italiana do início do século XIX (a ópera estreou em 1831).
O coro entra na seção intermediária, aos 3'27", e participa da segunda estrofe, sempre dessa forma "esfumaçada", em contraste com os coros de guerra dessa ópera. Em 6'19", Caballé mostra seu fôlego na frase da cadência, que inclui uma escala cromática descendente. Depois de 7'10'', o público urra de satisfação, o que é completamente justo. Com um breve recitativo, Norma termina o rito. Ela ainda canta uma ária mais rápida (a caballetta "Ah bello a me ritorna") em que suspira, privadamente, pelo amor de Pollione. Os gauleses se dispersam.
Muito foi escrito sobre esta melodia tão nobre que Bellini criou para essa oração. Ela é típica desse compositor, inclusive na grande ornamentação da linha de canto (vejam quantas semicolcheias foram escritas só para cantar as duas primeiras palavras da ária!), e influenciou, entre outros, seu amigo Chopin.
Aqui, eu só desejava lembrar que esta música consegue falar mesmo para quem não conhece o contexto desta ópera, ou mesmo o próprio gênero operístico. Neste documentário com povos originários da Amazônia, mostram-se-lhes imagens da cultura dos brancos e, entre elas, Maria Callas cantando a "Casta diva" em Paris, em 1958 (para quem quiser ver esta apresentação: https://www.youtube.com/watch?v=KOfdIM6gD-U; é muito interessante, embora o coro da Ópera de Paris, que está com a partitura na mão, não saiba a música - o soprano chega a olhar para trás com o que talvez seja alguma irritação, mas ela não se perde).
Um dos indígenas observa que seu povo respeita muito quem tem coragem de cantar sozinho diante dos outros, e o público escuta essa solidão do cantor. Um jovem diz que não entende o que está sendo dito, esta música não é de sua cultura, mas ela emociona. Um senhor comenta que ela tem algo de sagrado.
De fato, ouviram-na bem, o que não se pode dizer sempre do público tradicional de ópera.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Um aplauso dado: Em "Davi e Jônatas", de Charpentier, em "O Anão", de Zemlinsky (30 dias de ópera: Dia 8)

Como previ a vaia, tinha que criar um dia específico para o aplauso. Adoro aplaudir, aliás.
No entanto, nem todos vão ao teatro para isso. Lembro de uma vez, em que ganhei ingresso para ver a Renée Fleming (esta cantora) em São Paulo; na longa fila de autógrafos, uma senhora com a sua filha, que viajavam pelo mundo para ver apresentações de ópera, mostrava sua decepção com o fato de que o soprano tinha cantado bem, relativizou o sucesso pelo fato de a maior parte do repertório ter sido canções de câmara, com poucos agudos.
O "fiscal de decadência vocal" é um dos personagens abjectos presentes no público de ópera. Outro é o "inimigo" de certo artista, que vai às apresentações como "militante da vaia".
Era comum que o público de ópera aplaudisse, com as mãos ou, quando há muito entusiasmo, com os pés. Como, atualmente, muitos que vão assistir óperas começaram a aplaudir música em apresentações de música popular, há também assobios de satisfação, o que é uma revolução: no protocolo de ópera, o assobio significava o mesmo que vaia; vejam como o público do Scala de Milão se divide após uma alucinante interpretação da Cena de Sonambulismo de Lady Macbeth por Maria Callas: os imbecis são os que assobiam.
Hoje, se os artistas ouvirem assobios, sempre podem pensar, aliviados, que se trata de um aplauso de alguém que segue os protocolos das apresentações de música popular.


É difícil que o som de bater palmas seja irônico, por isso este som ainda é mais seguro.
Já aplaudi tanto e tão ruidosamente que fiquei paralisado diante deste tópico. Ainda mais porque deveria escolher um só! Resolvi relativizar: um só, no entanto em mais de uma categoria. Estou pensando em aplausos para os intérpretes, não para os compositores, que estão envolvidos nos outros tópicos do desafio.
Sempre quis aplaudir este grande regente do barroco, William Christie, um redescobridor especialmente na área do barroco francês; ele reensinou a reger Rameau, entre outros autores, e acabou se naturalizando francês (nasceu nos Estados Unidos) em 1995.
Seu grupo, Les Arts Florissants, foi criado em 1979 e nomeado a partir de uma obra de Marc-Antoine Charpentier, um dos compositores de que ele é especialista.
Eu o vi em São Paulo, em 15 de outubro de 2014, em um concerto com uma versão de bolso do grupo Les Arts Florissants. Antes disso, em janeiro de 2013, tive a sorte de ir a Paris e aproveitei para ver uma produção de Davi e Jônatas (David et Jonathas), obra de Charpentier que estreou em 1688, a partir da conhecida história da Torá.


Nesta encenação de Andreas Homoki, tomou-se como pressuposto a natureza homossexual da relação entre os protagonistas, "prova da infinita riqueza dos textos bíblicos". Já a Associação dos Juristas Islâmicos, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e os neoapóstolos de um deus armamentista e cultivador do ódio apostam na pobreza hermenêutica daqueles textos e na inanição da democracia.
O espetáculo foi produzido originalmente em 2012. Pascal Charboanneau (Davi) e Ana Quintans (Jônatas) retomaram os papéis que já tinham encarnado com a regência de Christie: https://www.youtube.com/watch?v=0Y0_6gt5U_k
Em discos de 1988, o maestro já havia gravado essa obra com um elenco quase todo diferente. Neles, já estava a Pitonisa do contratenor Dominique Visse, que era outro artista que eu desejava aplaudir. No prólogo da ópera (deslocado, na produção que vi, para o meio da obra) Saul quer saber o futuro e procura a Pitonisa, que evoca as potências infernais: "Ombre, c'est moi qui vous appelle" ("Sombra, sou eu que vos chamo"). Ele começa a chamá-la com ternura, é muito curioso. A voz aguda de contratenor, registro de Visse, responde à voz grave, de baixo, de Jean-François Gardeil.
O contratenor (e regente) fundou o conjunto Ensemble Clément Janequin, que gravou muitas canções polifônicas da Renascença francesa, e mesmo repertório do século XXI. Também interpretou ópera, participou daquele disco engraçados dos três contratenores (ele, Andreas Scholl e Pascal Bertin satirizando os "três tenores"). Recentemente, vi no cinema em São Paulo outro personagem feminino seu, a Arnalta de A coroação de Poppea, de Monteverdi, em que sua enorme verve humorística manifestou-se novamente. Arnalta é serva de Poppea; ele cantou muitas vezes a Nutrice, a serva de Otávia. Ele trocou de patroa... Provavelmente porque Arnalta é geralmente cantada por tenores (contraltos não costumam ter sucesso nesse papel).
Dominique Visse nasceu em 1955. Faz algum tempo que leio em certos periódicos de música críticas severas a seus discos, mas sem que mencionem seu nome, do tipo: "um contratenor que já teve seu momento de glória"... No entanto, a insolência de seu timbre e sua desenvoltura cênica continuavam a evocar as sombras infernais na obra de Charpentier. Aplaudi de pé.
Escolhi esta produção porque reunia artistas que há décadas eu queria aplaudir, e que já não são jovens. Talvez eu não tivesse, ou não tenha mais, outra oportunidade para lhes agradecer pela música que já interpretaram, e pelo fato de continuarem exercendo seu chamado à música.
Pensei, porém, que deveria também aplaudir uma instituição, um teatro, por continuar, apesar das dificuldades, a fazer ópera e a realizar uma programação interessante.
Como tenho morado em São Paulo, escolhi o Teatro São Pedro, onde já vi obras muito montadas, como O elixir do amor, de Donizetti, mas também estreias brasileiras de óperas como O Barbeiro de Sevilha de Paisiello, obra anterior à homônima de Rossini, até estreias mundiais de música contemporânea brasileira (acabei de ver O peru de Natal de Leonardo Martinelli e Jorge Coli).
Ou até esta ópera pouco montada no Brasil, O Anão (Der Zwerg), de Zemlinsky, em agosto de 2016.


Ademais, se trata de local onde se podem ouvir as vozes atuais e futuras do Brasil. Nomes consagrados, como Eliane Coelho, Paulo Szot, Gabriella Pace, Fernando Portari e outros, certamente, mas também as vozes novas (a Academia de Ópera Theatro São Pedro tem como fim formar novos intérpretes; vejam o vídeo da produção), que preponderaram nesta produção, protagonizada pelo tenor Mar Oliveira, que cantou o tempo todo de joelhos para compor o Anão.


Entre essas vozes, estava, em um pequeno papel, uma Rainha da Noite, Jéssica Leão. Ela interpretou o papel em agosto de 2019 na produção d'A Flauta Mágica da Associação Coral da Cidade de São Paulo com o maestro Luciano Camargo e o diretor Rodolfo Vázquez. Eu estava no Coro; testemunhei que toda noite ela cantava com segurança aquelas notas, inclusive os cinco fás superagudos.
Se bem me lembro, não ouvi a regência de André dos Santos, mas a do jovem maestro, da Academia de Ópera, Edson Piza. A orquestra estava muito bem. Pode-se ouvir a gravação de O Anão do São Pedro no canal de Jorge Coli: https://www.youtube.com/watch?v=XjJyKvFuf1c
A ópera de Zemlinsky, esta obra-prima de pouco mais de uma hora que estreou em 1922, foi elaborada a partir do conto “O Aniversário da Infanta”, de Oscar Wilde. Trata-se da conhecida história do Anão dado de presente à Infanta da Espanha, por quem ele se apaixona, sem saber que é julgado grotesco por ela e pela corte. Quando se vê pela primeira vez no espelho, leva um choque, razão pela qual morrerá.
O programa da ópera apontava a identificação do compositor (pessoalmente feio) com o personagem. No entanto, poderia se pensar, talvez, que a ópera no Brasil se identifica com esse anão, de certa forma; embora seja bela, ela é tratada como um anão grotesco pelas autoridades.
Esse desprezo pela ópera, que se estende a outras áreas da cultura, também afeta o Teatro. Com o ataque do governador Alckmin à Orquestra do Teatro em 2017, a falta de continuidade administrativa e os cortes de verbas (em 2016, por exemplo, O Trovador, obra tão popular de Verdi, teve de ser cancelado), não é realmente possível ter temporadas e assinaturas.
Aplausos a quem resiste à barbárie e continua fazendo arte nesta época em que o Estado não só deixa de apoiar os artistas (na música, no cinema, na literatura, no teatro etc.), mas os combate abertamente e instiga o ódio contra eles. Um governo que ataca Fernanda Montenegro, só por isso, merece ser derrubado.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado
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Dia 20: Ópera e gênero
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terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Uma vaia dada: Restos de "Don Giovanni", de Mozart (30 dias de ópera: Dia 7)

O público de ópera pode ser bem exigente com o que vê. Em música popular, não sei bem com quem comparar, pois o nível de indulgência com desafinação, erros em geral é muitas vezes maior nessa área, permitindo que a fraude seja adotada como método artístico, e que façam carreira pessoas que não conseguem executar ao vivo o que é produzido em estúdio. Trata-se antes de commodities do que músicos, e têm seus representantes na indústria de entretenimento para defender que a dublagem não passa de mero "recurso a ser usado".
É provável que o público de heavy metal seja ainda mais severo do que o de ópera, ao menos em termos de objetos jogados no palco. Foi histórica a vaia sofrida, acompanhada de projéteis, por Lobão no Rock in Rio em 1991, em uma noite dos metaleiros. O músico e sua banda tiveram de deixar o palco depois da segunda música. Dito isso, o público operístico também é capaz de, além de vaiar, perseguir o artista para espancá-lo, como aconteceu, por exemplo, com um Tannhäuser regido por Karajan em Viena em 1956. Max Lorenz, que estava em fim de carreira e não cantava mais esses papéis heroicos, teve de salvar o espetáculo na récita seguinte e foi muito aplaudido.
Sou contrário a esse tipo de violência, mas a favor da vaia. Viva a vaia, ademais. Nos regimes despóticos ela é proibida - ou imposta aos inimigos do poder.
Na conhecida Vida de Rossini de Stendhal, há uma passagem que cruza inesperadamente o mundo do espetáculo com a teoria política. Isabella Colbran, em crise vocal, não era vaiada em Nápoles porque era protegida do diretor do teatro e do rei:
A senhorita Colbran começava uma ária; ela cantava tão desafinado que era impossível suportar. Eu via meus vizinhos abandonarem a plateia, os nervos irritados, mas sem dizer nada. Que se negue depois disso que o terror é o princípio do governo despótico! e que esse princípio não opere milagres! obter silêncio dos napolitanos em cólera! Eu seguia meus vizinhos, nós iríamos fazer um passeio no Largo di Castello, e voltávamos depois de vinte minutos para ver se poderíamos surpreender algum duetto ou número de conjunto em que a inevitável protegida do senhor Barbaja e do rei não fizesse ouvir sua soberba voz em decadência. Durante o efêmero período do governo constitucional de 1821, a senhorita Colbran somente ousou reaparecer em cena precedida das mais humildes desculpas [...]
Montesquieu, em Do espírito das leis, explica o princípio dos governos despóticos. De fato, vaiar a eles ou a seus representantes implica arriscar a própria vida. Pois há estes momentos na História em que uma ópera se associa a um governante. Entre as vaias que marcaram época, estão as dirigidas contra o Tannhäuser em Paris, que era tanto direcionada à ópera em si (nisso, havia a história de o balé dessa obra ter sido realizado no primeiro ato e não no segundo, contrariando as tradições da cidade) quando contra Napoleão III, que havia decidido que a obra seria programada. Para Wagner foi dirigida parte da insatisfação com o governante.
O governo constitucional permite as vaias, nem sempre justas, é verdade, mas esse é um preço da democracia... Cecilia Bartoli foi vaiada em 2012 no Scala de Milão, em concerto regido por Daniel Barenboim depois de 19 anos sem cantar naquele teatro. Em resposta, ela deu um bis com uma peça que causou controvérsia (o final de La Cenerentola de Rossini)... Depois do concerto, afirmou que ser vaiada ali dava sorte e citou alguns dos exemplos: Herbert von Karajan, Maria Callas, Franco Corelli, Luciano Pavarotti... No caso dela, escolhida recentemente para chefiar a Ópera de Montecarlo a partir de 2023, realmente não se podem negar a sorte e o talento.
Em geral, não vejo grande problema se a voz de um cantor quebra ao tentar executar uma parte difícil. Como muitas vezes no repertório operístico estamos diante dos limites da voz humana, costumo admirar a valentia do intérprete em tentar realizar algo difícil. Já vi isso acontecer várias vezes e nunca vaiei por essa causa. Presenciei, sem tomar parte, um Rigoletto em que o tenor errou muito audivelmente na cadência de "La donna è mobile" e foi vaiado (não por mim, mas por um bom número do público). Achei curioso que o cantor assumisse uma cara de deboche diante da plateia, apesar do erro evidente, o que não deixava de ter relação com o personagem que encarnava, o cínico duque...
Ademais, a cadência não corresponde ao que Verdi, o compositor, originalmente escrevera. Ouçam o original, muito mais simples, e a cadência que a tradição colou à famosa ária, nos dois casos com Roberto Alagna. Às vezes, a vaia decorre de o maestro ter escolhido executar a obra original, em desacordo com a expectativa do público. Aconteceu com o tenor Salvatore Licitra, já falecido, a quem o regente Riccardo Muti impôs cantar a famosa ária "Di quella pira", da ópera Il Trovatore, sem aqueles dós agudos do final, que não foram escritos por Verdi. Ouçam o que o compositor escreveu e comparem com o que a tradição de execução da obra criou (é verdade, porém, que aqueles dós não soam tão bem na voz lírica de Licitra). Vaiaram cantor e maestro, mas o atingido foi o compositor, que não havia escrito aquelas notas extremas. Uma boa parte do público de ópera aceita a arte musical desde que ela se subordine a façanhas atléticas.
Pobres cantores, que cada vez mais têm de competir com os mortos, em razão das gravações.
A vaia mais colossal que já vi foi para um diretor cênico, Gerald Thomas; contei essa história em outra nota, sobre Tristão e Isolda, de Wagner. Thomas colocou cocaína (em vez do filtro amoroso; achei uma boa solução), psicanálise, moda e judeus ortodoxos naquela história trágica de amor. Bastante curioso, apesar do canto muito irregular, dos cortes na partitura e da regência. Os urros de insatisfação da plateia no Rio de Janeiro irromperam quando Thomas apareceu armado como uma Valquíria diante do público. Soaram tão fortemente que o ar pareceu ter-se solidificado. Os neonazistas ameaçaram o diretor. Neste caso, eu aplaudi o espetáculo.
Uma das vaias que eu dei, contei-a neste blogue, a propósito de uma produção paulista de Don Giovanni; não aos cantores, por certo (lembro que Andrea Rost destacou-se como Donna Ana), mas a toda a concepção do espetáculo, que, apesar de ridícula, não me arrancaria vaias se não tivesse cortado um personagem do final de uma cena (Leporello) e suprimido mais da metade da cena final. A estátua do Comendador, assassinado por Don Giovanni em duelo ao tentar impedir o estupro de sua filha pelo libertino, aparece para jantar, depois de ter sido jocosamente convidada pelo Don no cemitério. Mas ela não se alimenta do pão terrestre; o Comendador veio para exigir que o assassino se arrependa dos pecados. O servo, Leporello, apavora-se, mas permanece até o fim da cena trágica, em que Don Giovanni é arrastado aos infernos. Algumas representações até o início do século XX encerravam a ópera aí, com esse fim, apreciado pelos românticos. No entanto, há ópera tem mais uma cena, bem século XVIII, em que os outros protagonistas ainda estão a procurar o libertino para puni-lo; Leporello chega subitamente e narra o castigo que seu antigo senhor recebeu. Todos, então, entoam a moral da história: "Este é o fim de quem faz o mal". Só este conjunto final sobreviveu.
A mutilação da obra de Mozart teria sido fruto da exótica concepção do encenador ou simplesmente de falta de ensaio da música? Não vi explicação alguma, tampouco alguma nota na imprensa sobre o ocorrido. Uma eventual insuficiência de ensaios poderia explicar o corte de mais da metade da cena final; esse corte exigiria, para que Leporello trocasse de figurino, sua ausência na cena do Comendador (ele saía correndo sem cantar sua parte).
Se a cena final tivesse sido poupada da tesoura, o Leporello poderia ter cantado até a queda de Don Giovanni, pois ele demora um pouco para entrar, tendo em vista a arquitetura teatral bem planejada por Mozart e Da Ponte. No caso, comprometida pela encenação e pela direção musical. Vaiei ambas.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Uma despedida presenciada: Leonie Rysanek na "Elektra", de Richard Strauss e Hofmannsthal (30 dias de ópera: Dia 6)

Quando imaginei este tópico, em contraponto ao relativo a estreias, pensei em Dmitri Hvorostovsky. Porém eu consegui vê-lo antes de ele anunciar que estava doente, e ele seguiu cantando ainda por mais algum tempo, até que o câncer o impediu por completo. Vi sua despedida na internet, mas não é a mesma coisa do que estar na presença do artista.
Do artista ou do professor, pois a dimensão performática da sala de aula em sua importância no processo de aprendizagem. Li há pouco notícia em certa revista semanal sobre a liberação de ensino a distância pelo ministro A.W., permitindo no Direito até 40% da carga horária, e a matéria era bem franca ao explicar que a grande questão aí é baratear custos para as empresas privadas (professores e outros empregados, instalações, equipamentos são "custos"), e não a melhora do ensino, lamentável segundo as últimas avaliações.
Resolvi então escolher a passagem pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro da despedida de Leonie Rysanek. Ela decidira deixar os palcos aos 70 anos para, segundo declarava aos jornais, não precisar mais se preocupar, quando levantasse de manhã, com o timbre da voz... De fato, esse tipo de cantor precisa estar muito bem para conseguir interpretar o exigente repertório e se torna refém, mais do que em outros gêneros, de suas condições vocais.
Rysanek era uma estrela desde os anos 1950 (ela estreara em 1949), principalmente em ópera, e na ópera alemã em papéis dramáticos. De seus papéis italianos, o que mais gosto ainda é Lady Macbeth em Macbeth, de Verdi, que ela gravou com o regente Leinsdorf e o barítono Leonard Warren. Apesar do registro grave menos potente e da menor agilidade, ela não passa vergonha diante de Maria Callas e, a seu modo, consegue bem sugerir a loucura na famosa Cena do Sonambulismo.
Apesar de sua afinação não ser muito precisa, tinha uma voz impressionante para os papéis de jovem soprano dramático, onde achou seu nicho sem ser eclipsada por Birgit Nilsson, que se dedicou aos papéis ainda mais pesados e neles reinou inconteste (sem encontrar sucessora comparável até hoje) depois que Astrid Varnay migrou para os papéis de meio-soprano. Enquanto Nilsson era uma Brünnhilde, Rysanek interpretava Sieglinde. Nilsson era uma impressionante Elektra de Richard Strauss, e Rysanek encarnava a irmã, Chrysothemis. Felizes os que puderam ver as duas juntas.
No papel de Sieglinde, de que ela se apoderou, a dimensão criativa dos grandes intérpretes manifestou-se até no grito: quando seu irmão gêmeo e apaixonado consegue retirar a espada que o pai de ambos, o deus Wotan (encarnado como Wälse; não vou contar aqui a história da ópera A Valquíria, de Wagner, que inclui deuses, incesto, contratualismo, opressão e revolta da mulher na sociedade patriarcal), Rysanek, em alguma apresentação nos anos 1950, deu um grito de júbilo, não escrito na partitura. Ela achou que levaria uma bronca, mas Wieland Wagner, o encenador e neto do compositor, gostou bastante, e depois muitas cantoras copiaram. Pode-se ouvir este excitante momento no fim do primeiro ato (o grito ocorre depois de um breve solo do tenor, "Siegmund heiss ich", aqui cantado por James King, aos 2'43'', com a regência de Karl Böhm em Bayreuth em 1964; aqui, em 1958, com Jon Vickers, cuja voz quebra no agudo final, e Hans Knappertsbusch numa regência lenta, ela grita um pouco depois, provavelmente o momento de retirada da espada ocorreu um pouco mais tarde).
Com o tempo, ela migrou para os papéis menos agudos, que podem ser cantados também por meio-sopranos, o que não significa que sejam fáceis; ela cantava a Elsa em Lohengrin; mais velha, tornou-se uma Ortrud; vejam este tour de force no Metropolitan, a evocação dos deuses pagãos contra o mundo cristão que apagava as antigas tradições. Em Elektra, de Richard Strauss e do libretista Hugo von Hofmannsthal, seu papel habitual era o da irmã da protagonista; quando Karl Böhm fez o filme da ópera, Birgit Nilsson estava indisponível, o que fez o maestro pedir para Rysanek gravar sua única Elektra; ela se saiu muito bem apesar da regência lentíssima. Mais adiante, ela passou a cantar o papel da mãe, Klytämnestra, que seria impossível nos anos 1950 e indesejável na década seguinte, por falta de graves: trata-se de uma parte para contraltos ou meio-sopranos.
Depois de quase meio século de carreira, ela não tinha mais nada a provar. Reproduzo o currículo divulgado no libreto das apresentações no Rio de Janeiro, em 1996, que não dá conta, evidentemente, de sua trajetória, com o dos sopranos Marilyn Zschau e Eva-Maria Bundschuh.


A ópera, que estreou em 1909 (no Brasil, em 1923, no Rio de Janeiro), tem uma escrita muito pesada para as vozes femininas, que a dominam, especialmente o soprano que canta Elektra. Depois de entrar, ela não sai mais do palco nesta ópera de um só ato. De tão dramático, trata-se de um dos papéis com fama de destruir vozes. As dissonâncias desta música eram chocantes o suficiente para a época, e são especialmente marcantes no papel da mãe. A partitura é muito difícil também para a orquestra, por isso me alegrei ao vê-la sob a direção musical de uma das promessas da regência brasileira, Eduardo Strausser, no Teatro Municipal de São Paulo em 2016.


Foi o papel da mãe que ela escolheu para a despedida. Apesar de aparecer no palco somente em uma cena, ele é muito marcante. A personagem quer ver a filha ovelha negra por causa de pesadelos que anda tendo; Elektra decodifica os maus sonhos e dizem que eles exigem o sacrifício de um animal... que é uma mulher... que não é mais virgem... a qualquer hora do dia e da noite... um homem a abaterá... um estrangeiro, porém do palácio... O libreto de Hofmannsthal interrompe aí a gradação e faz a filha perguntar sobre o irmão, e Klytämnestra mente. Elektra não se deixa enganar e revela, seja o futuro, seja o seu desejo, que ela mesma, a rainha, deve ser sacrificada! E por seu próprio filho, Orest, vingando o assassinato, cometido por ela e seu amante Ägisth, do pai, Agamemnon! Só depois disso a alegria será possível novamente na cidade. A mãe apavora-se, mas chegam as aias que lhe transmitem um segredo que a faz rir de maneira maníaca. Ela sai gargalhando enlouquecidamente; Chrysothemis chega e o revela: "Orest ist tot" (Orestes morreu). Não foi bem isso o que realmente ocorreu, no entanto...
Estas imagens de 1995 no Colón, pena que em má qualidade, são desta produção, e mostram a saída de cena da personagem: https://www.youtube.com/watch?v=KD6a8pcrE08
A orquestra soa violentamente na entrada da orquestra. Quando Rysanek entrou, lembro bem porque fiquei surpreso, o registro de peito estava bem presente na palavra "Warum" ("por que"), quando ela indaga por que os deuses a oprimem; de fato, a cantora conquistara a voz desse papel. A encenação era genial, passava-se num hospício. Lembro que era uma concepção nova até para a cantora veterana, que a apreciou, segundo a entrevista que deu, acho que ao Globo, pois os personagens da ópera eram loucos mesmo...
A produção, com a cabeça gigante de Agamemnon, veio do Teatro Colón, de Buenos Aires, inclusive com os técnicos. Roberto Oswald fez a direção cênica, a iluminação e os cenários, com assistência, na direção, de Aníbal Lápiz, responsável também pelos figurinos. Foi uma das coisas mais bonitas que já vi no teatro. Era muito impressionante quando Orest se revelava: acompanhantes retiravam a capa que vestia, via-se então que ele estava com uma camisa de força!
O regente Gabor Ötvös arrancou da Orquestra do Municipal do Rio de Janeiro os fortíssimos da partitura, mas eles não intimidaram nem um pouco Rysanek, que encobriu até Marilyn Zschau, a Elektra. O poder daquela voz, sempre aliado ao momento dramático, era impressionante, mesmo às vésperas da aposentadoria. Nem imagino o impacto que ela causava ao vivo quarenta anos antes.
Um ano depois, em 1997, ela morreria de câncer. Ignoro se ela já sabia da doença e por isso decidira se despedir. Ela deixou os palcos triunfante como Klytämnestra sai da cena, com a diferença de que a personagem se enganava em relação ao triunfo.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

sábado, 14 de dezembro de 2019

O primeiro disco de ópera: "La Traviata", de Verdi (30 dias de ópera: Dia 5)

O primeiro disco de ópera completa que tive foi uma gravação ao vivo de La Traviata, de Giuseppe Verdi e o libretista Francesco Maria Piave. Foi um presente de aniversário, eu mesmo escolhi. Já tinha visto o filme de Zeffirelli com uma cantora inadequada para o papel e vários cortes na partitura.
Eram dois long plays, discos de vinil, de uma coleção de óperas com Maria Callas, da EMI, que era vendida exclusivamente nas antigas lojas Breno Rossi. Agora, podem ser achados por quase quatrocentos reais em sítios de compra na internet.
Tratava-se de gravação ao vivo feita em Lisboa, em 1958, com Franco Ghione regente a Orquestra e o Coro do Teatro Nacional de São Carlos. O então jovem Alfredo Kraus era o tenor e Mario Sereni, o barítono.
A EMI lançou esses discos porque não tinha uma Traviata de estúdio com Callas, embora tenha sido o segundo papel que a grande artista mais cantou. Ela havia gravado a ópera para a Cetra, sua primeira gravadora, em um disco não muito inspirado, e teria que esperar, segundo contrato, para fazê-lo novamente. A nova gravadora, no entanto, resolveu não esperar o soprano estar disponível e gravou em 1956 a ópera com Antonietta Stella e o time de artistas com quem Callas mais trabalhou em estúdio: o regente Tullio Serafin, o barítono Tito Gobbi e o tenor Giuseppe di Stefano.
Felizmente, restaram algumas gravações ao vivo, todas superiores à de estúdio de 1953, que foi vendida nas bancas na coleção dos 400 anos da ópera que a Folha de S.Paulo vendeu no Brasil. Na Cidade do México, em 1951 (com um som mais precário) e 1952; em Milão, 1955 e 1956 (com um som precário); Lisboa (1958) e Londres (1958). Ela cantaria o papel pela última vez em Dallas, naquele mesmo ano, em montagem do Zeffirelli que deixava a Violetta no palco desde a abertura, deitada; toda a ação ficava em retrospectiva antes do morte no terceiro ato; é provável que tenha sido parecida em espírito com o filme feito nos anos 1980.
Em Londres, ela estava doente e isso se ouve especialmente no fim do primeiro ato. Dito isso, ela ainda continuava vocalmente mais firme do que, por exemplo, a Stella ou a Renata Tebaldi, e a interpretação é de chorar.
La Traviata, obra de 1853, é uma das óperas mais populares, e com razão. O Brinde do primeiro ato é conhecidíssimo (nesta ligação, a partir de 9'37"). A história vem de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Violetta Valéry, a "transviada", é uma cortesã; o jovem Alfredo Germont, em uma festa na casa dela, em que tem um momento de fraqueza (está com tuberculose), declara-lhe seu amor. Ela parece não levá-lo muito a sério, mas fica perturbada; ela tenta se livrar dessa nova emoção com várias subidas até o ré bemol (e, nesta gravação, também um mi bemol não escrito pelo compositor) na difícil ária "Sempre libera", em que, toque genial de Verdi, ouve-se a voz do tenor, nos bastidores, repetindo a declaração de amor. Nesta gravação, Kraus acrescenta um dó agudo também não previsto. No segundo ato, Violetta vive com Alfredo numa casa dela afastada da cidade. Ele vive do dinheiro dela, que está a acabar. ela resolve vender todos seus bens. O tenor canta sua paixão, até que descobre, pela criada, Annina, da transação que sua amada resolve fazer. Ele tem mais um solo em que canta seu remorso, cortado nesta apresentação (nesta ligação, pode-se ouvir toda a cena com Nicolai Gedda: https://www.youtube.com/watch?v=lYajIejuCgw). Violetta aparece e estranha a ausência de Alfredo. Chega um senhor; ela pensa que se trata dos negócios, mas é o pai de Alfredo, Giorgio Germont. Ele quer que ela deixe o filho e julga que ela o está explorando. Quando ela mostra que é o contrário, ele fica muito surpreso e acaba por se convencer de que ela o ama. No entanto, ele continua a querer a separação por causa dos... dois filhos. Ela não sabia da irmã de Alfredo; o escândalo do amor dele com Violetta impediria que a jovem se casasse; ademais, Giorgio acrescenta cruamente, Alfredo iria se cansar desta ligação, que não havia sido abençoada pelo casamento... Ela cede, então. Mas pede que ele conte o sacrifício a Alfredo depois de ela morrer. Esta longa cena entre soprano e barítono está entre as melhores de Verdi, que escreveu tantos diálogos como este, que fazem o drama tomar nova direção. Giorgio vai embora, ela escreve uma carta para Alfredo; ele chega, ela assusta-se, não lhe mostra o que escreveu, e suplica para que ele a ame, cantando um tema já ouvido na abertura, agora em um tempo mais largo que o deixa mais intenso. Ela vai embora - vai para a festa de Flora e o deixa; ele o descobre porque lhe entregam a carta depois que ela já se pôs a caminho. Subitamente (como sempre em Verdi) o pai aparece e pede para que ele retorne para a Provence. O filho, porém, decide ir à festa e recobrar Violetta. O pai canta uma caballetta mais fraca ainda do que o canto de remorso do tenor, cortada nesta récita (nesta ligação, pode-se ver esse trecho a partir de 5'17", com Cornell MacNeil). Na festa, depois de uns coros de divertimento, Violetta está com o novo namorado, o Barão Douphol. Chega Alfredo. Depois de um desentendimento, ele a humilha publicamente, jogando-lhe todo o dinheiro que ele acabou de ganhar no jogo para pagar o que ela gastou com ele; o pai de novo chega subitamente e passa um pito no filho. Violetta recobra os sentidos e canta um lamento, que o coro acompanha; o Barão e Alfredo duelarão. No último ato, ela está em casa, porém arruinada e em estado terminal da tuberculose. O médico diz a Annina que ela só tem mais algumas horas. Violetta decide dar o pouco que lhe resta aos pobres. Lê uma carta do Giorgio, que diz ter revelado tudo a Alfredo; no duelo, o Barão ficou ferido, "porém melhor". Ela exclama que é tarde, que eles não chegam nunca, e dá adeus ao passado. Alfredo chega e eles cantam que deixarão Paris para a saúde dela restaurar-se. Ela tenta por as luvas para sair, mas vê que não consegue mais. Percebe, enfim, que morrerá jovem. Chega Giorgio, e até o velho senhor percebe que ela está morrendo. Violetta fica feliz por falecer cercada de seus únicos entes queridos e despede-se. Subitamente, sente-se melhor; cessam os espasmos de dor; ela cai inerte após a declaração de que retorna a viver.
A denúncia da hipocrisia social e a glorificação da "transviada" só poderiam realmente inspirar Verdi. Ele mesmo, em sua vida pessoal, não era uma homem convencional, como o atesta sua vida com Giuseppina Streponi. Ambos acabaram casando depois de muitos anos juntos. Em Londres, o London Spetactor, em 1856, deplorou a escolha de uma história de um romance infame francês, cuja heroína é uma prostituta, e criticou Verdi nestes termos: "Verdi's music, which generally descends below his subjects, can in this case claim the ambiguous merit of being quite worth the subject"! Sobravam também impropérios para as damas da aristocracia que lotavam a Ópera sem aparentemente perceber que a obra era um ultraje... Esta crítica está reunida na divertida coleção de comentários ferinos ou absurdos ou apenas imbecis Lexicon of Musical Invective: Critical Assault on Composers since Beethoven's Time, de Nicolas Slonimsky.
Este tópico, porém, diz respeito à gravação. Esta apresentação de 1958 apresenta alguns cortes que se costumavam fazer de números inteiros, os menos interessantes da partitura, que assinalei, e também de repetições na cavatina do primeiro ato do soprano e na ária do terceiro ato. Eu não vejo perda musical nisso, mas corte de redundância, especialmente da melodia que o tenor já havia exposto e que não precisamos ver o soprano reiterar duas vezes (neste vídeo, com Natalie Dessay, pode-se ver a repetição a partir de 3'40''). Quanto à ária do terceiro ato, a repetição torna-a, além de repetitiva, menos adequada ao estado terminal da personagem. Vejam Renée Fleming cantar esta segunda estrofe a partir de 4'00''; a segunda vez enfraquece os gestos da primeira.
Entendo, contudo, que se deseje ouvir toda a música, com seus pontos mais fracos e suas redundâncias. Para isso, esta gravação de 1958 não servirá. O que ela traz é a maior intérprete do papel em uma boa regência de Franco Ghione e cantores de qualidade, como Alfredo Kraus, que gravaria a ópera algumas vezes, sempre muito bem (mesmo em 1993, com Kiri te Kanawa, 35 anos depois desta apresentação!), e Mario Sereni.
A enorme carga emocional da música de Verdi recai sobre a heroína; o espetáculo depende principalmente da cantora que interpreta Violetta, que deve enfrentar significativos desafios musicais e dramáticos. Verdi faz as exigências vocais mudarem de acordo com as transformações do caráter da personagem: no primeiro ato, a cortesã com suas cascatas de agudos e escalas pode ser cantada por um soprano ligeiro. O papel fica bem mais pesado no segundo e no terceiro ato, no entanto. Callas foi uma das poucas que soava firme no "Sempre libera" do primeiro ato, no si fortíssimo do "Amami Alfredo" do segundo, e na sua voz de peito na declamação de "a niuno in terra salvarmi è dato" do terceiro.
Os discos que comprei na década de 1980 tinham um som precário, que fazia a orquestra parecer uma bandinha. Lembro que Antonio Hernández, no Globo, criticou a gravação, que vinha de fitas de Alfredo Kraus, por essa razão. Depois, foram encontradas no Teatro as fitas da gravação original da récita, e a orquestra soa muito melhor nelas. A Myto lançou-as, é melhor do que o disco da EMI ou da Warner.
Pena que foi a única vez que Maria Callas cantou em Lisboa; além da gravação que ficou mítica e gerou uma peça (de Terrence McNally, The Lisbon Traviata; nunca a vi nem li), o Teatro registrou em vídeo alguns minutos da apresentação, os únicos momentos filmados de Callas cantando esta ópera: https://www.youtube.com/watch?v=pM11aNfOW7Y
Uma anedota para terminar este pequeno texto: tive um amigo na adolescência que considerava ópera um mero passatempo da burguesia europeia decadente que deveria ser desprezado. Uma vez, ele chegou à casa de meus pais e eu tocava essa Traviata, e a voz de Callas soava perturbadora na ária "Sempre libera", encarnando o conflito interior da personagem de uma forma totalmente original. Ele parou para ouvir, muito atento; quando terminou o lado do LP, quis saber o que era.
Acabou estudando canto lírico, o que nunca fiz.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
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quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

A primeira ópera assistida: "Aida", de Verdi (30 dias de ópera: Dia 4)

A primeira em que assisti a uma ópera completa foi no cinema: La Traviata, de Giuseppe Verdi, por Zefirelli. Como ópera é teatro, no entanto, considerarei para este tópico Aida, do mesmo compositor e do libretista Antonio Ghislanzoni, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1986.


Eu era adolescente. Já conhecia, por causa dos discos, pelo menos a marcha triunfal do segundo ato e a ária do tenor, "Celeste Aida". O disco do Luciano Pavarotti que eu tinha dava a ilusão de que a ária era fácil para um tenor lírico; ao vivo, percebi que isso não era verdade. Ela aparece no início da ópera; o guerreiro egípcio Radamés exprime suas esperanças de ser escolhido como líder das tropas egípcias e dedicar a vitória a sua amada Aida, uma escrava etíope.
Neste vídeo, Pavarotti canta-a no mesmo ano em que vi a ópera pela primeira vez; era um ator limitado, mas a voz soava realmente vizinha ao sol: https://www.youtube.com/watch?v=XP1vp_G9mLc


Foi Carlos Kleiber que escreveu que, quando Pavarotti canta, o sol se levanta... O tenor escolheu esse papel para se despedir do Metropolitan Opera House.
Essa montagem no Rio de Janeiro, com os cenários monumentais de Gianni Quaranta, ficou muito famosa e viajou para o Metropolitan Opera House, onde foi filmada com o mesmo soprano do primeiro elenco, Aprile Millo, e o tenor Plácido Domingo; ambos gravariam em disco a ópera com a orquestra desse teatro e o regente James Levine. Essa foi a gravação da coleção 400 Anos da Ópera que a Folha de S.Paulo distribuiu nas bancas de jornal.
Fernando Bicudo era o diretor do Teatro pela primeira vez nessa época. Não lembro de muita coisa do que vi naquela minha primeira vez no Rio de Janeiro com minha madrasta, Jurema. Tenho em mente ainda os cavalos e, no terceiro ato, a enorme solidão de Aida, interpretada por Marion Vernette Moore, no momento em que canta o lamento por sua pátria, a Etiópia: "O patria mia" (neste vídeo, Leontyne Price interpreta-a na sua despedida do Metropolitan Opera House; com o estrondo incessante dos aplausos, a artista deixa o personagem e agradece seu público). Verdi era especialista nesse tipo de lamento desde, ao menos, Nabucco e seu famoso coro dos escravos, "Va pensiero".
Essa ópera, como se sabe, foi fruto de uma encomenda da Ópera do Cair e estreou em 1871. A história de guerra entre egípcios e etíopes é sitiada pela de amor: a princesa etíope, Aida, foi capturada e serve de escrava para a do Egito, Amneris. O líder dos guerreiros egípcios, Radamés, é amado pelas duas, mas só tem olhos para a escrava. Aida divide-se entre o amor por Radamés e a lealdade a sua pátria. Amneris consegue descobrir que Aida ama Radamés e a humilha. As tropas egípcias venceram (a batalha ocorre fora do palco) e os etíopes são carregados como escravos. Em batalha, o pai de Aida é preso, mas esconde sua identidade e pede por seu povo. Radamés, um guerreiro compassivo, pede pela libertação dos etíopes. Aida, depois de lamentar pela pátria, é convencida pelo pai a obter de Radamés o segredo do percurso das tropas egípcias; depois de grande conflito interior, escolhe enganar o amado para salvar o próprio povo. Chega o militar e os dois começam a discutir o relacionamento. Claro que Radamés, o guerreiro apaixonado, revela o segredo militar e que Amonasro aproveita e tenta fazê-lo debandar para o seu lado, e que Amneris chega na hora e o acusa de traidor (todo o dueto entre os amantes e o fim do terceiro ato em doze minutos, Verdi é bem mais rápido do que Wagner). O pai e a filha fogem e o guerreiro se entrega. Ele será julgado por traição, mas Amneris se oferece para salvá-lo se ele casar com ela. O guerreiro apaixonado e fiel não quer mais viver, no entanto, pois julga que Aida morreu. A princesa egípcia revela que Aida, ao contrário do pai, conseguiu fugir. Mas Radamés não quer viver sem a amada, é julgado pelo sacerdotes, não se defende e é condenado a ser enterrado vivo, inobstante os protestos de Amneris. Sob o solo, está ele, até que vê... claro, Aida, que já tinha adivinhado o que aconteceria e tinha se escondido lá para morrer com o amado! A ópera termina em uma passagem sublime com as vozes dos dois amantes, que se unem ao lamento de Amneris com as sacerdotisas, que está sobre a tumba fatal.
A história, em certo sentido, é uma variação do esquema barítono (Amonasro) impede soprano (Aida) e tenor (Radamés) de ficarem juntos, já experimentada por Verdi em La Traviata, Un ballo in maschera e outras, também presente nas obras de outros autores italianos, como Andrea Chénier de Giordano, Il Tabarro de Puccini... O aspecto monumental que uma encenação de Aida pode explorar, no entanto, sempre pode ser atraente para boa parte do público. Em termos de políticas de gênero, com o guerreiro tomando decisões guiado pelo amor, e a princesa colocando a nação em primeiro lugar, a ópera pode ser vista como algo não tão convencional.
E há a questão colonial. Edward Said, em Cultura e imperialismo, recolheu um ensaio sobre esta ópera, que cumpriria o papel de "confirmar o Oriente como lugar essencialmente exótico, distante
e antigo onde os europeus podem se permitir certas exibições de força". Said continua, tratando da origem do libreto:
[...] Verdi podia se valer, e de fato se valeu, pela primeira vez na ópera europeia, de uma visão histórica e de uma autoridade acadêmica no campo de egiptologia. Essa ciência estava encarnada na pessoa de Auguste Mariette, próximo de Verdi, cuja nacionalidade e formação francesas faziam parte de uma genealogia imperial fundamental. Verdi talvez não tivesse como conhecer a fundo a pessoa de Mariette, mas ficou muito impressionado com seu roteiro inicial e reconheceu nele um especialista qualificado cuja competência poderia apresentar o antigo Egito com uma credibilidade legitimada.
O que se deve enfatizar aqui é que a egiptologia é a egiptologia e não o Egito. 
A egiptologia era uma ciência filha do imperialismo europeu, especialmente o francês. Enfim, "Como forma altamente especializada de memória estética, Aida encarna, tal como se pretendia, a autoridade da versão europeia do Egito num momento de sua história oitocentista".
A interessante leitura de Said é confrontada, no entanto, com alguns fatos do libreto e com a própria música de Verdi. Não sei quantas pessoas saem desta ópera querendo invadir países africanos. Acho bem improvável que existam; Paul Robinson, em um artigo bem interessante, "Is "Aida" an Orientalist Opera?", que saiu em 1993 no Cambridge Opera Journal, lembrou que, na história, o Egito está a agredir a Etiópia, ele não está no papel de povo sujugado, muito pelo contrário.
Robinson faz notar que "A more natural reading would be to see the opera as an anti-imperialist work, in which the exploitative relation between Europe and its empire has been translated into one between expansionist Egyptians and colonised Ethiopians."
Os fascistas, na Itália, informa Robinson, usaram esta obra para representar a invasão e conquista da Etiópia pelos italianos. O caráter anti-imperialista de Aida aparece também na música: a música de Ramfis, o grão-sacerdote e dos outros sacerdotes egípcios rementa à música religiosa europeia. A música diferente da do idioma europeu que Verdi emprega é a de Aida na evocação de sua pátria; escreve Robinson: "Instead of four-square diatonic marching tunes, he writes music distinguished by its sinuous irregularity, its long legato lines, its close intervals, its chromatic harmonies and its subdued woodwind orchestration, in which the reedy tones of the oboe play an especially prominent part."
Eu acrescentaria que, como SEMPRE em sua obra, Verdi não esconde sua simpatia pelos povos que estão em situação de opressão: Aida é um personagem muito mais simpático do que Amneris (senão, jamais acreditaríamos que o líder das tropas egípcias preferiria a escrava à princesa) e musicalmente mais marcante. Parece-me evidente que o compositor teria sido morto por seus compatriotas, ou, no mínimo, surrado nas ruas e obrigado a se exilar, como aconteceu com o maestro Arturo Toscanini (um de seus maiores intérpretes), se tivesse vivido no século XX durante o lamaçal político do fascismo.
Dito tudo isso, uma das frases que mais amo em todo o gênero operístico é a do Amonasro no dueto do terceiro ato. Depois de Aida afirmar que será digna da pátria e cumprirá a missão, ele a consola pedindo para que Aida pense no povo vencido, inconsolável, que poderia ressurgir por ela: "Pensa che un popolo vinto, straziato,/ Per te soltanto risorger può."; ela retruca: "Oh pátria, quanto me custas". A épica frase ascendente do barítono deixa alguma esperança de que aquele povo poderá libertar-se.
Há uma nota arqueológica curiosa, que o conde de Harewood conta na sua edição do livro de Gustave Kobbé, O livro completo da ópera: "O regente Edward Downes informou-me que em 1925 foram encontrados no interior da tumba de Tuntancâmon, então aberta pela primeira vez, dois trompetes, um afinado e lá bemol, o outro em si natural"; na ópera, na chamada cena triunfal, os trompetes do primeiro grupo tocam o tema da marcha em lá bemol, e os do segundo, em si natural. Algo a música de Verdi teria captado do Antigo Egito.

30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida
Dia 5: O primeiro disco de ópera
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã