Adotarei a definição do Dicionário Grove da ária como uma canção que pode ser destacada de seu contexto. Tradicionalmente, trata-se de um momento em que o público se concentra para ouvir com mais atenção, seja para aplaudir, seja para vaiar, e o cantor está só, podendo contar (ou não) com o apoio do(a) regente, da orquestra ou, às vezes, do coro.
Ela pode adotar a forma de uma breve serenata, como a de Don Giovanni, "Deh vieni alla finestra", mais uma tentativa de sedução na ópera de Mozart: https://youtu.be/i7Teu60nNYc?t=6063
A ária pode corresponder a uma longa cena, como "Scherza infida", do personagem título da ópera Ariodante, de Haendel; o príncipe julga-se traído por sua amada Ginevra (mas tudo não passa de uma conspiração, ela é fiel) e lamenta o amor aparentemente perdido: https://www.youtube.com/watch?v=ihuqZmfOA1M
Algumas delas se tornaram tão célebres que foram transportadas para outros contextos; cinema, televisão, propaganda. Muitos já ouviram o Barbeiro de Sevilha anunciando que é o "faz-tudo" da cidade de Sevilha na ópera homônima de Rossini: https://www.youtube.com/watch?v=WxFOQVsE2Oo; ou o libertino Duque de Mântua acusando as mulheres do que ele realmente é, volúvel (mobile), no Rigoletto de Verdi: https://www.youtube.com/watch?v=SKmpFupDtZ0. Muito conhecido é o grito de guerra da Valquíria na ópera de Wagner: https://youtu.be/YC6f8FbnVMQ?t=27. Quem não ouviu uma cigana na Espanha explicando, em um ritmo de dança, a Habanera, sua própria visão do amor, na Carmen de Bizet: https://www.youtube.com/watch?v=oGqRADwPDHA; ou a Rainha da Noite exigindo da filha que assassine Sarastro em A flauta mágica, de Mozart: https://youtu.be/JzFi-7H9TKs?t=119?
O deslocamento pode ser tão radical que a saudação de um rei persa para uma bela árvore (o "Ombra mai fu" do Serse, ou Xerxes, de Haendel), pode, em mais um abuso teocrático, ser tocada como se fosse uma oração cristã; nesta apresentação pode-se ver o original: https://www.youtube.com/watch?v=PbfGLpDdXPY
Com a influência de Wagner e a tentativa da melodia infinita, muitos compositores passaram a evitar a forma da ópera de números isolados, e a forma da ária declinou. Apesar disso, ela não desapareceu, compositores contemporâneos continuam a investir nesses momentos em que as habilidades do cantor são realçadas.
Certa ópera barroca, pelo contrário, tornou-se o reino da ária e do cantor (como em Vivaldi), que aparecia em cena, fazia seu solo e ia embora. Os cantores interpretavam certas árias que lhe caíam bem em qualquer ópera, pois eram seus sucessos pessoais. Nesse contexto, em que a unidade da obra não era realmente o objetivo da apresentação, a diferenciação entre os solos obedecia, em princípio, mais à lógica dos afetos expressos do que a uma caracterização específica dos personagens.
Em Mozart, no Classicismo, não é assim: as árias do Fígaro, o servo, não se confundem com a do Conde, embora eles possam ser cantados pelo mesmo intérprete. No entanto, ainda em compositores que vieram depois, pode-se ouvir o mesmo tema empregado em óperas de caráter diferente (cômico e sério) e para personagens bem diversos: por exemplo, uma jovem apaixonada em Sevilha e uma rainha inglesa, segundo a música de Rossini. Nesses casos, a diferenciação entre os personagens e os afetos deve ser obra dos intérpretes.
O compositor pode indicar muito pelo caráter das árias; basta a audição para descobrirmos que a jovem Marzelline, filha do carcereiro, não tem chance alguma com Fidelio, ajudante de seu pai, porque lhe é dada uma ária estrófica bonita, mas simples (https://youtu.be/G8haA-lpBoo?t=701), enquanto Fidelio (que é, na verdade, uma mulher, Leonore) tem um recitativo heroico que antecede uma ária composta, com a primeira parte mais lenta, e a segunda, mais rápida, que se eleva perigosamente a um si agudo.
Leonore travestiu-se para salvar o marido injustamente preso. Quando ele, Florestan, aparece na solitária em que foi confinado, ele também canta uma ária composta e com agudos difíceis na segunda seção, mais rápida. Sabemos, então, que ficarão juntos, pois já tinham sido unidos pela música de Beethoven!
A ária para esta nota, além de ser uma das minhas favoritas, escolhi-a por ter sido descrita brevemente pelo personagem principal de meu romance Gravata lavada (Patuá, 2019), Mariano, no segundo parágrafo:
Nesse capítulo, um grupo monta uma peça que corresponde a uma adaptação do poema Indulgência plenária, de Alberto Pimenta, sobre a vida e o assassinato de Gisberta Salce, transexual brasileira que vivia na cidade do Porto.
Na peça, os atores interrompem a ação para que a diretora peça um depoimento da plateia. Rosa, que estava a assistir, toma a palavra, a página começa com o meio de sua fala. Depois do depoimento, os atores retomam a ação, e uma cantora interpreta a "Casta diva" (ária que quase deu título ao livro de Pimenta). Mariano Miro, o protagonista, descreve resumidamente a ária, que, de fato, começa e termina em quietude. O que ele não diz é que ela é muito difícil de cantar...
A ária ocorre no primeiro ato da ópera Norma, de Vincenzo Bellini e do libretista Felice Romani. Os gauleses querem fazer guerra contra os invasores, os romanos. Norma, a grande sacerdotisa, opõe-se; em transe profético, revela que Roma não será derrotada por eles, e sim cairá por causa de seus vícios, cairá consumida. Depois desse recitativo dramático e impressionante, ela ordena a paz e ora para a Lua, a casta deusa, para que ela derrame a paz e tempere os corações ardentes.
Depois de terminada a ária, sabemos que ela está preocupada com a ausência de Pollione, o militar romano por quem ela se apaixonou, de quem teve duas crianças, e que é a razão para que ela não queira a guerra contra Roma... Como Pollione aparece antes dela na ópera, já sabemos que ele está de olho em uma sacerdotisa mais jovem, Adalgisa, e quer levá-la para Roma. Teme, porém, a reação de Norma.
Aqui, pode-se ver Montserrat Caballé, a grande cantora espanhola, falecida em 2019, interpretando a ária em Orange, em noite de ventania que deixa tudo mais poético (as roupas parecem flutuar) e no seu inigualável auge vocal: https://www.youtube.com/watch?v=tqUi1T7hYQw. O solo da flauta expõe a melodia antes de o soprano começar a cantar, procedimento comum na ópera italiana do início do século XIX (a ópera estreou em 1831).
O coro entra na seção intermediária, aos 3'27", e participa da segunda estrofe, sempre dessa forma "esfumaçada", em contraste com os coros de guerra dessa ópera. Em 6'19", Caballé mostra seu fôlego na frase da cadência, que inclui uma escala cromática descendente. Depois de 7'10'', o público urra de satisfação, o que é completamente justo. Com um breve recitativo, Norma termina o rito. Ela ainda canta uma ária mais rápida (a caballetta "Ah bello a me ritorna") em que suspira, privadamente, pelo amor de Pollione. Os gauleses se dispersam.
Muito foi escrito sobre esta melodia tão nobre que Bellini criou para essa oração. Ela é típica desse compositor, inclusive na grande ornamentação da linha de canto (vejam quantas semicolcheias foram escritas só para cantar as duas primeiras palavras da ária!), e influenciou, entre outros, seu amigo Chopin.
Aqui, eu só desejava lembrar que esta música consegue falar mesmo para quem não conhece o contexto desta ópera, ou mesmo o próprio gênero operístico. Neste documentário com povos originários da Amazônia, mostram-se-lhes imagens da cultura dos brancos e, entre elas, Maria Callas cantando a "Casta diva" em Paris, em 1958 (para quem quiser ver esta apresentação: https://www.youtube.com/watch?v=KOfdIM6gD-U; é muito interessante, embora o coro da Ópera de Paris, que está com a partitura na mão, não saiba a música - o soprano chega a olhar para trás com o que talvez seja alguma irritação, mas ela não se perde).
Um dos indígenas observa que seu povo respeita muito quem tem coragem de cantar sozinho diante dos outros, e o público escuta essa solidão do cantor. Um jovem diz que não entende o que está sendo dito, esta música não é de sua cultura, mas ela emociona. Um senhor comenta que ela tem algo de sagrado.
De fato, ouviram-na bem, o que não se pode dizer sempre do público tradicional de ópera.
30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã
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