O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

O palco e o mundo, Livros de Humanas e o direito à literatura

Há dez anos, foi publicado meu primeiro livro, O palco e o mundo, que Alberto Pimenta encaminhou a Vitor Silva Tavares, editor da & etc. Disponibilizo-o nesta ligação, no âmbito da campanha em prol do sítio Livros de Humanas e do Direito de Acesso aos bens culturais.
O sítio foi fechado por liminar judicial concedida à Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR), como se pode ler neste panorama do caso.
Para ler sobre a campanha, recomendo a tradutora e historiadora Denise Bottmann, com dois textos até agora, um deles sobre a questão do acesso a livros no ensino unviersitário, outro sobre a atuação da ABDR e a provável irregularidade do processo contra o Livros de Humanas.
Indico também o professor e ensaísta Idelber Avelar  a respeito da prevalência do "direito ao conhecimento, à leitura, à expressão e à livre circulação de ideias" sobre a "leitura enviesada da lei de direitos autorais".
No sítio do Direito de Acesso pode-se ver que dezenas de autores já aderiram, inclusive Ricardo Domeneck, Veronica Stigger, Eduardo Sterzi, Angélica Freitas, André Vallias, dando acesso a seus livros, e também editoras como Azougue, de Sérgio Cohn, e Cultura e Barbárie, de Flávia Cera e Alexandre Nodari.
Em um país em que o iletramento é a regra e a educação é apagada a cada despacho assinado pelas autoridades (in)competentes, é evidente o grau de subversão de uma biblioteca virtual como era (e, espera-se, voltará a ser) Livros de Humanas. A mera possibilidade de ler corresponde a uma insurgência contra a brutal concentração que sustenta a ordem no Brasil, que é também uma concentração de direitos (ninguém se iluda com o princípio formal da igualdade). Por isso, sabota-se a todo momento o direito à educação e também o direito à literatura.
Quero lembrar de um poema que João Cabral de Melo Neto publicou em Crime na Calle Relator, "História de mau caráter". O poema narra um concurso para professor da faculdade de direito de Recife, com um concorrente rico e outro, pobre, que avisa o rico de que chegaram dois exemplares de um tratado italiano útil para o concurso. E foi buscar quem lhe emprestasse dinheiro para comprá-lo. É fácil adivinhar o final da história, quando o candidato pobre voltou, no dia seguinte, para comprar o livro:

Na loja, na manhã seguinte,
já no sebo os tratados nossos,
diz-lhe o caixeiro: "Esgotou ontem.
Vendemos os dois a um só moço."

Sempre me pareceu significativo que se tratasse de um concurso para a faculdade de direito, que não só formava essa elite de caráter duvidoso, como pelo fato de o poema poder ser lido como uma crítica ao direito de propriedade em nome do acesso à cultura.
Hoje, tal acesso pode ser reivindicado na categoria dos direitos sociais. Mas o ensino jurídico, em geral comprometido com essa elite, prefere a hipertrofia do direito individual. Trata-se de outra luta a ser travada, da qual a campanha pelo Livros de Humanas é apenas um capítulo. 

P.S.: Acima, pode-se ver a capa que Gunilla Lervik fez para a edição original do livro.

sábado, 26 de maio de 2012

Desarquivando o Brasil XXXVI: Comissão da Verdade e a USP vigiada

Ocorreu, na quinta-feira última, um ato em prol da criação de uma Comissão da Verdade na Universidade de São Paulo. Significativamente, tendo em vista a estreita colaboração de vários professores da Faculdade de Direito com a ditadura militar, foi lá que ocorreu o "Juristas pela Comissão da Verdade na USP".
Não pude assistir ao importante acontecimento. Leio na Rede Brasil Atual  que Fábio Konder Comparato foi o primeiro a discursar, dizendo ser necessário abrir a "caixa de surpresas da USP durante o regime". Entre os outros juristas, estava a internacionalista Deisy Ventura.
É necessário que universidades, sindicatos e outras organizações criem suas comissões - não se pode esperar que os sete conselheiros nomeados por Dilma Rousseff tudo pesquisem, muito menos se deve pressupor que o governo federal tenha o monopólio das iniciativas deste assunto que diz respeito ao que é comum no país. 
Ademais, as caixas e os caixões que a USP deve guardar serão muito reveladores. Algumas instituições de ensino superior não trouxeram ameaças significativas à ditadura. Pode-se encontrar no arquivo do DOPS/SP (no Arquivo Público do Estado de São Paulo, de onde tirei os exemplos desta nota), por exemplo, elogio à Universidade de Guarulhos, que havia convidado ninguém menos do que Brilhante Ustra para palestrar.
No entanto, na Universidade de São Paulo, de feição um tanto mais crítica, surgiram vários nomes que contestaram o regime, seja pela palavra, pela mobilização, ou até pelas armas - neste caso, uma minoria. Iara Iavelberg, formada pela Faculdade de Psicologia da USP, foi um dos militantes que tomou esse último caminho.
Ela entrou na clandestinidade antes de ser contratada como professora na Universidade e foi morta em Salvador, em 1971, antes de seu companheiro, Lamarca, ser encontrado e assassinado (ver as páginas 173 e 174 do Dossiê Direito à Memória e à Verdade da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos). Com Marighella já assassinado, ambos eram as pessoas mais procuradas do país. Eles haviam deixado a VPR e estavam no MR-8.
Hoje, ela nomeia o centro acadêmico de Psicologia.
Na mesma Faculdade, temos o exemplo da estudante Aurora Maria do Nascimento Furtado, também referido no Dossiê, militante da ALN assassinada no Rio de Janeiro depois de tortura (que incluiu a "coroa de Cristo"). Talvez seja mais esclarecedor, no entanto, ler a tese de Samir Pérez Montada em Psicologia Social, orientada pela renomada professora Ecléa Bosi, que foi colega de Iavelberg e lecionou para Aurora: Tempos de política: Memórias de militantes estudantis do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Apenas mais um exemplo: Alexandre Vannucchi Leme, estudante da Geologia e militante da ALN, que, embora não participasse da luta armada, foi assassinado em 1973, empresta seu nome ao DCE da USP. Ele foi assassinado por meio de tortura no DOI/CODI em São Paulo. Aqui, pode-se ler a farsa oficial publicada por O Globo da morte por "atropelamento". Neste artigo de Fernanda Ikedo, temos a ameaça feita pelo Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, a Dom Paulo Evaristo Arns por ter celebrado missa em memória ao estudante morto.
Acontecimentos mais ordinários da vida acadêmica mereciam atenção das autoridades. Panfletagem, claro, era uma atividade a ser cuidadosamente vigiada e relatada, mas também o comércio de livros, inclusive dos subversivos Celso Furtado e Josué de Castro, como se vê abaixo. Seus livros eram vendidos "ostensivamente na banqueta existente na Faculdade de Filosofia" em 1970.





De fato, boa parte do melhor pensamento brasileiro estava proibida nesses anos...
Os espiões que atuaram na Universidade atendiam a esse intento do regime de controlar uma Universidade perigosa, perigosa como o pensamento deve ser.  A repressão ao movimento estudantil tinha sido uma preocupação da ditadura militar desde 1964 (a solução de financiá-lo para cooptá-lo e calá-lo ainda não havia sido urdida) com o ataque sobre a UNE e as uniões estaduais, postas fora da legalidade por meio da Lei Suplicy de Lacerda, de n° 4.464, de 9 de novembro de 1964. As campanhas e as posses nos diretórios acadêmicos e nos DCE eram investigadas.
É interessante ler, em relatório de 31 de março de 1965, que o comandante do II Exército, Gal. Amaury Kruel, na qualidade de "paraninfo", participou da posse do novo Diretório Acadêmico, em meio a certa polêmica: Hélio Navarro, então estudante (depois, seria eleito deputado pelo MDB e ainda seria cassado e preso), discursou contra o regime. O General, no entanto, foi aplaudido. O professor Goffredo da Silva Telles, que inicialmente apoiou o golpe, elogiou o militar e foi vaiado pelos estudantes: 'V. Excia., General Amaury Kruel, é um dos grandes soldados da Revolução de 31 de março".
O comentário do agente que escreveu o relatório parece apontar a consciência da impopularidade do regime naquele lugar: "Saliente-se que a vaia não foi pròpriamente pela citação do nome do general, mas principalmente pela revolução pròpriamente dita".
Goffredo da Silva Telles acabou por redimir-se retoricamente, segundo o relatório, exclamando que aquela Faculdade continuava "de pé, pela democracia, pela liberdade", o que é irônico, retrospectivamente, ao lembrarmos da carreira de Buzaid, Gama e Silva, Miguel Reale e outros durante a ditadura militar.
Por sinal, no Seminário Direito e Democracia, realizado na UFSC em 2010, o professor Airton Seelaender apresentou um ensaio sobre o apoio de Goffredo à ditadura militar, até o desencanto com o regime e a apresentação da Carta aos Brasileiros em 1977. O vídeo de sua fala está disponível.






A vigilância sobre a Universidade estendia-se também às aulas, uma vez que a liberdade de cátedra deveria subordinar-se à segurança nacional. Nesse ponto, agentes infiltrados como estudantes eram essenciais.



As aulas de Comparato, veja-se, também eram vigiadas. Neste trecho de um relatório de maio de 1973 sobre a Faculdade de Direito da USP, conta-se que esse professor criticava muito o regime (e a direção da Faculdade). Tenho certeza de que esta citação está correta, pois eu o vi (remontando ao próprio avô) dizer o mesmo em sala de aula em 2003: "ao tempo da República velha, que deu lugar à República velhaca em que estamos". A citação continua atual!
Quem conhece o grande jurista não se espantará com o fato de que ele atacava a ditadura. Quem conhecia os alunos não há de se admirar com o fato de que muitos não concordavam "com a opinião do mestre a respeito da política nacional".
Creio que a caixa de surpresas da USP deve ser vasta, e é importante que seja aberta. Deve-se lembrar que os reitores de 1963 a 1969, e desse ano a 1973, os professores da faculdade de Direito Gama e Silva e Miguel Reale, tinham notórios contatos estreitos com as autoridades militares, participaram ativamente da legitimação jurídica do regime, que soube retribuí-los com cargos e honras, e provavelmente receberam importante documentação do governo federal em matérias sensíveis à segurança nacional (isto é, à segurança da ditadura).

Nestes interessantes dias de hoje, em que se fazem ouvir reações contra a demanda da sociedade brasileira pela verdade, inclusive oriundas de professores de Direito, que julgam não haver fundamento jurídico algum para essa demanda, quero terminar esta nota com as palavras de Comparato em artigo de 2004, "O direito à verdade no regime republicano":


Em hipótese nenhuma os crimes cometidos por agentes públicos (ou seja, etimologicamente, funcionários do povo) podem ser subtraídos ao conhecimento público. Nenhuma razão de política interna ou internacional poderá jamais justificar a violação desse princípio. No campo da política interna, o encobrimento oficial de delitos representa, sempre, a superposição do interesse particular de grupos, classes ou corporações ao direito fundamental do povo de conhecer a verdade, isto é, a identidade dos criminosos e as circunstâncias do crime. No plano internacional, a pretensa razão de Estado, invocada para fundamentar o sigilo, nada mais é do que a afirmação do interesse próprio de um país contra o bem comum da humanidade. Em ambas as hipóteses, portanto, há uma patente negação do princípio republicano.
Esperemos que a maior universidade do país seja capaz de honrar esse princípio. Seu exemplo certamente inspiraria iniciativas congêneres no país.

P.S. Quem quiser apoiar a formação da Comissão da Verdade na Universidade de São Paulo, pode fazê-lo por meio do Fórum Aberto para a Democratização da USP: http://democraciausp.blogspot.com.br/2012/05/abaixo-assinadopor-uma-comissao-da.html

sábado, 19 de maio de 2012

Dietrich Fischer-Dieskau, música e poesia

Escrevo como um ouvinte órfão. Descobri Dietrich Fischer-Dieskau, que morreu ontem, aos 86 anos, somente na minha graduação, quando conheci um colega mais novo que admirava intensamente o cantor. Comprando discos usados nos vários sebos de lp que existiam no Rio de Janeiro no início dos anos 1990, e depois discos compactos, fui conhecendo seu repertório. Ouvi Schubert primeiro com Ely Ameling (em uma ótima coleção para bancas de jornais), mas o texto para ela não tinha tanta importância quanto para Dieskau, e o Lied, a canção alemã, não é nada sem o texto.
Não que o texto seja sempre bom nesse gênero; Schubert escreveu alguns de seus melhores Lieder sobre uns poemas sentimentais que não seriam lembrados sem a música. O compositor (e o intérprete) podem transfigurar eventuais fraquezas do poeta, e quando Schubert descobriu Heine, por exemplo, no Canto do Cisne, os resultados foram incomparáveis; ouçam a canção do duplo, "Der Doppelgänger".
Dieskau gravou todos os Lieder de Schubert para voz masculina, e interpretou o ciclo Winterreise (Viagem de inverno), uma das maiores obras da música de todos os tempos, diversas vezes (com oito gravações de estúdio dessa obra segundo The Guardian) ao longo das décadas de sua carreira, que durou do final dos anos 1940 até o início da década de 1990.
No entanto, é muito redutor caracterizá-lo como essencialmente um intérprete de Schubert: cantor de vocação intelectual (ele é autor de diversos livros, autobiográficos e sobre música) e enciclopédica, conferiu-se a missão de gravar as canções para voz masculina de Brahms, Liszt, Schumann, Hugo Wolf... Hermann Prey, o outro grande barítono alemão de seu tempo, também teve uma ambição de cobrir o vasto campo da canção clássica, porém não pôde deixar uma discografia tão imensa.
Dieskau era um grande músico (o que o levou a dedicar-se à regência, campo em que não logrou destacar-se), o que nem todas as grandes vozes são. Luciano Pavarotti, por exemplo, destacava-se mais pelo esplêndido instrumento vocal do que pela inteligência musical. Com Dieskau podia ser o contrário, e a maestria do músico em geral impressiona ainda mais do que a beleza da voz. No obituário escrito por Christophe Huss, é contada a conhecida história da audição do então jovem cantor com Furtwängler, já em seus últimos anos de vida. Dieskau levou para a audição os Quatro cantos sérios, de Brahms, obra que exige enorme maturidade interpretativa, e o maestro, a princípio reticente com a ousadia, maravilhou-se com a interpretação. Depois, gravaram Wagner (o Kurwenal de Tristão e Isolda, ópera que voltou a gravar décadas depois - ele atravessou gerações de regentes, de Klemperer a Barenboim - com Carlos Kleiber) e Mahler (Lieder eines fahrenden Gesellen) - este último compositor, por instigação do barítono, pois o grande regente alemão, bastante conservador no repertório (e na composição), não se interessava por ele.
Dieskau tinha sua grande inteligência musical, uma grande compreensão do texto literário (não por acaso, era também escritor) e isso certamente contribuiu para que continuasse na música como regente, depois de aposentar-se como barítono em 1992. Nunca o ouvi nesse tipo de atuação, mas sei que não logrou destacar-se nessa atividade como conseguiu na de cantor (ao contrário de um René Jacobs).
A voz, que não era grande, era decerto inconfundível e formada por uma grande técnica vocal. Neste Mahler, "Der Tamboug'sell", que cantou décadas depois sob a regência de Hans Zender, pode-se ouvir o grande controle dinâmico que mantinha sobre sua voz, sua mezza voce não como simples ornamento ou gratuito exibicionismo vocal, mas como recurso comandado por uma inteligência interpretativa ímpar. Alguém imagina, por exemplo, o Tita Ruffo cantando suavemente (em regra, é muito mais fácil gritar uma nota aguda do que cantá-la na nuance piano) dessa forma?
Sua posição na EMI e, depois, na Deutsche Grammophon, não deixou de causar animosidades com outros cantores: assim, Christa Ludwig, uma das maiores cantoras do século XX, queixou-se de que desejava gravar mais Schubert, porém a gravadora queria fazer a milésima gravação de Dieskau (de fato, algumas canções podem ser ouvidas em mais de dez versões com esse cantor).
No entanto, às interpretações cada vez mais requintadas de Dieskau, pode-se muitas vezes preferir as de Hermann Prey, e um desses casos é Die schöne Müllerin (A bela moleira), primeiro grande ciclo de Schubert.
Fischer-Dieskau, em seu livro de memórias, escreveu que "Callas tinha a Tebaldi; Karajan tinha Bernstein" e ele tinha Prey, que morreu em 1998, ainda atuante como cantor. Os dois barítonos "rivais" são muito diferentes: Dieskau se orienta mais evidentemente pelo texto (e o seu canto tem muito de parlato (leiam o obituário do Euterpe) e sua voz é mais tenoril; Prey, por sua vez, com um instrumento mais robusto, parece mais espontâneo. Ouçam Prey neste momento tranquilo da Viagem de inverno, "Der Lindenbaum", e Dieskau, com Brendel no piano.
Os dois cantores gravaram juntos, e é instrutivo ouvi-los assim. Lembro agora de três óperas de Mozart, As Bodas de Fígaro, com Karl Böhm na regência: Prey cantou Fígaro e Dieskau, o Conde; A flauta mágica, com o maestro Solti, em que Prey interpretou Papageno e  Dieskau, o Orador; Così fan tutte, por Jochum, em que o Don Alfonso de Dieskau provoca o Guglielmo de Prey.
São duas formas diferentes de pensar a música. A de Dieskau parece-me torná-lo no intérprete ideal de Hugo Wolf e sua combinação tão sofisticada de música e texto. Lembro como foi uma revelação para mim ter ouvido a caixa de Dieskau com oito discos dos Lieder desse compositor. O pianista foi um de seus parceiros preferidos dos anos 1970, o também regente Daniel Baremboim.
Aqui, pode-se ver a classe infinita de Dieskau em três Lieder de Hugo Wolf  que concedeu como bis neste concerto com o pianista Hartmut Höll, frequente acompanhante do final de sua carreira como cantor. É admirável a forma como diz "Da scheint der Mond" em "Der Tambour", bem como todo o melodioso "Gesang Weylas", com a solenidade de "Uralte Wasser" e, no verso final, o sábio contraste, desejado pelo compositor e difícil de ser atingido sem exageros pelo intérprete, entre "Könige" (reis) e "Wärter" (servos) na frase final.
No campo da música de câmara, Dietrich Fischer-Dieskau destacou-se sobretudo no repertório alemão. Sua curiosidade intelectual o fez gravar até as canções de Nietzsche, disco que eu gostaria de ter e está fora de catálogo. Em geral, ele não é interessante cantando a canção francesa.
Também no campo da ópera, ele é melhor no repertório germânico. Mesmo aí, há alguns senões. Ele decidiu que, por meio da técnica, conseguiria interpetar com a voz de barítono lírico que ele possuía papéis para vozes mais amplas e mais pesadas. Nisso, conseguiu alguns resultados interessantes, e outros que não chegam a ser curiosidades. Ele por vezes tentava compensar a eventual inadequação vocal enfatizando excessivamente certos detalhes, abusando de Sprechgesang (até em Verdi, o que é, no mínimo, exótico), pegando notas por baixo (o que podia comprometer a afinação)...
Neste vídeo, podem-se ver várias fotos dos papéis operísticos do cantor, enquanto o ouvimos cantando uma de suas especialidades (e uma de minhas árias favoritas), o Conde de Almaviva de As bodas de Fígaro.
Lembro aqui do que eu gosto, e isso inclui três óperas de Verdi, a que vou dar mais destaque tendo em vista os preconceitos etnocêntricos que entram em cena quando alemães cantam repertório italiano e vice-versa. Há quem torça o nariz para o Rigoletto que gravou para Kubelik com os grandes cantores italianos Renata Scotto e Carlo Bergonzi; eu gosto muito, por causa dos mil detalhes de sua interpretação. Se a voz não se pode comparar, por exemplo, a de Robert Merril nesse repertório, a inteligência do cantor também é incomparável. Rigoletto, na voz de Dieskau (como também na de Gobbi), não é só um bufão, mas também um pai, que é ultrajado, mas também consolador.
Digo o mesmo de Falstaff, na iconoclástica gravação que fez com Bernstein - é sutilmente hilariante ao exclamar (iludido) "Alice è mia!", é simultaneamente delicadíssimo e profundo seu "Quando ero paggio"...
Ainda melhor acho que foi seu Marquês de Posa no Don Carlo, composto a partir da célebre peça de Schiller. O papel foi sua estreia em ópera, e ele a cantou tanto em alemão quanto em italiano. Não sei se o fez em francês (que é o original, Don Carlos foi escrito para a ópera de Paris). Vejam o dueto de amizade (um tanto cortado neste vídeo, mas o incluo para que vejam o barítono ainda jovem), em alemão, com o grande tenor James King como Don Carlo.
Dieskau gravou em estúdio o Posa para a que talvez seja a melhor versão em italiano dessa ópera, a de Solti. Os outros cantores também são estrelas: Renata Tebaldi, Grace Bumbry, Carlo Bergonzi, Nicolai Ghiaurov, Martti Talvela. Mas, quando volto a essa gravação, é principalmente por causa do barítono. Esse papel pode ser cantado perfeitamente por uma voz como a dele, e Dieskau, além de adotar posturas diversas para o personagem (um grande ator, sem dúvida) nas cenas na corte, mais formais, com o amigo Carlo e com o rei, faz uma das mais convincentes cenas de morte em todas as óperas, depois que Posa é baleado ao visitar Carlo na prisão: "O Carlo, ascolta". Não achei essa ária, mas a anterior, "Per me giunto è il dì supremo".
No repertório germânico, acho-o incomparável ao menos como o trovador Wolfram da ópera Tannhäuser, de Wagner. Ao contrário do que curiosamente diz o obituário em Le Monde, ele não tinha voz para um papel de baixo-barítono como Wotan (pôde fazê-lo, no entanto, em O ouro do Reno, com Karajan, que escolheu, em geral, cantores com vozes mais leves do que o esperado). Mas o que torna o barítono um cantor de Lieder magistral permitia que fizesse um Wolfram - um personagem cantor e poeta - excepcional.
O extenso obituário publicado em The New York Times conta como Dieskau foi obrigado a integrar-se a Wehrmacht, e teve seu irmão morto pelo Estado nazista. É curioso ler que seus imensos dotes musicais fizeram com que os americanos não o quisessem repatriar para a Alemanha...
No tocante aos períodos musicais, creio que Dieskau era bem mais feliz na música contemporânea (os textos que indiquei lembram dos compositores que escreveram para ele, como Britten e Aribert Reimann e mais uma série de estreias de obras novas, que mostram o impacto do grande barítono no meio musical) do que no barroco. Em Bach ele não soa nada autêntico, tampouco em Händel: sua coloratura é laboriosa demais, a interpretação raramente soa natural. Hans Hotter, que tinha uma voz bem maior do que a de Dieskau, mostrava-se muito mais ágil na parte final de Ich habe genung, cantata de Bach - e cantava Wotan e o Holandês de Wagner, o que Dieskau nunca pôde fazer muito bem. Pode-se também gostar mais do Winterreise com Hotter...
A propósito, uma anedota que é contada por Robert Craft. Na gravação da Paixão segundo São Mateus com Otto Klemperer (que está bem longe das pesquisas musicológicas de hoje...), o barítono queixou-se da lentidão dos andamentos do maestro. Klemperer, que o chamava de "Fieskau", disse que iria pensar. No dia seguinte, Fischer-Dieskau disse que sonhou com ninguém menos do que Bach, que teria concordado que estava lento demais. Klemperer deu o troco na sessão seguinte, revelando que também havia sonhado com Bach - e que o compositor havia dito que nunca tinha ouvido falar desse cantor! Tal era a mordacidade de Klemperer.
Uma das obras contemporâneas que interpretou, Preghiere, foi composta por Dallapiccola sobre textos de Murilo Mendes (traduzidos por Ruggero Jacobbi) - com quem o compositor italiano teve uma empatia instantânea. Creio que esse foi o único poeta brasileiro que Fischer-Dieskau cantou, peço para que me corrijam se estiver errado. Os poemas musicados, de Poesia liberdade, foram "Voto", "Desejo" e "A tentação". Os três manifestam o cristianismo visionário ("Ao sopro da transfiguração noturna/ Distingo os fantasmas de homens/ Em busca da liberdade perdida:") e provocador de Murilo:

"Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz".


Ouçam a intensidade de Fischer-Dieskau. Ele está à altura dessa poesia.
Quem quiser aproveitar duas horas com o cantor e ainda não têm seus discos e vídeos, pode vê-lo interpretando Mandryka na ópera Arabella, de Richard Strauss, com a melhor intérprete do papel-título, Lisa della Casa. O maestro é Keilberth. Depois, ele ainda gravaria essa ópera com sua segunda esposa, e hoje viúva, a grande soprano Julia Varady.
Escolhi, porém, "O adeus", última parte de A canção da terra, de Mahler, para despedir-me hoje do cantor. Depois, escolherei outro repertório para reencontrá-lo - tarefa para toda a vida.
Nesta ligação, temos essa obra inteira de Mahler, ao vivo, também com Keilberth na regência e ninguém menos do que Fritz Wunderlich cantando os solos do tenor. Ewig, ewig...

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Desarquivando o Brasil XXXV: Emicida, racismo e polícia

"Tevê cancerígena aplaude prédio em cemitério indígena./ Auschwitz ou gueto? Índio ou preto? / Mesmo jeito, extermínio [..]", versos de Emicida em Dedo na ferida.O rapper foi preso neste treze de maio por desacato, leio no twitter, por causa dessa música, em Belo Horizonte.  Ele participava do festival Palco Hip Hop, na mesma região, Barreiro, onde a Ocupação Eliana Silva havia sido removida pela polícia.

Ocupações como a de Pinheirinho são lembradas por Emicida na letra.


Ele foi liberado no mesmo dia, mais tarde. A economista Renata Lins sintetizou o caso nesta mensagem que o empresário do artista retuitou, como se vê abaixo, depois de ser retransmitida por Eduardo Sterzi: "13 de maio de 2012. Um negro é preso em BH por cantar uma música".



A Folha de S.Paulo hesitou em relação ao título da matéria,  e acabou decidindo dizer que o rapper foi obsceno. Deve-se lembrar que Rita Lee, em sua última apresentação ao vivo, em Aracaju, também foi detida por desacato à Polícia Militar. O caso ocorreu em 28 de janeiro deste ano, 2012. O vídeo parece-me mostrar que a compositora e cantora estava correta. Ela exclamou: "Eu sou do tempo da ditadura. Vocês pensam que eu tenho medo? Porra!"
No blogue de Emicida, lemos que a Polícia Militar apresentou uma versão dos acontecimentos bem contrastante com o que foi gravado no espetáculo - o boletim de ocorrência refere-se a frase que o rapper não teria declarado - o que talvez se explique por meio das sérias deficiências policiais no Brasil, presentes também no campo da compreensão mínima do que é o fenômeno artístico.
O jurista e professor Gabriel Divan, que conhece muitíssimo mais direito penal e hip hop do que eu, explica o que até eu consigo perceber, que não ocorreu o crime de desacato. Ademais, como ele escreveu, a questão é muito mais profunda: "A questão é MENOS o ‘enquadramento’ jurídico dos funkeiros e MAIS o questionamento sobre a real necessidade (e a real legitimidade democrática) de seguir sendo aplicado um tipo penal que criminaliza algo assim."
O problema é político e reduzi-lo à mera tipificação é leviano, como Gabriel Divan bem explica aludindo ao "imenso grupo de juristas que rapidamente aguardam as discussões exclusivamente penais do caso como quem espera a garçonete trazer o primeiro e gelado chope da tarde".
O problema é político e diz respeito a uma cultura autoritária. A letra de Emicida, em uma menção explícita à ditadura militar, faz ouvir "Ainda vivemos como nossos pais, Elis. / Quanto vale uma vida humana, me diz". Foi bonito ver que Maria Rita, a cantora que é também filha de Elis, logo se solidarizou com o rapper.
Como nossos pais é uma canção de Belchior que Elis Regina interpretou no espetáculo e disco Falso Brilhante, e acho que é uma das grandes manifestações de incoformismo na música brasileira dos anos 1970, tão mais forte pelo desencanto que ela carrega: "Ainda somos os mesmos e vivemos/ como nossos pais". A indignação da cantora em "É você que ama o passado e que não vê/ que o novo sempre vem" supera a interpretação do próprio compositor.
Nada na história permanece sem mudar: "plus ça change..." Ver as continuidades na história implica identificar o que se altera, como o racismo hoje e na ditadura militar.
O caso de Robson Silveira da Luz, homem negro morto pela tortura policial em maio de 1978, foi denunciado no ato público de criação da seccional de São Paulo da Comissão Brasileira de Anistia (CBA-SP), que ocorreu na Câmara dos Vereadores em 12 de maio de 1978 - quase no dia da Abolição.
Acusado de roubar frutas, ele foi preso, torturado e morto no distrito de Guaianazes. O delegado Alberto Abdalla acabou sendo condenado (note-se que a notícia erra a data do assassinato) pela morte, porém jamais foi preso.
O DOPS de São Paulo gravou as falas do acontecimento e as transcreveu.  Um pouco depois, o Movimento Negro Unificado (MNU) se constituiria, em 18 de junho de 1978 e, em 7 de julho do mesmo ano, realizou ato em frente ao Teatro Municipal de São Paulo em protesto por aquele assassinato, do de Newton Lourenço, operário assassinado pela política na Lapa, bem como pelo preconceito sofrido por meninos negros no Clube de Regatas Tietê.
O assassinato foi um dos estopins para essa intensificação dos movimentos. Leio em "Ações educativas do movimento social negro no Brasil", de Otto Vinicius Agra Figueiredo, que na Bahia "um grupo de professores militantes do MNU em suas discussões acerca da baixa auto-estima do negro fundou em 1981 o Grupo de Educação Robson Silveira da Luz do MNU."
Por que também os movimentos negros eram vigiados pela política política? Cito o livro Lélia Gonzalez (São Paulo: Selo Negro, 2010) de Alex Ratts e Flavia Rios:

Em tempos de ditadura, qualquer denúncia de racismo era recebida como tentativa de criar sentimentos antinacionais. Falar de racismo significava dar vida àquilo que "não existia" na sociedade brasileira. [...] Para os generais que comandavam a nação, nada disso fazia parte da nossa realidade. [p. 87]

A lógica da negação do racismo serve obviamente para mantê-lo: não se combaterá o que se julga não existir. Essa lógica, completamente compreensível (mas nunca justificável) em um Estado ditatorial, que é incompatível com a autonomia popular, é repetida, hoje, na democracia brasileira, por setores comprometidos com esse tipo de opressão.
Vejam um curioso caso no recentíssimo (de 17 de maio de 2012) programa da Al Jazeera em inglês sobre cotas raciais no Brasil, em que Demétrio Magnoli apanhou de Idelber Avelar e Athayde Motta (diretor do Fundo Baobá), por meio destas ligações: http://stream.aljazeera.com/story/brazils-racial-quotas-0022211 ou http://www.youtube.com/watch?v=js26QHH5hNM
A postura de Magnoli obriga-o a criar um mundo paralelo e a negar esta outra dimensão terrestre, mais mundana e banal, em que vivo. Ou, talvez, o fato de ser um homem branco de sua classe social faz com que viva, de fato, em um mundo apartado, o que corrobora a impressão de que Magnoli está completamente errado, e que o racismo segrega. Algo disso me evoca Sérgio Buarque de Holanda, ao tratar, em Raízes do Brasil, do secreto horror à realidade nacional.
A partir dos 32 minutos do vídeo, Magnoli afirma que os movimentos negros são tão poderosos no Brasil que fizeram o STF violar a Constituição... Idelber Avelar logo replica com o voto do Ministro Lewandovski: trata-se, em vez disso, de cumprimento da Constituição. Antes, a partir dos 20 minutos, ele desfez o erro magnoliano de que o direito brasileiro não era racista. A partir dos 6 minutos, o geógrafo havia explicado que nem a sociedade brasileira nem o seu direito dividiram a sociedade em raças...
Athayde Motta, como Avelar, trouxe de volta a realidade brasileira, e desmontou a falácia de que mestiços não seriam discriminados (especialmente a partir dos 15 minutos); a partir dos 27 minutos, voltou a insistir que as raças são categorias sociais, desfazendo (como também Idelber Avelar) a falácia biologizante de que, se não há biologicamente raças, logo não haveria socialmente racismo... E ele, como homem negro, lembrou que, embora estudante de doutorado, sofria discriminação.
Intelectualmente, uma postura como essa às vezes só consegue ser mantida a custo de inconsistências generalizadas e citações inventadas, como bem mostrou Ana Maria Gonçalves em um texto antológico.

Vejamos, porém, as transcrições do DOPS. Foi lida (o relatório não diz por quem), no ato de criação da CBA-SP,  uma carta aberta escrita pela família de Robson Silveira da Luz.
O documento, que pode ser visto ao lado, foi consultado no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Eis a transcrição policial, com seus enganos:

[...] as circunstancias que levaram a morte de Robson não estão isoladas de todas as outras formas de abuso do poder, e repressão que paira sobre todos nós, se existe o esquadrão da morte, se existe Abdalas agindo por conta propria, é porque isso até certo ponto é permitido, sentimos na propria carne a necessidade de que sejam respeitadas as minimas garantias individuais como no caso o direito a vida, pois não achamos correto que a troco de bananas, ou por falta de arroz, feijão, carne ou qualquer alimento alguem venha a perder a vida em qualquer dependencia publica, pedimos a solidariedade de todos aqueles que não aceitam o abuso do poder, a repressão a falta de garantias individuais, a discriminação racial no sentido de que a justiça que nos ultimos anos tem andado de muleta, nesse pais, seja feita afim de que se possa acabar com o arbitrio ainda hoje existente. S.Paulo maio de 1978- 90 anos de Abolição, a familia de Robson Silveira da Luz.
Não por mera coincidência, a prisão de Emicida e sua música também são objeto da reportagem da Al Jazeera. Eles atestam a permanência do racismo e da violência policial, que eram um problema em 1978 também para o movimento de anistia.
A curiosa imagem que a família usou na carta, a justiça com muletas, se não pode mais ser usada em relação ao Supremo Tribunal Federal no tema das cotas, permanece em relação à anistia e à justiça de transição.




quinta-feira, 17 de maio de 2012

Lançamento da Telhados de Vidro com traduções de Kleist

 Para quem estiver em Lisboa, lembro estes dois eventos do Bartleby Bar de Manuel de Freitas: inaugura-se exposição de Alvaro Aldrovandi e lança-se novo número de Telhados de Vidro, o 16, de abril de 2012.
Entre os textos do livro, está o primeiro poema de meu livro inédito Cálcio. Outros autores brasileiros presentes são Fabio Weintraub e Fabiano Calixto.
Na revista há um autor português sobre quem escrevi, Jorge Roque, e também Fernando Guerreiro e Manuel de Freitas, que estão entre meus favoritos.
No entanto, destaco que Telhados de Vidro publica uma série de anedotas e histórias breves de Kleist, traduzidas por Bruno C. Duarte.
Kleist, uma das leituras preferidas de Kafka, tinha um olhar muito arguto para as questões da justiça.  Em "Estranho caso judicial na Inglaterra" temos, em miniatura, uma história bem típica de Kleist, na qual um homem decide tornar-se jurado de um crime que ele mesmo cometeu.
Outra delas, "O magistrado embaraçado", soa como se tivesse sido invertida por "Diante da lei" de Kafka (não sei se o escritor tcheco foi inspirado por esta história e resolveu escrever-lhe o negativo): o personagem, em Kleist, afirma querer a lei, ela não é aplicada (como jamais era, e sim o costume), e isso o salva tanto da lei, que o condenaria à morte, quanto do costume, que o multaria. Há uma imaginação jurídica emancipatória em não adentrar as portas da lei.
Outra inversão pode ser verificada no fato de que o vigia seria condenado em Kleist, enquanto em Kafka esse é o personagem (análogo ao porteiro) que veda o acesso à lei.
Em artigo, Rodrigo de Campos de Paiva Castro vê uma inversão entre Michael Kohlhaas de Kleist e O desaparecido de Kafka: "Ao contrário do protagonista kleistiano, que triunfa por meio de sua derrota, mas ainda assim triunfa [...], o personagem kafkiano incorpora em si, com toda a sua força, o primado do fracasso." Talvez o mesmo se possa ver naquelas duas pequenas histórias - e a de Kafka, deve-se lembrar, foi publicada por ele em vida como um texto curto independente, mas é parte fundamental do romance postumamente lançado O processo, sobre o qual a literatura já produzida é quase tão infinita quanto o número de porteiros que veda o acesso à lei...
As traduções de Bruno C. Duarte ampliam as portas para Kleist.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Desarquivando o Brasil? Os nomes da Comissão Nacional da Verdade

Após alguns meses da aprovação da lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, o governo federal logrou indicar os nomes da Comissão Nacional da Verdade.
O presidente do Núcleo de Preservação da Memória Política do Memorial da Resistência em São Paulo, Ivan Seixas elogiou a escolha dos integrantes, destacando o nome de Rosa Maria Cardoso, que advogou para Dilma Rousseff e para ele, quando foram presos (e torturados) pela ditadura. Deve-se lembrar que os advogados de presos políticos eram poucos, seja pela qualidade que deveriam ter para criar saídas jurídicas apesar da abolição do habeas-corpus, seja pelos constrangimentos que tinham que passar: por vezes, eram também detidos e considerados tão subversivos quanto seus clientes.
Ela, provavelmente,  foi uma escolha pessoal de Rousseff.
Paulo Sérgio Pinheiro, com sua teoria e sua experiência nacional e internacional sobre a violência, é um nome muito interessante, bem como Maria Rita Kehl, que já atuava como jornalista na imprensa de esquerda durante a abertura política e abordou a ditadura militar em seu último livro, 18 crônicas e mais algumas. Se Pinheiro foi Secretário de Direitos Humanos na presidência de Fernando Henrique Cardoso, ela apoiou as políticas redistributivas do governo Lula (teve sua coluna no Estado de S.Paulo cancelada por esse motivo), sem ter exercido cargo público algum. 
Parece-me que eles representam a cota dos intelectuais na Comissão.
Vi quem criticasse a ausência de historiadores, porém Carlos Fico é muito convincente quando trata da impropriedade epistemológica da participação desses profissionais em uma Comissão da Verdade, que deseja criar uma "narrativa oficial, unívoca", o que não é o papel do historiador, ao menos desde o século XX. Neste vídeo de novembro de 2011, Fico trata dessa questão e explica as funções da Comissão - e elogia o nome de Paulo Sérgio Pinheiro, que já estava sendo cotado.
Na categoria dos juristas, que foi a mais contemplada na esolha presidencial, entrou o procurador-geral da república que atuou durante o governo Lula, Cláudio Fonteles (ele foi importante para a demarcação da Raposa Serra do Sol), um advogado que foi Ministro da Justiça de José Sarney, José Paulo Cavalcanti Filho, elogiado aqui por Alberto Dines a despeito de Sarney. Ele também é um recente biógrafo de Fernando Pessoa - ainda não li o livro. Do governo de Fernando Henrique Cardoso, temos outro ex-Ministro da Justiça, José Carlos Dias.
Esses três nomes denotam que o governo quis escolher membros que estivessem de alguma forma vinculados àquelas presidências, em um equilíbrio de representação política. Os anos Collor e Itamar Franco não foram contemplados, se bem entendi.
Gilson Dipp foi o perito designado pelo governo brasileiro para sustentar, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Araguaia (Gomes Lund e outros vs. Brasil) que a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 153 encerrava o problema da lei de anistia no Brasil e ponto final. Não era verdade, como se sabe. Talvez ele tenha entrado como um nome explicitamente comprometido com a lei de anistia.
O Ministro do STJ fez também declarações estranhas sobre o Judiciário brasileiro, embora o integre: "o Poder Judiciário brasileiro é um dos mais independentes e autônomos do mundo". Sabe-se, no entanto, que um dos problemas desse poder, destacado também na atuação do CNJ, ainda é a da independência dos juízes. A questão continua problemática no Brasil e foi objeto de relatório da ONU, a que referi na minha tese. Pelo menos no campo da expertise, Dipp parece-me que não era exatamente o melhor nome.
Por sinal, quem ouviu Fábio Konder Comparato discursar sobre aquele julgamento do STF não escutou a palavra "independência".
Comparato, nesta matéria publicada pela Revista Piauí, "Conciliação, de novo", de Consuelo Dieguez (a foto de abertura, de Eraldo Peres, é antológica: todos aplaudem a nova lei, exceto os homens brancos fardados), considerou, em antecipação, a Comissão Nacional da Verdade como "na melhor das hipóteses, um erro histórico; na pior, uma impostura".
Tentarei acompanhar se a prática da Comissão confirmará as palavras do grande jurista, ou se ela saberá superar os obstáculos que encontrará. Afinal, o processo político da justiça de transição já começou, mesmo antes da indicação dos nomes (eles já são um fruto desse processo), e não é possível prever em que desaguará.
Uma questão interessante é a da abrangência temporal dos trabalhos da Comissão, de 1946 a 1988, seguindo o artigo oitavo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Esse período, diferentemente do que publicou o Superior Tribunal de Justiça  e o blogue do Ministério da Justiça, não abrange o Estado Novo, que durou de 1937 a 1945 (vejam como o trabalho da Comissão será importante também para informar os Poderes políticos). Carlos Fico acertadamente afirma que essa escolha deu-se por acordo político para tirar o foco do período da ditadura militar. Decerto, mas pode também levar ao estudo das iniciativas golpistas do período 1946-1964, em que houve eleições regulares, mas também conspirações e violações aos direitos humanos.

P.S.: O novo biógrafo de Fernando Pessoa ousa terminar um poema inacabado do poeta português e, ainda por cima, colocando Cristo no meio.
Pessoa defendia o Paganismo... Vejam a singular cena a partir de 4'43'' da segunda parte da entrevista indicada nesta ligação.
P.S.2: O sítio do STJ retificou o erro histórico, deixando-o um pouco menos torto; agora, se diz que "O período vai do fim do Estado Novo"; ainda não está muito certo, pois esse regime acabou no ano anterior, 1945.

domingo, 6 de maio de 2012

Marxismo para administradores ou políticos contra a poesia, novamente:

Certamente como sua forma particular de comemorar o aniversário de Marx no dia anterior, a Folha de S.Paulo publicou artigo de membro do DEM e presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo, Rogério Amato.
O título da peça jornalística, "Lições de administração com um poeta", pareceria sugerir apenas mais um exemplo do nível abissal teórico de livros de administração que citam, descontextualizados, grandes autores que nada têm que ver com a área, numa forma lucrativa de apropriar-se da palavra alheia. O leitor, agradecido, sente-se mais sofisticado e erudito sem ter precisado realmente ler o autor traficado. 
Imaginem best-sellers cujos títulos são suficientes para revelar a indignidade teórica, como "Hildegard von Bingen e a mulher executiva", "Lições de Empédocles para empresas sustentáveis", "A República de Platão e o capitalismo humanista" etc.
Aparentemente seguindo tal linha, o curioso artigo do membro do DEM menciona Vladimir Maiakóvski (esquecendo o acento agudo) e faz uma citação bem iletrada de certo poema, ignorando completamente a versificação e a estrofação. Em um exemplo óbvio de non sequitur, parte daí para considerações neoliberais de que o Estado não deve se meter nos negócios privados, reclamando da determinação da Anvisa de venda pelos atendentes - ah, como a indústria farmacêutica ama a automedicação!
Suas considerações desembocam no agronegócio, "ameaçado por riscos regulatórios, frutos de pressões externas que não parecem atender aos interesses nacionais". Conhecemos o argumento, usado em defesa do Código Florestal aprovado e da usina de Belo Monte: a devastação é nossa, a preservação é gringa.
Amato reclama ainda da legislação tributária e, com uma citação completamente inexistente de Maiakóvski, resume a questão.
Teria o jornal escolhido, para ironizar a memória de Marx, um artigo que demonstra cabalmente que um dos maiores poetas comunistas (suicidado pelo stalinismo) era um defensor do neoliberalismo na versão deste empresário? Seria uma ironia fatal, jamais captada pelas traduções dos irmãos Campos e Boris Schnaiderman, que dão a entender que ele era um poeta de esquerda...
Assim pensaria o leitor que desconhece a poesia brasileira contemporânea, o que será a ampla maioria dos leitores daquele jornal. Os outros saberão que o erudito político do DEM cometeu um tremendo erro e atribuiu ao pobre poeta russo, transformado em defensor do neoliberalismo, um poema de Eduardo Alves da Costa, "No caminho, com Maiakóvski". Na ligação, poderão ler o poema tal como ele é, e não na citação estropiada e com atribuição errada de autoria feita pelo  empresário e membro do DEM.
A deficiente intimidade de Amato com a literatura gerou um erro que não é original (nem isso logrou fazer): bem antes dele, Roberto Freire (o escritor, que esteve na moda décadas atrás) usou um trecho do poema como epígrafe do livro Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu e, confundindo autor com personagem, atribuiu-o ao russo. Certamente não tinha nem mesmo notícia do livro de Eduardo Alves da Costa - vejam como é constrangedor não citar da fonte original...
O poeta brasileiro chegou a agradecer a Roberto Freire pelo engano, pois, como esse autor era um best-seller, tornou conhecido o poema, que "se transformou numa das bandeiras contra a ditadura" (No caminho, com Maiakóvski, edição de 1987 do Círculo do Livro, p. 203). Seria estranho que o poema pudesse legitimamente ser apropriado em considerações de um membro de um dos partidos herdeiros da ditadura militar.
O empresário Amato, ao cometer o péssimo passo metodológico de querer tomar poesia como manual de administração, o gravíssimo erro político de confundir políticas públicas com simples problemas de gestão, ainda logrou este erro crasso literário, o que o habilita a ser um crítico de poesia da mesma altura que José Sarney e Garotinho são poetas.
Faço notar ainda que, ao retirar do patrimônio literário brasileiro aquele poema e entregá-lo a uma literatura estrangeira, ele incorre exatamente na mesma falha que julga ver nos que desejam regular as práticas do agronegócio... Tal é o entreguismo da direita!