O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Tristão nu, Gerald Thomas no Supremo Tribunal Federal


Talvez alguns não o saibam, porém Gerald Thomas teve sucessos de público e de crítica no teatro brasileiro (um exemplo foi “Um circo de rins e fígados”, com Marco Nanini), e escândalos também. Um momento para mim inesquecível foi a encenação da ópera Tristão e Isolda (Tristan und Isolde), do compositor alemão Richard Wagner, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em agosto de 2003.
A concepção era fascinante: ela assumia a neurose do casal protagonista e transformou o filtro do amor em uma droga contemporânea, a cocaína (que entusiasmou Freud por breve período), o que me pareceu uma feliz tentativa de apresentar, inclusive visualmente (o pó era atirado no ar em momentos-chave da partitura) o tremendo mal-estar que Wagner cria desde o prelúdio, com as indefinições tonais e a melodia infinita. Esse prelúdio, de que provém tanto da música do século XX, ainda é capaz de produzir perturbação nos ouvintes, principalmente naqueles que só conhecem o repertório dos séculos XVIII e XIX.
A estreia dessa obra foi mal recebida - e mesmo Wagner chegou a dizer que somente as apresentações medíocres  salvariam-no. As grandes execuções, que assumissem toda a radicalidade daquele teatro e daquela música, não seriam aceitas pelo público da época. Wagner estava, como outros poucos homens do teatro do século XIX (Victor Hugo, certamente, também Büchner e poucos outros), criando contra o gosto corrente do público - e acertou nessa aposta contra o consenso.
Penso que encenar esta ópera de Wagner de forma apaziguadora é trair profundamente o compositor (Nietzsche, em Ecce homo, afirmou que, em Tristão, Wagner encontrou seu insuperável e recuou com Os Mestres Cantores de Nurembergue e O Anel do Nibelungo). Gerald Thomas resolveu não facilitar para ninguém. Boa parte da ação passava-se em um consultório em Copacabana, e o psicanalista, um papel mudo introduzido pelo diretor cênico, era Sigmund Freud de Vasconcellos... Dessa forma, Gerald Thomas ressaltava a universalidade da história, que poderia se passar no Rio de Janeiro então (digamos que ele respeitava mais o caráter arquetípico do libreto do que os puristas wagnerianos que gostam de ver um dragão de brinquedo cuspindo fogo no Siegfried...), se encenada daquela forma.
A presença de Freud (mesmo abrasileirado), além de ressaltar as leituras psicanalíticas da obra de Wagner, que possuem muita pertinência, gerou outra tensão, brilhante: inserir o judaísmo na obra de um autor abertamente antissemita, que atacou Mendelssohn e Meyerbeer, não reconheceu sua dívida com Heine.... Apesar da propaganda racista feita pelo compositor, vários dos principais intérpretes de Wagner foram e são judeus, como hoje Daniel Barenboim, e, no passado, Alexander Kipnis e Otto Klemperer, para citar apenas dois dos músicos que tiveram de deixar a Europa depois da barbárie alemã nos anos 1930 e 1940. No próprio tempo de Wagner, devemos lembrar de Lili Lehmann, que foi a primeira Isolda nos Estados Unidos e cantou uma das ninfas do Reno na estreia do Anel do Nibelungo. Devemos lembrar também do maestro Hermann Levi.
O grande regente tornou-se indispensável para reger a complexa música de Wagner. Quando o compositor criou sua última obra para o palco, Parsifal, que ele considerava “sagrada”, Levi era o único intérprete que ele julgava à altura de reger a difícil peça, seu canto de cisne. Mas exigiu que Levi se batizasse para não “profanar” sua obra!
O maestro sentiu-se, naturalmente, muito ofendido e recusou-se a regê-la. Wagner teve de pedir desculpas e voltar atrás, o que não foi um ato de tolerância, como lembra Gutman (na biografia Richard Wagner: The Man, His Mind and His Music), mas uma capitulação.
Todos sabem que o ditador alemão nos anos 1930 e 1940, além de adorar Wagner, comungava do mesmo antissemitismo do compositor. Por isso, foi interessantíssimo ver o que Gerald Thomas concebeu para a montagem de Tristão e Isolda. Especialmente no segundo ato, quando Tristão decide ir para o exílio com Isolda (o que não dá certo). Vários judeus hassídicos, por trás de uma cortina (que poderia ser uma grade) assistiam à cena, o que, para mim, evocava aos refugiados. Um personagem wagneriano que sofreria o mesmo desterro que Wagner desejava para os judeus.
Plasticamente, era tudo muito interessante: no prelúdio, em um fortíssimo da orquestra, uma atriz que fazia um papel mudo de paciente de Freud, no consultório, jogava pó branco no ar – o efeito era muito belo. No segundo ato, quando a paixão de Tristão e Isolda se consuma, o consultório estava todo revirado, o que se coadunava com o clima da música e as palavras de Isolda, já entregue ao delírio do amor. Nunca me esqueço que, num efeito dramático surpreendente, Tristão surgiu de trás de um móvel caído – ele estava lá o tempo todo, e também entregue ao delírio.
No terceiro ato, contudo, o conceito fracassava. A tentativa de criticar o mundo da moda não se integrava aos atos anteriores, tampouco à música, nem mesmo conseguia constituir um drama autônomo. E, para o Liebestod, ou o que mais propriamente se chama de iluminação de Isolda, o diretor sucumbiu à solução mais batida, mais óbvia: simplesmente mergulhar a cantora na luz. A imaginação cênica falhou no terceiro ato.
A execução musical foi, de fato, uma execução, mas no mau sentido. O regente Silvio Barbato tentava controlar a música, o que lhe era difícil tecnicamente; as dificuldades não deixavam sobrar espaço algum para a interpretação. A soprano poderia, no máximo, cantar Mimi; ficou o tempo todo flutuando vocalmente, sem jamais assumir as frases dramáticas de Isolda. A mezzo-soprano era inexistente, com um vibrato comparável às ondas que quase submergiram o navio no terceiro ato da história. O jovem baixo também não estava à altura dos acontecimentos (e fez-me lembrar do conselho de Flagstad aos jovens cantores: “Leave Wagner alone”). Kurwenal foi entregue a um barítono brasileiro de muito escassos recursos vocais, com estranho timbre que se assemelha ao grito, mesmo quando tenta cantar piano (vi recentemente um Don Pasquale com ele, foi realmente terrível; se tivesse cantado em um teatro com alguma tradição, a vaia seria certa). Todo o combate com Melot no terceiro ato foi cortado (sim, a ópera foi mutilada), o que, para mim, se deveu provavelmente ao fato de que seria muito improvável que aquele barítono conseguisse cantar aquela cena. Dessa forma, Kurwenal apenas desmaiou no palco, morrendo por razão nenhuma...
(A propósito, para ler uma apreciação bem oposta à minha, mas de alguém que não conhecia a ópera, pois nem mesmo percebeu a mutilação musical da obra, indico esta crítica: http://www.estadao.com.br/arquivo/arteelazer/2003/not20030818p2292.htm)
Não fui embora, apesar da má qualidade da execução musical, por causa do tenor, John Charles Pierce. É raro um cantor que consiga fazer jus ao árduo papel do Tristão. Por causa dele, esperando o que ele faria no terceiro ato, fui até o fim – e não me decepcionei.
Fechadas as cortinas, nunca senti tanto constrangimento. O público aplaudiu com fervor os maus cantores, inclusive a Isolda que apenas cantarolou o papel (e, sem muita ética, apontou com desdém para o cenário nos cumprimentos) e o fraco maestro. O tenor merecia uma ovação cinco vezes maior.
Enfim, Gerald Thomas apareceu, com os apetrechos da Brünnhilde, pronto para defender-se... Aplaudi, mas não percebi ninguém mais fazendo isso. Nunca tinha visto uma vaia tão monumental – era uma vaia que se via, e não apenas se ouvia.
Eu estava na galeria, não consegui ouvir os xingamentos antissemitas que parte do público na plateia vociferava, segundo o diretor, que se refere brevemente ao episódio aqui, explicando que se tratava de membros do International Richard Wagner Forum: http://www.nytimes.com/2003/11/11/arts/the-case-of-the-operatic-moon-in-rio-a-drawer-dropping-director-is-due-in-court.html
Como não queria ver o artista sendo destroçado, desci as escadas daquele Teatro, que estava escrevendo uma das páginas mais constrangedoras de sua história.
Subitamente, a vaia tornou-se ainda mais forte: parecia sólida, um muro no ar. Eu já estava no nível da plateia, entrei e vi a bunda de Gerald Thomas desnuda. Foi a resposta do artista...
A vergonha do Rio de Janeiro, que se mostrou extremamente provinciana e tacanha em termos musicais, não pararia aí. O secretário de segurança do governo Garotinho, Álvaro Lins, renomado, além de sua controversa atuação na administração estadual, por ter sido, em 2008, cassado por acusações de formação de quadrilha, facilitação de contrabando, lavagem de dinheiro e corrupção ativa (http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,stj-mantem-cassacao-de-ex-deputado-alvaro-lins,597241,0.htm), apresentou queixa contra o diretor por ato obsceno em razão da bunda, e por simulação de masturbação (http://www2.glb.com.br/manchetes/noticias.asp?639512). O Ministério Público estadual aceitou-a, em momento inolvidável dessa instituição, e a promotora de justiça Gisela Alexandre Brandão propôs que o diretor reconhecesse sua “culpa” (http://www.conjur.com.br/2003-nov-11/audiencia_gerald_thomas_somente_ano_vem).
A justiça fluminense, em outro momento de provincianismo, não concedeu habeas-corpus para o diretor, permitindo que a ação prosseguisse. A ação penal chegou ao Supremo Tribunal Federal. Gerald Thomas impetrou habeas-corpus para trancá-lo e, finalmente, obteve êxito.Mas ele não foi fácil:Carlos Velloso e aquela ministra bastante conservadora, Ellen Gracie Northfleet, indeferiam o pedido. Celso de Mello e Gilmar Mendes votaram a favor do paciente. Com o empate (Joaquim Barbosa, que não ouviu o relatório, não votou), a ação foi trancada. Tratou-se do Habeas-Corpus 83.996-7 RJ (http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=384865), julgado pela Segunda Truma do STF em 17 de agosto de 2004. O relator foi Carlos Velloso; como acabou vencido, Gilmar Mendes escreveu o acórdão. Ele havia pedido vista do processo e proferiu o melhor voto.
O relator argumentou que não seria possível, na sede do habeas-corpus, verificar se a conduta do diretor havia sido atípica; aparentemente, a ação se enquadraria no tipo do ato obsceno e, por isso, a ação penal deveria prosseguir.
Gilmar Mendes (que tem algumas posições progressistas, o que não é o caso destas: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/07/terceirizacao-e-terror-stf-e-o-solo.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/11/antigo-regime-e-magistratura-no-brasil_14.html) acolheu a tese da defesa de que o diretor não estava agindo com o fim de auferir prazer sexual: "ainda que se cuide, talvez, de manifestação deseducada e de extremo mau gosto, tudo está a indicar um protesto ou uma reação - provavelmente grosseira - contra o público." (grifo do original).
Ademais, dever-se-ia lembrar do contexto do acontecimento: na própria ópera havia ocorrido simulação de masturbação e "Estava-se diante de um público adulto, às duas da amanhã, no Estado do Rio de Janeiro."
Não se poderia sustentar, portanto, que a conduta ofendeu o pudor público.
Ainda mais importante foi lembrar que não se tratava de questão que deveria ser trazida para o direito penal. Escreveu ainda Gilmar Mendes: "a sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados a esse tipo de situação, como a própria crítica, sendo dispensável, por isso, o enquadramento penal." Em caso contrário, a própria liberdade estaria ameaçada (por sinal, essa ameaça é uma das consequências do populismo penal).
O caso, de fato, era político, muito além da pequena política das autoridades do Executivo, do Judiciário e do Ministério Público contra o diretor, a quem os artistas (e o público, não no sentido apenas artístico) devem agradecer por ter rejeitado o acordo de "reconhecimento da culpa". Ele teria sido mais um passo perigoso, fomentado pelo governo conservador de Garotinho, contra a liberdade em nome de certos valores morais.
Depois desse voto, Ellen Gracie fez uma estranha consideração, na qual concordava com Gilmar Mendes, porém manteve o voto contra o paciente, pois ele mostrou desprezo do público, enquanto uma figura "bem mais qualificada" como Victor Hugo (na ocasião do tumulto provocado pela peça Hernani) adotou "postura de humildade"... Note-se, nesta tentativa, felizmente frustrada, de usar o processo como sermão, o incômodo moral da jurista conservadora.
Esse incômodo é  gerado pela parte mais importante da obra de Gerald Thomas como diretor e autor, e é um dos responsáveis pela sua força. No entanto, creio que uma leitura crítica da trajetória desse artista devesse verificar também os elementos conservadores em sua arte. Não sou nem de longe a pessoa mais indicada para analisá-los (vi apenas algumas de suas montagens), mas eles existem, recobertos pelo brilhantismo das encenações, e provavelmente exigem esse brilho. Mesmo que ele seja a luz de um lugar-comum, à semelhança do final de Tristão e Isolda no Rio de Janeiro.

domingo, 21 de abril de 2013

"Andei na rua e fiquei com farrapos do que vi": Alberto Pimenta, poesia e política


Eduardo Pitta, em recente coluna, perguntou sobre a "aparente abulia política dos novos escritores" portugueses, como Rui Cardoso Martins, Gonçalo M. Tavares, Afonso Cruz, Alexandre Andrade, Valter Hugo Mãe e outros, que não estão a tratar da "falácia europeia, do desemprego sem freio, do empobrecimento geral, dos direitos das minorias, do arbítrio das agências de notação financeira": http://daliteratura.blogspot.com.br/2013/04/o-sexo-dos-anjos.html
Talvez seja um problema geral dos ficcionistas. Em certa poesia portuguesa, temos outra coisa. Alberto Pimenta trata desses temas há muito. Seu primeiro livro, O labirintodonte (1970), já o fazia com humor - veja-se o poema "a individualidade de meu general", em que os generais e as moscas são igualmente determinantes para o deflagrar das armas.
Recentemente, em razão de seu último livro, De nada (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/02/alberto-pimenta-e-de-nada-ou-revolucao.html), concedeu longa entrevista ao Jornal de Letras, Artes e Ideias (ano XXXIII, número 1108, 20 de março a 2 de abril de 2013), em que afirmou: "Não consigo ver as atividades dos poderosos sem uma ponta de farsa. São uma ópera bufa, faz-me rir." Indagado se sua poesia é tragicômica, responde que "Na maior parte dos poemas que tenho feito começamos por rir imenso e terminamos com um nó na garganta." É verdade.
Em vários trechos da entrevista, como no livro, ele trata da crise europeia e do empobrecimento:
É mais frequente a minha poesia ocupar-se de assuntos que me são 'exteriores'. Neste caso, posso dizer que este livro foi feito na rua, com os farrapos do que se ouve em certos barros, como este onde morro, do que vejo e do que leio nos títulos de jornais. Não tenho televisão.

Estive no Porto, no "Gato Vadio", a falar sobre o livro e disse precisamente que estamos num momento histórico, porque é a primeira vez, na História da Humanidade, que há uma revolução dos ricos contra os pobres.

[...] o dinheiro é sempre obscuro, como o enriquecimento é sempre ilícito. Dantes, dizia-se que a aristocracia era de sangue azul, agora é monetária. Aquele senhor banqueiro que disse que era preciso aguentar como os sem-abrigo, merecia uma medalha de sinceridade.
Escrevi um poema, que publiquei n'As moscas de Pégaso, em 1998, ainda o euro não existia, mas já se falava dele. E concluía. "Mais fácil do que Hitler pensava".


Voltou a escrevê-lo em De nada, no poema sete da segunda sequência do livro:
as graças do poeta Oskar Panizza
foram a sua desgraça
por causa dum Concílio de amor
esteve um ano na prisão
não voltou o mesmo

mas isso
foi ainda no Iº Reich
para mais na Baviera
depois veio o IIº Reich
e depois o IIIº
e agora o IVº
chamado Europa [p. 81]


No Jornal de Letras, logo após a entrevista, há um texto de Maria Irene Ramalho, professora e ensaísta que há muito escreve sobre o autor. Em "Não é preciso inventar", lemos estas graves palavras: "A poesia não é invenção. A poesia é descoberta, e descobrir é que dá trabalho: não se descobre sem aprender a aprender. A arte do poeta assenta na assumpção plena da vida [...]"
Em sua produção ensaística, Pimenta afirma algo semelhante, na possibilidade de criar novas vivências por meio da arte:
A vivência, a experiência, eis o único delgado fio concreto que liga o sujeito com o objecto de seu conhecimento. O significado é a experiência, e significar (ou concretizar o símbolo) é fazer experimentar, ou dar vida, criar: sentir e fazer sentir. Para o crucificado a cruz não é símbolo, diz lapidarmente Julián Rios. A arte literária (como toda a arte) é a tentativa eternamente arruinada pelos hermeneutas e pelos semióticos, e eternamente recomeçada, de criar possibilidades de vivência nova através da criação de símbolos novos. É por isso que há maior afinidade entre um poema e um trecho musical que entre o mesmo poema e um trecho do código civil, sendo por isso também que a redução da análise literária à análise linguística do texto é um abuso insolente. (Cinco teses para uma determinação do simbólico. In: PMENTA, A.; BARROS, E; BARRENTO, J.; CENTENO, Y. K. A (más)cara diante da cara: dos símbolos do homem e do homem como símbolo. Lisboa: Editorial Presença, 1982, p. 52)
Os happenings que tem feito são um exemplo dessa ética, que ele voltou a explicar aqui:

Creio que a ética do artista só poderá ser no mais alto grau possível a ética do indivíduo-artista. Vale para Céline e para Picasso. O resultado da qualidade estética pode ser independente da ética, mas não o é do lugar que desempenha na história da escrita humana. Dificilmente se poderá aceitar uma escrita pública que não incite cada um a procurar o espaço de liberdade que lhe cabe sem qualquer espécie de impedimento. (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/10/alberto-pimenta-tortura-e-metafisica.html)

Um dos livros de Pimenta trata desta descoberta no tom mais autobiográfico a que ele chegou - tom raro, pois, de fato, ele se ocupa principalmente de assuntos "exteriores" a sua personalidade (trata-se de uma de suas marcas pessoais): Repetição do caos (Lisboa: &etc, 1997). Escolhi trechos desse livro para começar seções da antologia A encomenda do silêncio (São Paulo: Odradek, 2004).
Em um dos que não incluí, Pimenta conta uma brincadeira, feita entre os oito aos nove anos, com o pai e o tio, o jogo da Glória. Era mais um jogo com casas que deveriam ser percorridas segundo os lances de dados.
O problema é que eles tinham instituído cálices de bebidas alcoólicas para o vencedor: a glória devia inebriar mesmo. De modo que precisavam de mim para aquecer o jogo, mas trapaceavam quando fosse necessário para eu não ganhar. Eu percebia, amargurava-me, reclamava, tudo em vão. Eles eram a autoridade, e eram dois a afirmar que eu não estava naquela casa em que estava, mas na outra ao lado.
A minha mãe indignava-se: Arranjem outro prêmio para ele, mas não façam uma coisa dessas. Eles riam-se.
O caso é que eu, como todo cidadão miúdo, achava-me também com direito ao bagaço dos grandes, e eles fingiam que sim: daí a necessidade de todas as trapaças por parte deles.
É capaz de explicar muito, ou quem sabe se tudo, daquela confusão que impingem nas aulas de História.
Temos aí um aprendizado precoce do poder e da cidadania... Que buscou meios de expressão ainda antes da descoberta da poesia:
1956: uma noite prenderam-me por eu berrar em plena rua e a plenos pulmões que a polícia, a autoridade em geral, eram tudo filhos da puta.
É extraordinária minha precocidade: hoje não seria capaz de dizer melhor. Mas acrescentava: Os outros também.
Pimenta foi ser Leitor de Português em Heidelberg em 1960, e o choque linguístico, explica na entrevista, fez com que pouco escrevesse nessa década, e o primeiro livro somente fosse publicado em 1970. Na década de seu retorno a Portugal depois do exílio forçado pelo salazarismo, escreveu e lançou seu livro mais traduzido, Discurso sobre o Filho-da-Puta (1977), cuja última edição brasileira foi responsabilidade da Achiamé em 2003.
Para quem não o leu, um exemplo desta prosa, que repete infinita e hipnoticamente a expressão do título, representando a ubiquidade do personagem:
Há milhares e milhares de lugares que não têm outra valia senão serem lugares a que os filhos-da-puta dão valia, nem outro préstimo que não seja dar ao filho-da-puta o prestígio da sua qualidade. Há milhares e milhares de filhos-da-puta que não têm mais-valia senão ocuparem os lugares feitos para serem ocupados pelos filhos-da-puta que os ocupam, nem outro préstimo que não seja o prestígio de os ocuparem. É óbvio que o lugar do filho-da-puta ocupa é muito importante para o definir, pois quase sempre o filho-da-puta ocupa o lugar que melhor lhe assenta  e portanto mais lhe convém, ou melhor lhe convém e em que melhor se asssenta, e, conforme o lugar que ocupa, assim o filho-da-puta se comporta.  Há lugares altos e baixos, largos e estreitos, brutos e delicados; e, do mesmo modo, há filhos-da-puta altos e baixos, grandes e pequenos, ordinários e extraordinários. É extremamente raro haver altos filhos-da-puta a ocupar baixos lugares; menos raro é o caso inverso, de baixos filhos-da-puta a ocupar altos lugares [...]

Paro aqui porque lembrei de certos exemplos de presidências de comissões no Congresso Nacional brasileiro. O personagem realmente é universal, e, naquela entrevista, Pimenta diferencia esta vertente de sua literatura de outra, que tem em De nada o título mais recente:
Até há poucos anos, essa consciência social aparecia, na minha poesia e nos atos poéticos, não referida diretamente a casos contemporâneos mas transposta para uma espécie de condição humana, social, de todos os tempos. O expoente máximo é o Discurso sobre o filho da puta. Este livro não. De nada é um registo da vida contemporânea.
Nessa vida, tal figura encontra diversas encarnações, como as que aparecem no poema seis da segunda sequência em De nada:

e se o desmentido
é a presença
do passado no presente
a verdade é a presença
do presente no passado

[...]

depois
das decisões
de 25 cimeiras europeias
os que as tomaram
discutem
para saber se de facto
as tomaram

mas
os professores todos
dizem que a verdade
não é um conceito científico
assim se provando
e deus sabe
que a verdade
precisa do desmentido
para alcançar sua completude

não há excepção à regra
até a jovem e elegante deputada Fabra
que no parlamento em Madrid
disse cheia de salero
anunciavam-se então
cortes de ajudas aos desempregados
que se hodan

depois
no intervalo que logo se seguiu
carinhosa e afectuosamente
rodeada de colegas do partido
que de cabeça levemente inclinada
à altura do decote
lhe manifestavam sua compreensão
confessou
desmentindo
que se referia aos deputados da oposição
que esses sim
mereciam a foda
com o que deixou os colegas
desiludidos e desencantados

fazem falta deputadas destas
jovens elegantes
desassombradas modernas concisas
e com o pronto-a-despir
chamado desmentido
na ponta da língua [p. 78-79]
Este último livro não está nem um pouco sozinho nessa vertente que mergulha na matéria contemporânea. Indulgência plenária (2007;  http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/11/alberto-pimenta-tortura-estupro-e.html), sobre a tortura e assassinato da transexual brasileira Gisberta Salce por jovens católicos do Porto, e Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta (2005; http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/04/antes-das-redes-sociais-pimenta-entre.html), sobre a invasão dos EUA no Iraque, são alguns dos exemplos recentes.
A entrevista dada ao Jornal de Letras está disponível para os assinantes (http://visao.sapo.pt/gen.pl?sid=vs.sections/25193). Em outra recente, dada a Jacinto Silva Duro, no Jornal de Leiria, ele trata também do último livro e de sua trajetória artística: http://bocaaudiolivros.blogspot.com.br/2013/03/hoje-nao-nos-chamam-escravos-mas-temos.html
Nela, voltamos a ler que "Na apresentação do meu último livro, no Porto, referi que o que ele contém são poemas de rua. Andei na rua e fiquei com farrapos do que vi." E mais:
Está tudo escrito nos manuscritos histórico-filosóficos de Marx. A diferença é entre "viver do trabalho" e "viver dos rendimentos", como o capitalista. Está tudo lá. Hoje, não nos chamam escravos, mas temos dono. Todos temos dono. Mal nascemos, já somos registados.
Nessa indignação, ele se encontra com um poeta que está em posição bem diversa no espectro ideológico, o aristocrata (não em realidade...) Fernando Pessoa. Em "Lisbon revisited", de Álvaro de Campos, temos o famoso trecho: "Queriam-me casado, cotidiano, fútil e tributável?"


P.S.1 : Infelizmente ratificando minha tese sobre a "inexistência de Alberto Pimenta" (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/07/ainda-inexistencia-de-alberto-pimenta.html), o poeta é chamado de Alfredo Pimenta na última entrevista...

P.S. 2: Boaventura de Sousa Santos, que é um bom poeta, também a ratifica: "Nunca fui capaz de fazer poesia política ou de combate. Pelo contrário, na poesia não procuro nada disso. Sou muito influenciado por Herberto Helder, Ramos Rosa ou Alberto Pimenta, o grande poeta esquecido. Mas tudo o que sai do cânone poético português não é divulgado."

sábado, 20 de abril de 2013

Relatoria do Direito à Cidade e direito à moradia em Belo Horizonte


Recebi este cartaz para divulgação. Dias 21 e 22 de abril, a Relatoria do Direito Humano à Cidade realizará uma missão em Belo Horizonte para averiguar as violações ao direito à moradia, agora causadas principalmente pelos empreendimentos para a Copa do Mundo.




Trata-se de iniciativa da Plataforma Brasileira de Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, ou Dhesca (http://www.dhescbrasil.org.br/).
Nos idos de 1995, participei de um seminário, "Os desafios da cidade informal", preparatório em Belo Horizonte para a conferência Habitat da ONU, realizada no ano seguinte. Ele resultou em um livro de quase 600 páginas, cheios de experiências a respeito de assentamentos informais, participação popular, serviços urbanos, tecnologia para infra-estrutura urbana etc. Havia muitos estrangeiros. A prefeitura havia organizado tudo de forma que políticos, acadêmicos e técnicos monopolizavam as falas, mostrando bem sua concepção do que significavam os programas populares de habitação: tratava-se de algo para silenciar a população.
No entanto, após a fala de procuradoras do Município, na vez das perguntas do público, um representante de favelas da cidade tomou a voz para fazer a denúncia: o programa de regularização criado pelo Município exigia na prática que os imóveis tivessem saneamento básico, que não estava sendo implantado pelos poderes públicos. Isso deixava de fora a esmagadora maioria das moradias nas favelas... E era a prefeitura de Patruas Ananias, no entanto elogiada por ter ampliado a participação popular, o que, de fato, havia ocorrido.
As procuradoras apenas sorriram, constrangidas, e nada responderam. Não me esqueço que alguns estrangeiros riram, e outros ficaram boquiabertos.
Percebi então que não se podem criar eventos como esse, muito menos as políticas congêneres, sem a voz da população interessada. Trata-se de condição simultaneamente metodológica (para o sucesso técnico dessas políticas), política e jurídica (trata-se de uma exigência do Estado democrático), a que a Plataforma Dhesca parece-me bem atenta.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Desarquivando o Brasil LVII: Vigiando os trabalhadores


A ABIN vigia também os sindicatos, revelou o Estado de S.Paulo (http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,documento-da-abin-confirma-a-vigilancia-de-sindicalistas,1018786,0.htm), desmentindo as afirmações errôneas do general responsável pelo Gabinete da Segurança Institucional da Presidência, José Elito. Neste caso, trata-se de sindicatos de portuários mobilizados contra a MP dos portos.
No tocante ao Movimento Xingu Vivo e aos índios, estas são as últimas notícias sobre a possível espionagem federal, "Xingu Vivo questiona ABIN sobre espionagem. ABIN nega. Suposto agente confirma": http://www.xinguvivo.org.br/2013/04/08/xingu-vivo-questiona-abin-sobre-espionagem-abin-nega-suposto-agente-confirma/
O general José Elito e o diretor-chefe da ABIN, Wilson Roberto Trezza, deverão ser convocados para prestar informações na Câmara dos Deputados: http://pt.globalvoicesonline.org/2013/04/11/brasil-espionagem-belomonte-suape-abin/
Trata-se de mais pinceladas de um quadro que inclui a alteração inconstitucional da Força Nacional de Segurança Pública (ver artigo de João Rafael Diniz: http://reporterbrasil.org.br/2013/04/a-nova-guarda-pretoriana-de-dilma-rousseff/; parece-me haver, no caso, violação do princípio federativo), que é usada para reprimir grevistas (http://candidoneto.blogspot.com.br/2013/04/forca-nacional-confina-grevistas-em.html).
Há uma antiga tradição dos órgãos de segurança brasileiros em reprimir movimentos dos trabalhadores. Lembremos dos operários anarquistas da República Velha, alguns expulsos clandestinamente pela polícia de São Paulo em 1917 (sobre o assunto, pode-se ler, de Christina Roquette Lopreato, O espírito da revolta: a greve geral anarquista de 1917, publicado em 2000 pela Annablume). A perseguição aos anarquistas suscitou uma incoerente jurisprudência de expulsão do Supremo Tribunal Federal.

Escrevo esta nota, porém, não sobre esse tempo, tampouco sobre o de Vagas, e sim sobre a ditadura militar. Uma campanha por reajustes salariais poderia então ser classificada como uma das "Vulnerabilidades, no Campo Psicossocial, que afetam a  manutenção das Instituições, da Lei e da Ordem", de que é exemplo este relatório confidencial de 1975, elaborado pelo Ministério do Exército, que pode ser lido no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Já o citei nesta conferência: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/10/desarquivando-o-brasil-xxi-o.html
Existem diversos relatórios de espionagem em organizações sindicais. O problema não se restringia à eventual presença de comunistas nessas entidades: uma simples reivindicação trabalhista poderia ser encarada como um ato contra a ordem.


Dessa forma, a polícia política participou da repressão a greves. Entre diversos casos, escolhi um episódio em que a Auto-Viação Tânia telefonou ao DEOPS de São Paulo queixando-se de que metade dos trabalhadores havia faltado ao serviço, provavelmente em virtude do descontentamento com o reajuste salarial, o que teria estimulado pelo sindicato. O caso foi remetido à Divisão de Ordem Social do DEOPS.
Não pesquisei o que aconteceu depois. O documento, Relatório do Plantão do Departamento Estadual de Ordem Política e Social do período das 12 horas do dia 13 de junho de 1976 ao mesmo horário do dia seguinte, também pode ser lido no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
Tratava-se de um regime que se marcou pela acelerada concentração de renda e pela fraude nos índices de inflação para prejudicar os reajustes dos trabalhadores (obra do Ministro da Fazenda de Médici, Delfim Neto, que continue a ser um nome de prestígio para o partido que controla a atual administração federal).
O caráter de classe da ditadura militar era bem marcado, o que ressalta a importância de esclarecer os laços da repressão com o empresariado nesse período.



Interessava aos órgãos de repressão e ao empresariado a vigilância. Outro exemplo da preocupação em controlar os trabalhadores estava no Conceito Estratégico Nacional de 1969, documento ultrassecreto que pode hoje ser lido no Portal Memórias Reveladas. Ele foi concluído nos últimos dias do governo de Costa e Silva, e previa que seria mantidos "os documentos legais básicos de interesse da Segurança Interna, destinados a assegurar a continuidade da obra revolucionária": a Constituição Federal, a Lei de Segurança Nacional (atualmente, vigora outra, aprovada na época do General Figueiredo), a Lei de Imprensa (que foi considerada não recepcionada pela Constituição de 1988 em razão do julgamento da ADPF n. 130 pelo Supremo Tribunal Federal em 2009) e a Lei de Greve (a lei federal nº 4330 de 1964, revogada em 1989 pela de nº 7783).

É nessa época em que teremos a notável jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que ergueu a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), decreto-lei do Estado Novo (que segue vigente), acima da Constituição da República e dos tratados internacionais, assunto que abordei em minha tese.
A Constituição de 1969 (que alguns consideram simplesmente uma gigantesca emenda à de 1967) previa a liberdade sindical, e a Convenção n° 110 da Organização Internacional do Trabalho também o fazia para "trabalhadores em plantações". No entanto, a CLT previa a tutela dos sindicatos, exigindo a autorização e o reconhecimento oficiais para sua existência.
A Convenção acabou sendo denunciada pelo Estado brasileiro em 1970 (ou seja, o Brasil deixou de fazer parte desse tratado, coisa bem compreensível, levando-se em conta que Médici estava no poder).
Em 1977, o STF julgou procedente a representação de inconstitucionalidade n° 803 contra o decreto que publicou a Convenção. Permito-me citar este velho trabalho, Produção legal da ilegalidade: os direitos humanos e a cultura jurídica brasileira, disponível no Portal Domínio Público:


A orientação hermenêutica do Supremo Tribunal Federal era bem oposta: a de, por meio da lei federal (cuja ratio passa, numa inversão do sistema jurídico, a determinar o sentido constitucional), impedir a efetividade do princípio da autonomia dos trabalhadores. Não se trata apenas de irracionalidade; ocorre uma forma de produção legal da ilegalidade, já há muito praticada. Marx, na célebre análise da Constituição francesa de 4 de novembro de 1848, revelou como a letra da Constituição, aludindo a “direitos democráticos”, era negada pela lei eleitoral: a constituição previa que todos os franceses que pudessem exercer direitos políticos eram elegíveis, mas deixava à lei a tarefa de determinar quem poderia exercer esses direitos.
Com isso, houve uma brutal redução do eleitorado, devido ao voto censitário, que excluiu as classes trabalhadoras da participação política. Desta forma Marx refere-se aos “detalhes” legais que negam os princípios constitucionais:

As eternas contradições deste absurdo de uma Constituição mostram de forma suficientemente clara que, embora a burguesia em palavras possa ser democrática, mas não em suas ações, ela reconhecerá a verdade de um princípio, mas nunca o implementará – e a verdadeira “constituição” francesa não se encontra na Carta, que nós interpretamos, e sim nas leis orgânicas promulgadas acima do fundamento constitucional, as quais nós brevemente esboçamos ao leitor. Os princípios estavam à mão – os detalhes foram deixados para o futuro, e com esses detalhes a descarada tirania foi de novo erguida como lei! 124

No julgamento da representação, o Ministro Eloy da Rocha discordou da posição isolacionista dos outros Ministros: “Quando a Constituição preceitua que a lei regulará a constituição do sindicato obsta a que convenção internacional a regule?”; “O argumento da maioria é este: a convenção não pode revogar lei ordinária”.
De fato, o julgamento deixou clara a posição de que o direito internacional, na medida que trouxesse direitos sociais (na área de acordos tributários, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal adotaria posição bem outra, sustentando a eficácia interna de tratados mesmo diante de normas internas posteriores que lhes eram contrárias, devido ao artigo 98 do Código Tributário Nacional), somente poderia ser eficaz se não contrariasse as normas infraconstitucionais já existentes. Nessa área, portanto, o Tribunal fez com que lei anterior ao tratado o anulasse.


Para tornar mais preciso o que escrevi, devo notar que o caso brasileiro era ainda pior do que o da constituição francesa analisada por Marx, pois o próprio texto constitucional francês autorizava a limitação legislativa - sua formulação era restritiva aos cidadãos que gozassem de direitos políticos. A restrição era própria do liberalismo dessa época, que diferenciava cidadãos ativos e passivos - estes, desprovidos do exercício de direitos políticos, o que ocorria, em regra, por meio do voto censitário, isto é, a exigência de um patrimônio mínimo para votar e ser votado. O mesmo ocorria no Brasil imperial.
No caso da ditadura militar, o texto constitucional não previa a limitação do decreto-lei. Tivemos, portanto, não só a primzaia de decreto-lei sobre a constituição, como a prevalência desse decreto-lei, teoricamente infraconstitucional, sobre tratado internacional ratificado posteriormente! Nada disso permitiria a aprovação daqueles magistrados, se estudantes em graduação na época, na disciplina de Direito Constitucional I. Ou em Direito Internacional Público. Ou em Direitos Humanos... Para não falar em Hermenêutica Jurídica.
Infelizmente, como autoridades, aqueles magistrados detinham o poder de reprovar o constitucionalismo no Brasil, e foi o que esse tribunal tantas vezes fez após a intervenção que sofreu pela ditadura militar, munida dos poderes do AI-5.
Por isso, leio com espanto teses de que o formalismo jurídico teria sido o grande problema do direito na época da ditadura. Pelo contrário, se esse formalismo houvesse sido levado a sério, as liberdades e os trabalhadores teriam tido um ganho.
Ouso dizer o mesmo para os tempos de hoje.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Desarquivando o Brasil LVI: A construção social do direito à verdade, do Dia à Semana

Esta nota foi escrita para a VII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR (http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/03/24/vii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/).
Eu havia feito um breve relato da comemoração em São Paulo do Dia Internacional do Direito à Verdade, em 24 de março, que teve a presença da integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV) Maria Rita Kehl: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/03/desarquivando-o-brasil-liii-blogagem.html. No dia seguinte, os jornais Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e O Globo, que li em suas versões impressas, ignoraram-no.
A EBC, bem ao contrário daqueles veículos, está engajada em prol da questão e publicou matéria sobre a comemoração em São Paulo: http://www.ebc.com.br/cidadania/galeria/videos/2013/03/dia-internacional-do-direito-a-verdade-e-lembrado-em-sao-paulo
A CNV apresentou aqui o relato das atividades, anunciando a campanha "O passado não pode ser modificado. Mas conhecê-lo pode mudar o seu futuro.": http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/230-cidadaos-celebram-com-arte-o-dia-da-verdade-em-sp-e-no-rj.


Na foto, vê-se o Bloco do Ilú Obá De Min, que encerrou os trabalhos em São Paulo. Todos os artistas, lembrou Kehl, trabalharam gratuitamente, como militantes.
Para quem não conhece o texto de Brecht lido pela Companhia do Latão, aqui se pode ler uma tradução feita por Ernesto Sampaio: http://dir.groups.yahoo.com/group/ImagoDays2/message/23557
A  Resolução da Assembleia Geral da ONU, que instituiu o Dia, pode ser lida nesta ligação: http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/65/196&Lang=S
Para a imprensa, foi preparada esta mensagem, que apresenta o direito à verdade como tendo dupla natureza, individual e coletiva: http://www.un.org/es/events/righttotruthday/
Isso faz todo o sentido, pois ele se refere a uma verdade histórica, e a história é feita coletivamente; o direito somente poderia tratá-la como um direito difuso. Também a memória, mesmo a individual, é construída no âmbito de molduras coletivas, como bem explicou Maurice Halbwachs:

Consideremos agora a memória individual. Ela não é inteiramente isolada e fechada. Um homem, para evocar seu próprio passado, frequentemente necessita de apelar às lembranças dos outros. Ele se refere a marcos que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade. Além disso, o funcionamento da memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, que ele toma emprestado de seu meio. [La mémoire collective, édition critique établi par Gérard Namer, Paris: Albin Michel, 1997, p. 98]
O direito também é construído coletivamente, e isso inclui os direitos individuais: o que chamamos hoje de garantias individuais são o resultado de um processo histórico, coletivo, de transformação dos instrumentos jurídicos, e que segue em curso.
Essa construção pode ocorrer a partir de fontes materiais e formais externas e internas. No caso do direito à memória e à verdade e dos mecanismos de justiça de transição, os precedentes de comissões da verdade vêm desde Uganda em 1974. As práticas no campo humanitário concorreram para fortalecer juridicamente essas iniciativas.
O preâmbulo da Resolução 65/196 da Assembleia Geral da ONU cita especialmente artigos de dois tratados internacionais. Um deles, do Direito Internacional Humanitário, é o Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949 relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais. O Procotolo (nome que geralmente se dá a uma tratado internacional que complementa ou modifica outra tratado) é de 1977 (fonte: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dih-prot-I-conv-genebra-12-08-1949.html). Cito-o por completo, da tradução para o português europeu, apesar de referir-se especificamente à situação de guerra:


SECÇÃO III
Pessoas desaparecidas e mortas
Artigo 32.º
Princípio geral
Na aplicação da presente secção, a actividade das Altas Partes Contratantes, das Partes no conflito e das organizações humanitárias internacionais mencionadas nas Convenções e no presente Protocolo é motivada, em primeiro lugar, pelo direito que as famílias têm de conhecer o destino dos seus membros.
Artigo 33.º
Pessoas desaparecidas
1 - Desde que as circunstâncias o permitam, e o mais tardar a partir do fim das hostilidades activas, cada Parte no conflito deve procurar as pessoas cujo desaparecimento tiver sido assinalado por uma Parte adversa. A citada Parte adversa deve comunicar todas as informações úteis sobre essas pessoas, a fim de facilitar as buscas.
2 - A fim de facilitar a recolha das informações previstas no número precedente, cada Parte no conflito deve, relativamente às pessoas que não beneficiem dum regime mais favorável em virtude das Convenções ou do presente Protocolo:
a) Registar as informações previstas no artigo 138.º da Convenção IV sobre as pessoas que tiverem sido detidas, presas ou de qualquer outra forma mantidas em cativeiro durante mais de duas semanas devido às hostilidades ou à ocupação, ou que tenham morrido durante um período de detenção;
b) Na medida do possível, facilitar e, se necessário, efectuar a procura e registo de informações sobre essas pessoas se tiverem morrido noutras circunstâncias devido a hostilidades ou ocupação.
3 - As informações sobre as pessoas cujo desaparecimento foi assinalado em aplicação do n.º 1 e os pedidos relativos a essas informações serão transmitidos directamente ou por intermédio da Potência protectora, da Agência Central de Pesquisas do Comité Internacional da Cruz Vermelha, ou das Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Quando essas informações não forem transmitidas por intermédio do Comité Internacional da Cruz Vermelha e da sua Agência Central de Pesquisas, cada Parte no conflito procederá de maneira que elas também sejam fornecidas à Agência Central de Pesquisas.
4 - As Partes no conflito esforçar-se-ão por acordar sobre as disposições que permitam às equipas procurar, identificar e retirar os mortos nas zonas dos campos de batalha; estas disposições podem prever, em caso de necessidade, que essas equipas sejam acompanhadas por pessoal da Parte adversa quando desempenharem a sua missão nas zonas que estiverem sob controlo dessa Parte adversa. O pessoal dessas equipas deve ser respeitado e protegido quando se consagrar exclusivamente a tais missões.

O Estado Brasileiro é parte deste tratado; nesta ligação, temos o mapa dos Estados que aderiram às Convenções de Genebra e a seus Protocolos: http://www.icrc.org/por/assets/files/annual-report/current/icrc-annual-report-map-conven-a3.pdf
No tocante à Convenção internacional para a proteção de todas as pessoas contra os desaparecimentos forçados, que entrou em vigor em 2010, temos previsão análoga, que extrapola os casos de guerra (http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direito-a-memoria-e-a-verdade/convencoes/convencao-internacional-desaparecimento-forcado/view):


Artigo 24
1. Para os fins da presente Convenção, o termo “vítima” se refere à pessoa desaparecida e a todo indivíduo que tiver sofrido dano como resultado direto de um desaparecimento forçado.
2. A vítima tem o direito de saber a verdade sobre as circunstâncias do desaparecimento forçado, o andamento e os resultados da investigação e o destino da pessoa desaparecida. O Estado Parte tomará medidas apropriadas a esse respeito.
3. Cada Estado Parte tomará todas as medidas cabíveis para procurar, localizar e libertar pessoas desaparecidas e, no caso de morte, localizar, respeitar e devolver seus restos mortais.
O preâmbulo já mencionava o direito ("Afirmando o direito de toda vítima de conhecer a verdade sobre as circunstâncias de um desaparecimento forçado e o destino da pessoa desaparecida, bem como o direito à liberdade de buscar, receber e difundir informação com este fim;"). O Brasil também é parte deste tratado. Mesmo não entrando no mérito da Constituição de 1988, vejam como artigos que tentam argumentar que não há algo como o direito à verdade no direito brasileiro (por exemplo: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direito-a-memoria-e-a-verdade/convencoes/convencao-internacional-desaparecimento-forcado/view) simplesmente partem do simples desconhecimento das normas aplicáveis.
Por vezes, além do direito vigente, é esquecido, também pelos juristas brasileiros, que se comprazem em reproduzir uma cultura jurídica isolacionista e infensa aos direitos humanos, que, muitas vezes, nas organizações internacionais temos a iniciativa para diversas medidas que, em seguida, acabam por fazer parte dos direitos nacionais.
A resolução do Dia Internacional, um exemplo de soft law (por ser uma simples resolução, não tem, por si, o efeito obrigatório de uma convenção internacional),já está a inspirar iniciativas congêneres no Brasil. Em rápida pesquisa, pude ler o projeto de lei para instituir o Dia do Direito à Verdade, no Pará, do deputado estadual Edmilson Rodrigues (PSOL) (http://www.edmilsonbritorodrigues.com.br/edmilson-apresenta-projeto-de-lei-que-institui-o-dia-estadual-pelo-direito-a-verdade/) e, no Ceará, o que foi apresentado pela deputada estadual pelo Ceará Eliane Novais (PSB) (http://www.elianenovais.com.br/images/conteudo/file/projetoLei118.pdf).
Este último tem uma justificativa interessante:
O objetivo não é apenas o de dispor, ao fim do processo, de uma data oficial de referência para a celebração do direito à verdade, mas ainda o de levantar a discussão sobre a matéria a partir da própria tramitação de proposições legislativas destinadas a consagrar tal data nos vários âmbitos da Federação. A discussão do conteúdo do Projeto de Lei ora apresentado não deve limitar-se, portanto, ao âmbito do Congresso Nacional. Ele se articula com um conjunto de proposições legislativas de conteúdo semelhante, a serem apresentadas, tanto quanto possível, em todas as casas legislativas do país, de maneira a potenciar a mobilização nacional pela verdade e pela dignidade. Não por acaso a proposta se afirmou quando do lançamento da Rede Legislativa pela Memória, Verdade e Justiça, no dia 28 de março de 2012, na Câmara dos Deputados.
Trata-se mesmo de uma rede de construção dos direitos, nas quais os legisladores nacionais, as organizações internacionais têm um papel, mas também os artistas, encenando e dando palavras a desejos de justiça, como fizeram os que participaram das comemorações do 24 de março. Eles também concorrem para a imaginação do direito.
Dentro dessa rede, que mostra uma demanda social pela memória e pela verdade, temos esta Semana Nacional de Memória e Direitos Humanos, de 1 a 6 de abril, organizada pelo Núcleo de Preservação da Memória Política, com diversos eventos pelo país. A programação pode ser consultada aqui: http://semanadh.nucleomemoria.org.br/
Para se juntar à programação, é necessário entrar nesta ligação e preencher o formulário: http://semanadh.nucleomemoria.org.br/contato-para-aderir.php O lançamento do livro de Renan Quinalha, Justiça de transição: contornos de um conceito, que me concedeu entrevista há pouco, é um desses eventos: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/04/desarquivando-o-brasil-lv-entrevista-e.html

P.S.: A disposição de arquivos históricos na internet é um fator extremamente positivo neste contexto de demanda social pela memória e a verdade. Hoje, o Arquivo Público do Estado de São Paulo pôs no espaço virtual uma parcela do acervo do DEOPS/SP. Paulo Sergio Pinheiro, ouvi-o na Rádio CBN, elogiou São Paulo por sair "na frente" com a iniciativa. Isso não é exatamente correto: desde o ano passado, o Arquivo Público Mineiro disponibiliza o arquivo da polícia política de Minas: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/dops/search.php.