O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Universos paralelos da educação XIV: provas para professores

Com toda humildade, esta instituição sente-se muito honrada pelo interesse dos senhores de nela ingressar. Permitam-me explicar as regras. Os candidatos farão a prova ao computador. Terão uma primeira hora de consulta, durante a qual poderão fazer anotações em arquivo digital nos computadores disponibilizados pela faculdade. Depois, essas anotações serão impressas por nosso pessoal administrativo e os arquivos, apagados dos computadores. Os candidatos responderão à prova escrita somente com essas folhas impressas. No meu tempo, não era assim, escrevíamos tudo à mão, os avanços tecnológicos são muito auspiciosos. Tudo muda, a educação também tem que mudar!

Creio que o regulamento permite consulta a todos os meios na primeira hora. Impressos e digitais. É mais internacional. Sem acesso à internet  ressalte-se. Com o uso de pen drive, evidente, para os livros eletrônicos. Viva o progresso, aliás, inscrito na bandeira pátria. Não vedaremos o uso de anotações pessoais. Sim, é claro que os candidatos poderão elaborar previamente suas dissertações sobre os pontos do concurso no pen drive e copiá-las para o rascunho da prova. Parece que é uma facilidade, porém eles deverão digitar tudo de novo, porquanto o arquivo do rascunho é apagado depois da primeira hora de pesquisa. Precisarão copiar das folhas impressas.

Se um candidato simplesmente resolver conectar o pen drive de novo para evitar o trabalho de digitar a dissertação que já teria preparado antes da prova?? Não cogitei essa possibilidade, mas certamente o único funcionário que ficará na sala com as poucas dezenas de candidatos impedirá essa eventual irregularidade.

Em relação à possibilidade de que outrem seja contratado para elaborar as dissertações previamente e, dessa forma, um candidato seja aprovado com uma prova comprada, parece-me que uma farsa desse tipo não se sustentaria nos quarenta e pouco minutos da prova de aula. Do contrário, nossa prova se mostraria menos segura do que o vestibular dos alunos!!

É curioso pensar que o candidato também poderia adquirir de outrem um plano de aula com as projeções respectivas. Ah, a duvidosa natureza humana, que nunca muda... De qualquer forma, ele teria o trabalho intransferível de operar o computador e ler com boa dicção as projeções, o que já o comprovaria apto para o trabalho docente.

Não julgo crível que algum candidato usasse o pen drive irregularmente depois da hora de consulta para colar um capítulo do manual do pai do presidente da banca e atual diretor da faculdade, mais um artigo da ex-diretora, embora versem sobre temas diversos, e apresentasse a colagem como prova sua, e muito menos que gastasse quarenta e três minutos, o dobro dos outros, no momento de leitura oral da prova diante da banca. Evidentemente, professores de verdade perceberiam o plágio, ouso dizer que alguns deles provavelmente estariam na banca e impediriam este erro.

É claro que, se tudo isso ocorresse, mesmo assim a banca permaneceria soberana e continuaríamos a nos julgar os melhores desta parte do continente. Ninguém ostenta melhores relações do que nós.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A bomba e a posse

 - Vêm uns dezessete presidentes para a posse. No mínimo.

- [resmungos]

- O Diogo está até em depressão.

- [resmungos]

- Será que o Lucas votou no Lula?

- E você tem dúvida?

- Mas ele é tão inteligente... Ele está escrevendo um livro, "Do que os bolsonaristas falavam".

- Falavam?

- Pois é.

- Eu não falo nada perto dele. Não quero acabar nesse livro.

- Ele votou no Lula. Ele fica falando de livro.

- [resmungos]

- Ele votou porque Bolsonaro é contra os homossexuais.

- E o Lula não é?

- Gostou do pão?

- Gostei.

- Viu que prenderam o cara que queria explodir o aeroporto de Brasília?

- É mentira. Não apareceu no grupo.

- Ouvi no rádio.

- [resmungos]

- Fazia tempo que o Lucas não visitava a gente.

- Eu acho que ele fez bem. Sem o aeroporto funcionando, a gente de bem deste país não passaria pelo vexame de quinze presidentes chegarem para a posse de um ex-condenado.

- Mais de quinze.

- Vêm para debochar do Brasil. 

- Muita gente.

- [resmungos]

- A bomba veio do garimpo ilegal na Amazônia.

- Fake news. O garimpo é a lei.

- A rádio disse que ele estava no acampamento do quartel.

- [resmungos]

- Vou pegar o leite.

- Mas eu acho que ele fez bem. O garimpo sempre trouxe o progresso. Sem ele, Minas Gerais não teria recebido tantos escravos. Sem o garimpo, muitos índios estariam até hoje atrapalhando o progresso.

- Parece que duas indígenas se elegeram agora.

- [resmungos]

- Bolsonaro vai para os Estados Unidos. Ou já foi?

- [resmungos]

- Aquele filho já foi. A esquerda diz que ele está querendo fugir. Fugir do quê?

- Da vergonha da posse de um ex-condenado.

- Na posse do Bolsonaro vieram muito menos presidentes. 

- A ONU ficou com inveja do Brasil ter um presidente tão bom.

- Por isso a ONU elogia o Lula...

- [resmungos]

- Parece que o Papa também gosta.

- Os comunistas todos gostam. Eles estão contentes. Rindo da nossa cara. Dizendo que somos burros. Que somos fascistas. Que somos violentos  Eles acham que estão nos xingando.

- Vêm presidentes de vários países comunistas, até da Alemanha.

- [resmungos]

- Eu achava que era a Alemanha comunista que tinha acabado.

- [resmungos]

- Os alemães correram para o lado errado do Muro?

- O problema todo é que aquele merda NÃO SOUBE MEXER NO DETONADOR! COMO É QUE ELE VEM DO PARÁ, QUE AINDA TEM ÁRVORE, ÍNDIO E SEM-TERRA, E NÃO SABE EXPLODIR NADA DIREITO?? FICOU NO ACAMPAMENTO EM FRENTE AO QUARTEL E NÃO APRENDEU A DETONAR BOMBA? OS MILITARES NÃO MELHORARAM NADA DESDE A INCOMPETÊNCIA DO RIOCENTRO?? ELES AINDA NÃO ENTENDERAM O QUE É VIVER NA DEMOCRACIA!!! Era o presente de Natal da nação, Cristo amado, uma bomba só... Deus dos Exércitos, ouvi as mil orações por uma só explosão...

- Calma, o Lucas está dormindo. 

- Bobagem, ele não ouviu nada. Ele vai acordar tarde, ele votou no Lula. Não vai ter nada no livro dele.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Lançamentos: livros de Fabio Weintraub, Ricardo Rizzo e Pádua Fernandes

 


Em 17 de dezembro de 2022, sábado, das 17 às 20 horas, serão lançados meu livro novo de poesia, Assassinato e ascensão do grande escritor (seguidos de Antologia completa), a edição de 20 anos de Novo endereço, de Fabio Weintraub, que foram objeto de uma campanha de financiamento coletivo lançada em outubro deste ano. Levamos dois meses para concluir o processo. A editora Patuá os publicará.



O evento ocorrerá na Patuscada (rua Luís Murat, 40), em São Paulo. Conosco estará Ricardo Rizzo, sobre quem já escrevi algumas vezes, que vem de Brasília e lançará em São Paulo seu mais novo livro de poesia, O excedente, que saiu pela Corsário-Satã.



Agradecemos a presença de todos. Estas são as ligações para os livros:

Novo endereçohttps://www.editorapatua.com.br/novo-endereco-de-fabio-weintraub/p

Assassinato e ascensão do grande escritor (seguidos de Antologia completa)https://www.editorapatua.com.br/assassinato-e-ascensao-do-grande-escritor-de-padua-fernandes/p

O excedentehttps://corsario-sata.minestore.com.br/produtos/o-excedente-ricardo-rizzo


segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Nina e Paloma, de Diego Callazans

Li no Koo de Diego Callazans que será publicado, pela 7Letras, o livro de contos Nina e Paloma. Escrevi a orelha, meses atrás, que reproduzo aqui:



Diego Callazans surpreende o leitor deste segundo livro de contos desde a sua estrutura. Dividido em duas partes, “Contos de Nina e Paloma” e “Contos de Nina ou Paloma”, a obra anuncia-se composta de histórias em que aparecem, na primeira seção, as duas personagens do título (a detetive e sua auxiliar) e, na segunda, ou uma ou outra.

Não se trata apenas disso, porém. A primeira parte parece formar uma novela, pois as histórias ganham em ser lidas em conjunto. Todo o livro é atravessado pela tensão entre o conto e a latente forma do romance.

A tensão é reforçada pelos laços que Nina e Paloma mantém com o romance Urinol (2021), com que compartilha personagens, inclusive as que dão título ao conjunto. Ademais, ele confirma a importância das comunidades LGBTQIA+ na obra de Callazans. Paloma é lésbica e sente-se atraída por Nina; Désirée, outra personagem de Urinol que aparece neste livro, é uma mulher transexual.

A nova obra acentua os traços de literatura fantástica. Os crimes que Nina investiga pertencem ao universo do sobrenatural e envolvem espíritos e rituais mágicos. Paloma é moderadamente cética; o último caso em que atua revela a conturbada origem familiar de sua chefe e ajuda a explicar a atração pelo oculto. 

O que dizer dessa matéria da ficção, que desafia os sentidos? O conto “Persona” talvez dê uma chave: “Somente a arte é real o bastante”, em tensão com a fala de Nina em “Sofia”: “não entendo o idioma do Abismo”. O ininteligível, o nome mais compreensível do mistério, pulsa sob a fala. 

“Grimório”, o último conto, corresponde a um dos capítulos de Urinol, e não só pode ser lido autonomamente como se relaciona bem com o conjunto deste novo livro, dando-lhe um final lógico e inesperado. Ele retoma a tensão entre os gêneros literários (conto e romance) e reafirma a presença do ininteligível na imagem do "testemunho de uma voz abissal, que soava diretamente em seus crânios, falando-lhes em uma linguagem inumana", evocada pelos livros em relação aos quais nutrimos a “esperança – vã – de que ninguém os lesse.” 


quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

A rosa do genocídio

A rosa do genocídio,
toda feita de espinhos,
vota na fome,
alimenta-se dos famintos.

A rosa do genocídio
odeia o vermelho,
expulsa essa cor
para fora dos corpos,
para dentro dos ralos.

A rosa do genocídio
acampa diante dos quartéis.
Toda campa
é seu jardim.

Floresce ao inverso:
quando as moscas rodeiam o caule
sentimos enfim seu perfume.
O voo das borboletas
encerra-se sob folhas mortas.

Não sei que forças extrai da terra
a raiz da rosa do genocídio.
Os recursos se esgotam,
os rios secam,
as facas se aguçam,
todas as onças caem
com patas queimadas;
as nuvens tóxicas vestem a pele
também dos que a cultivam.

Suas pétalas, afiadas.
Estúpidos confundem-nas
com a sagração da primavera.
Rejeitam vacinas porque os espinhos
da rosa do genocídio
atravessam mais profundamente a carne.

Os admiradores da rosa do genocídio
não a colhem para vasos
ou arranjos florais.
São colhidos por ela
com bombas, mensagens automatizadas,
fuzis e orações.

Ela não se reconhece como rosa.
Prefere uma imagem mais viril,
como chacinas em creches
e estupros coletivos.

A rosa do genocídio escolhe o deserto;
se a chuva aparece,
ela exige a anulação das eleições.
Chove, outras plantas brotam, porém
ela só reconhece urnas em formato de foice.

Alguns não a reconhecem como flor,
mas como o próprio Messias,
a taxa de juros ou o dedo espetado
ao remendar a bandeira pátria.

Flor é, no entanto,
pode ser arrancada
como todas as outras pragas.


II

Educação a base de instrumentos de poda e agrotóxicos. Doutorado e outros cursos, mera reciclagem do jardim de infância após a chacina, jardim de seixos. Atirados. Ela desensina todas as cores, como se vestir da rosa do genocídio, senão sob diamantes colhidos por crianças escravizadas, eles brilham e desensinam a luz: o sol não se reconhece nestes pequenos espelhos da hediondez. Versão pós-atômica das armas de destruição em massa. A disposição de todos nas melhores lojas.

terça-feira, 22 de novembro de 2022

Desarquivando o Brasil CXC: Um discurso de Hebe de Bonafini

A Mãe da Praça de Maio Hebe de Bonafini, que morreu em 20 de novembro de 2022 com 93 anos, sobreviveu a seus três filhos, que a última ditadura na Argentina lhe tirou, mas também a companheiras como Azucena Villaflor de Vicenti, sequestrada e morta pela repressão em 1977.

Ela esteve no Brasil algumas vezes, antes e depois do fim das ditaduras na Argentina e no Brasil. Este documento das Mães da Praça de Maio está no acervo da polícia política de São Paulo, o DEOPS/SP, atualmente no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Nele vemos a assinatura de Hebe de Bonafini, no quarto ano da organização. Ele seria lido em São Paulo na comemoração do Primeiro de Maio de 1981:



No Brasil, estávamos no fim prolongado fim da ditadura militar, sob o General Figueiredo. O fim das gestões encabeçadas por militares não significou, contudo, que o Estado brasileiro tivesse terminado de vigiar os movimentos sociais. Esta continuidade da ditadura lembra-nos que, afinal, um governo como o de Jair Bolsonaro não foi gestado somente desde 2014.

Data do curto governo Collor este outro documento. Entre 21 e 23 de junho de 1991, aconteceu em São Paulo o III Encontro Latino-Americano e do Caribe pela Solidariedade, Soberania, Autodeterminação e Vida de Nossos Povos. Bonafini representou as Mães da Praça de Maio. Em documento confidencial da Secretaria de Assuntos Especiais da Presidência, hoje no acervo do Arquivo Nacional, temos um relatório do Encontro com o que me pareceu ser uma cópia traduzida do discurso dela. Como sempre, cliquem sobre a imagem para ampliá-la:




Não me recordo de ter visto este discurso publicado, ao menos em português, por isso o faço aqui. Acho notável a perspectiva latino-americana, "A América Latina deve se unir", que engloba o Brasil, o que não é tão comum assim quando tratamos da América de fala hispânica.
Mais interessante ainda é esta observação, que transcrevo:

Estamos numa batalha muito pura, esta batalha significa resistir e combater. Se não formos capazes de enfrentar estes 500 anos com muita força, repudiando e protestando todos os massacres, dos negros e dos índios e aos que eles chamaram de subversivos e terroristas, que com a mesma força que assassinaram os negros e os índios, assassinaram nossos filhos acusando-os de terroristas.
Os homens dessa terra, os que querem um mundo melhor, estamos aqui e em todos os lugares para dizer-lhes, 500 anos de nepotismo vamos enfrentar com força.

Já vi certos acadêmicos insistirem em procurar ou estabelecer uma oposição entre os militantes de movimentos no campo da justiça de transição e os de outros movimentos sociais. Na minha experiência, têm-me antes impressionado as convergências entre aqueles que lutam contra a ditadura e contra outras violências, atuais e pretéritas. É o caso, no Brasil, das ações da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Faço notar que, para a extrema-direita bolsonarista, estas questões estão intrinsecamente ligadas, para ela todos aqueles movimentos devem ser combatidos em nome de uma teleologia reacionária do progresso e/ou do cristianismo. 
Bonafini falou no contexto dos 500 anos da invasão dos espanhóis no continente, mencionando o genocídio indígena e negro, inserindo o genocídio da última ditadura argentina dentro dessa lógica do Estado colonial. Para fazer frente à extrema-direita, essa perspectiva e as alianças entre esses diferentes movimentos não devem ser perdidas.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Dia dos Finados, ou como o bolsonarismo queria a política

Eu ouvia no Dia dos Finados a Rádio Cultura, o programa Conexão Europa, que transmite concertos que foram gravados ao vivo para União Europeia de Rádio e TV (EBU). O programa incluiu o concerto para piano n. 24 de Mozart com Lars Vogt como solista. Foi uma apresentação de 2021. Na nota biográfica sobre o músico, foi omitido que ele está morto.

Provavelmente os responsáveis na Rádio não sabiam. Haveria, no entanto, alguma uma justiça poética em tocar um morto no 2 de novembro em um programa dedicado a músicos contemporâneos (refiro-me aos intérpretes, não aos compositores)? Creio que não, pois os mortos devem ser nomeados: esta é que é uma forma de fazer-lhes justiça.

Pensei, em seguida, na tentativa de prorrogação da campanha eleitoral de 2022: os zumbis que fecham estradas sem saber a razão, apenas atendendo a um comando do grupo, em um mundo paralelo em que os mortos ainda operam. De certa forma, estão mortos, especialmente quando desejam o falecimento do candidato vitorioso, como o fez ontem um ex-motorista, que ainda dirige ocasionalmente para o derrotado.

Não estaria também seu Líder (traduzo do alemão) morto em algum sentido? Parte de seus idólatras vê, na visível diminuição da vitalidade, um sinal de que não seria ele mesmo nos últimos vídeos, em que pede para que desbloqueiem as estradas. Enganam-se, claro, porque não reconhecem mais no Líder (traduzo do alemão) o próprio desejo.

A morte, contudo, tem sua atualidade e sua efetividade. Esses bloqueios e outras manifestações contra o resultado das eleições, contra a democracia, são cerimônias da morte, como é da essência do fascismo. Esses mortos, não os homenageamos, mas combatemos.

Falando de vida e de combate, no dia 29 de outubro, tive ensaio (o Coral da Cidade de São Paulo apresentaria o Dixit Dominus do Haendel, regido por Luciano Camargo, na segunda-feira) justamente no horário em que Lula falou na Paulista. Saindo do ensaio, ainda pude descer a Consolação com os manifestantes.



O entusiasmo era grande. Havia um grande otimismo em relação à vitória de Lula, pois o adversário nunca chegara a ultrapassá-lo em pesquisas sérias. Os episódios dos políticos bolsonaristas armados com fuzis, pistolas e bombas (algo normalizado para a direita, que tem o desplante de chamar um movimento social como o MST de... terrorista) certamente não conquistariam indecisos.


O dia da eleição, nas minhas redondezas em São Paulo, também foi feliz. As pessoas estavam celebrando nos bares e restaurantes já antes de acabar o horário de votação. Neste vídeo, flagrei o momento em que a rua comemorava que Lula estava matematicamente eleito:



Não sei se saberemos um dia a dimensão (se regional, nacional ou maior ainda) dos esquemas de persuasão alternativa de votos no governo, como este que Caco Barcellos flagrou. Imagino que somente Lula, o maior presidente da história brasileira, teria sido capaz de enfrentar algo desta natureza e enormidade, fruto da leniência estrutural das instituições com a direita no país.

Contra esse tipo de leniência, era importante dar visibilidade à oposição. Fiz o pouco que pude. Durante a campanha, todo dia eu saía com adesivos e/ou broches, andando a pé no Centro de São Paulo, ou pegando ônibus e metrô.




Não tive realmente incidentes por causa disso. Antes do primeiro turno, andava com meu esposo, um cara olhou-nos e disse "demônios". Antes do segundo, um jovem alto que parecia estar em situação de rua e alcoolizado acordou outro jovem que estava dormindo na rua, na minha frente, passou por mim, olhou e disse: "Sou Bolsonaro, seu cu", no mais puro estilo do filho vereador do candidato derrotado. Eu o olhei nos olhos. E seguiu adiante.

Certo dia, almoçava em um restaurante e um homem estava a dizer que Lula nunca poderia ter sido presidente porque tinha se aposentado por causa da mutilação do dedo, "um advogado" lhe contou. Sem ignorância, não há bolsonarismo. Ouvi aquilo e ri, dizendo que Lula provou que o dedo mindinho não era necessário para governar o país.

Os adesivos suscitaram muitas conversas e pedidos de adesivos (passei a andar com extras para dar). Panfletagem, porém, só fiz para a Vivian Mendes, da UP, que conseguiu mais de duzentos e oitenta mil votos sem aparecer no horário eleitoral.

Aqui também temos uma questão importante: faz parte do ódio classista, tão forte no Brasil, o deboche dos trabalhadores manuais mutilados. Esse deboche integra o catálogo de insultos contra Lula, mas na verdade é mais amplo e indica o ódio aos trabalhadores. Como se sabe, a ditadura militar (com seu soi-disant "milagre") não gerou uma enorme concentração de renda, prejudicando os trabalhadores; ela também alçou o Brasil a campeão mundial de acidentes do trabalho. Nesse campo também, a ditadura foi assassina.

Lula vem dessa época. Os zumbis que tentam dar sobrevida ao derrotado parecem ter sido transplantados diretamente desse tempo, em seu culto da morte, não apenas os militares que escolheram o derrotado como sua faceta mais pública, e tem, como instituição, milhares de esqueletos mal ocultados, entre eles os milhares de indígenas mortos e desaparecidos (8.350 para apenas dez etnias, segundo a Comissão Nacional da Verdade). Esses também não foram nomeados.

Lembrando do Mozart: aquele concerto é um dos raros deste compositor em tonalidade menor e tem uma força que se pode chamar de trágica. No entanto, também ele é uma afirmação da vida e da criação.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

"Desde quando governar foi algo mais do que comer carne humana?"




Os advogados da União
lograram impedir
que se chamasse o presidente de pedófilo

com várias liminares, e em nenhuma delas
encontrávamos um país.

"Não fui eu que matei, eu não conhecia a mulher, eu nem sabia do meu vizinho que a matou e da filha dele que namorou meu filho, nem da casa minha que ele visitou antes da execução!"

Os advogados da União
tinham se dedicado a impedir
que o presidente a dizer que tentara comer carne humana
não fosse ouvido a dizer que tentara comer carne humana,

eis que havia o risco jurídico de os eleitores do presidente
acreditarem no que ele diz.

"Eu já me preparava para a presidência! Desde quando governar foi algo mais do que comer carne humana? É por isso que não existe fome no país."

Os ministros da União correram para socorrer a campanha do presidente
alegando que as emissoras que não existiam mais
e aquelas que nunca existiram
deixaram de veicular propaganda do presidente,
razão pela qual deveriam ser fechadas
e obrigadas a distribuir a aludida propaganda.

"Eu não matei ninguém, eu só regulamentei o acesso às vias atmosféricas para quem preenchesse os requisitos."

Os ministros da União apressaram-se para auxiliar
os coordenadores da campanha do presidente
que balearam a polícia e jogaram bombas

limpas, honestas, completamente éticas
como todos os ralos da presidência.

"Por que não votam em mim, eu que levei água para salvar aquela gente dos rincões dos grotões daqueles locais de onde nada de bom poderia sair."

Os empresários da União financiaram
a compra de outro povo para o presidente
a ser entregue digitalmente durante os turnos das eleições

e, se necessário, de um fundo falso
em caminhão de carga internacional.

"Nesses merdas só atirando, esperem só eu aprender a destravar a arma, enquanto isso mando chutar, fazer feitiço, sei lá, vou arrebentar essa gente sem família e sem pudor, quero ver quem diz no pau-de-arara que não sou cristão."

Os promotores da União
não viram problema no fato de que o vídeo do atentado
já estava pronto na antevéspera dos tiros
uma vez que esses tristes eventos repetem-se amiúde na cidade.

"A justiça proibiu que digam que o assassino tem fotos e filmes comigo! Porque é mentira! A justiça proibiu também que divulguem as fotos e filmes do assassino comigo! Porque nosso compromisso é com a verdade, mas não com qualquer uma!"

Os médicos da União
receitaram o genocídio
para curar o país da infecção chamada povo

que insistia em respirar
apesar das vedações militares aos pulmões,
órgãos subversivos para a segurança nacional.

"Eu não escondi nada, em cem anos você vai saber quem eu comprei para comer no dia 13 de maio, em cem anos você vai saber quanto custou a maquiagem do pastor e quais são os preços da quimioterapia, a gente está numa democracia, todo mundo tem que ter paciência."

Os juízes da União
proibiram o país
eis que ele causava efeitos psicológicos negativos para o presidente,

criava inverdades e suposições 
de que o país realmente existisse
e não pudesse ser carregado na garupa da moto.

"Eu ando mesmo de jet-ski porque eu já disse que não matei aquela mulher nem fico mostrando minha hemorroida para qualquer um, assim você me ferra, não faz pergunta difícil, no quartel a gente corta a grama, não corta as cabeças, no país é diferente."

Os advogados da União
lograram pedir
que se chamasse o pedófilo de presidente

eis que a presidência
tão pequena
cabia dentro da medida liminar

pequena
ainda menor do que aquelas
que o coração do presidente
desejava depois dos tiros

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Fazer o L com Livros

A cadeia do livro envolve diversos trabalhadores. A ascensão da extrema-direita ao poder no Brasil prejudicou-a bastante, seja diminuindo as compras governamentais, seja arrasando os investimentos em cultura e educação, seja perseguindo os profissionais envolvidos.

Lembrem-se, por exemplo, dos ataques sofridos por Julián Fuks neste ano, que incluíram ameaça de morte (que faz parte do repertório de ação usual da direita no poder), por conta de uma de suas poéticas crônicas no Uol. Elogio o Uol, por sinal, por não ter abandonado o escritor, ao contrário da Deutsche Welle, que, em episódio semelhante sofrido por João Paulo Cuenca em 2020, cedeu às pressões bolsonaristas e rompeu o vínculo com o ficcionista, que depois sofreu assédio judicial.

Livros, já os carreguei, escrevi, revisei, traduzi, organizei, vendi. Um certo tipo de escória começou a falar mal dos trabalhadores de livro por conta de autores que resolveram "fazer o L" com suas obras, ou seja, anunciar o voto em Lula. Faz sentido que se declare voto no Partido dos Trabalhadores com seus instrumentos e/ou produtos de trabalho.

O próprio presidente Lula tem reforçado esta pauta na campanha:

Lembremos também que a extrema-direita brasileira, em seus esforços cognitivos, só tem conseguido identificar a cor da capa dos livros de seus autores preferidos, mas sem lograr decifrar ou lembrar dos títulos das obras. É verdade que nunca defenderam o direito à literatura.

Por essa razão, é interessante que as pessoas envolvidas com a produção de livros posicionem-se. No sábado, 22 de outubro de 2022, estive com Fabio Weintraub para ver uma feira de livros na Biblioteca Mário de Andrade; Cida Moreira apresentou-se no âmbito do evento com um repertório de mais de um século de música brasileira, incluindo modinhas imperiais. Fomos lá também porque a Editora Nós havia chamado para um ato de apoio a Lula do lado de fora da Biblioteca.


Não havia muita gente, de fato; falei com Fuks e Maria Rita Kehl. Fora de lá, no centro de São Paulo, no entanto, vi muito mais gente com adesivos ou bonés ou camisetas do PT do que em qualquer outro dia, afora os atos de campanha. Achei muito bom, pois continua bem vivo o medo de ser agredido ou morto por apoiar a oposição no Brasil. Trata-se do efeito da estratégia Sturmabteilung (a milícia nazi) que a extrema-direita brasileira copiou, na descentralização das funções de assédio e censura, que não precisam necessariamente ser assumidas pelas instituições do Estado pois os militantes do "líder" (traduzo do alemão) assumem-nas, seja com seus telefones celulares, seja com seus fuzis.

Todos os livros que escrevi e publiquei "fazem o L", gesto que significa não exatamente um compromisso com um partido específico ou com o presidente Lula, mas o necessário apoio à democracia no Brasil. Digo isso também das obras que não consegui publicar neste país, como este ensaio de 2009, "Para que servem os direitos humanos?". Gostaria de lembrar deste trecho:

Como sempre, cliquem na imagem para ampliá-la. Trata-se de uma das poucas referências no livro ao Brasil; eu a fiz como exemplo de uma cultura jurídica isolacionista (que me deu uma rasteira na semana passada, aliás) e contrária à dignidade humana que se fecha ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, seja o ignorando, seja distorcendo sua aplicação. No caso, mencionei o papel do Poder Judiciário e do Ministério Público na violação da Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. 

As duas instituições colaboraram ativamente na geração da atual crise no país. Esse tipo de provincianismo jurídico em prol dos crimes de lesa-humanidade foi eleito em 2018, logrou conferir mandatos políticos em 2022, porém deve perder no segundo turno das eleições de 2022.

O meu próximo livro, "Assassinato e ascensão do grande escritor (seguidos de antologia completa)" (nos dois últimos dias de campanha de financiamento coletivo), também "faz o L":


quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Campanha de vinte anos de poesia: Assassinato e ascensão do grande escritor

Em algum momento de 2022, completei vinte anos de estreia em livro. Provavelmente só consegui fazê-lo naquela ocasião, e com este volume, "O palco e o mundo", porque o editor era Vitor Silva Tavares. No Brasil, certamente não teria encontrado ninguém para publicar isto naquela época. Alberto Pimenta, sobre quem eu já tinha escrito, fez a intermediação com o Vitor e a apresentação, que muito me honrou. Eis a capa de Gunilla Lervik, no formato típico da editora &etc, o quadrado:



Em geral, os poetas são afoitos e têm que esconder a estreia depois, porém não tive esse problema: felizmente, só comecei a publicar aos 31 anos. Não me envergonho deste primeiro objeto incômodo (para outros; para mim, é divertido) que publiquei.

Triste que Vitor, que tinha esse tipo de coragem editorial de lançar autores estrangeiros inéditos e obscuros (além disso, como sempre, ele não ficava com nada dos direitos autorais), tenha morrido anos depois e a editora (que era uma extensão dele, como um braço, com que agarrava objetos perdidos e os jogava na cara do mercado literário português) tenha sido fechada.

O aniversário, é claro, não tem realmente importância; mas, como Fabio Weintraub está a completar 20 anos de lançamento do seminal "Novo endereço", tive a ideia de fazermos uma campanha conjunta. Daí saiu a campanha "Vinte : Dois":



Achamos que a efeméride, bem modesta em um ano de centenário da Semana de Arte Moderna e da criação do PCB, e do bicentenário da independência do país (que se consumou poeticamente na tentativa falhada do chefe de Estado de puxar um coro de "imbrochável"), justificou chamar os leitores a participar de uma campanha de financiamento coletivo destas edições especiais: https://benfeitoria.com/projeto/vintedois

A Editora Patuá, que já nos publicou antes, aceitou levar adiante a campanha. Já temos 103 subscritores: muito obrigado a vocês e aos que ajudaram na divulgação! Os livros terão que sair, mesmo que não atinjamos a meta: quem contribuir em muito ajuda a publicação. Ainda faltam oito dias, creio que chegaremos mais perto do que os atuais setenta e nove por cento.

A reedição de "Novo endereço" trará novo aparato crítico (além da apresentação original de Priscila Figueiredo, incluir-se-ão textos de Eduardo Sterzi e Gustavo Silveira Ribeiro) e materiais artísticos produzidos para esta edição (além da foto original de Mário Rui Feliciano, teremos arte de Fernando Vilela, Renato Moriconi e Ronaldo Polito). 

Lembro quando o li pela primeira vez, antes do evento de lançamento em São Paulo, a que não fui, por sinal. Morava no Rio de Janeiro, e foi a única vez em que perdi a estação em que iria descer no trem (Madureira), pois fiquei absorto lendo os poemas, que eram realmente algo novo na poesia brasileira.

Resolvi aproveitar o aniversário da estreia para lançar um livro novo que tenho concebido há, digamos, mais de duas décadas, e a que só agora, creio, tive a capacidade de dar forma: "Assassinato e ascensão do grande escritor (seguidos de antologia completa)". Claro que é a história de um crime; afinal, trata-se de poesia. 

Falando em crimes, Fabio mostrou-me que um imbecil, em alguma rede social de que não me recordo, sentenciou que uma campanha chamada "Vinte : Dois" só poderia ter sido criada por apoiadores do chefe de Estado que está a contemplar impávido a destruição dos biomas brasileiros e a violar abertamente o artigo 231 da Constituição da República, entre muitos outros problemas jurídicos e políticos, que demandam uma enciclopédia da abjeção.

Evidentemente, uma afirmação desse tipo teria que ancorar-se firmemente na ignorância completa do que Fabio e eu fazemos e escrevemos (meu livro sobre bolsonarismo, por sinal, foi publicado em 2019; termina com uma tentativa de fuga). É certo que o modelo de argumentação nas redes sociais (na verdade, a ética das redes) é o uso da própria ignorância como fonte de autoridade ("nunca vi...", "nunca li..." e daí tenta-se provar que o objeto da ignorância do sujeito não existe; não deixa de ser filosoficamente interessante). 

No entanto, eu já tinha publicado este vídeo, que mesmo pessoas com esse estilo mais ou menos suave de analfabetismo podem entender:




sexta-feira, 30 de setembro de 2022

13 discos vermelhos em busca de companhia



Comecei a participar dos #13DiscosVermelhos no twitter, mas interrompi quando começou o último debate dos candidatos à presidência da república. Nele, Jair Bolsonaro, embora reforçado por um auxiliar contrário à lei de cotas e favorável a fechar hospitais, e pelo auxiliar aparentemente vestido para festa junina, pareceu mais fraco do que nunca e fugiu do confronto com Lula.
Assisti ao pobre espetáculo, que acabou de madrugada. Cheguei a escrever, antes disso, que tinha escolhido a Floresta do Amazonas, odiada pelos bolsonaristas (refiro-me ao objeto da inspiração, claro, mas é possível que a música também não seja apreciada), para ficar em cima da pilha de discos por motivos óbvios. A permanência da floresta (embora alguns sustentem que se trata de um bioma já irremediavelmente condenado) é uma das questões que será decidida dia 2 de outubro, uma vez que o governo do candidato à reeleição foi e continua a ser, por motivos que me escapam, uma época alvissareira para o crime ambiental.
Começo, porém, da base: o disco dedicado a Alberto Ginastera, lá embaixo, foi escolhido não só por causa do gênio deste compositor (só escolhi música boa para a pilha, claro; por sinal, o time musical que apoia Lula é muito superior ao grupo que faz arminha), mas também porque foi censurado por uma das ditaduras militares da Argentina por causa da ópera Bomarzo. O disco que tenho da ópera não é vermelho, mas como o compositor vetou a execução de toda sua obra nessa época em reação à censura, achei que poderia começar deste da Orquestra de Lancy-Genève regida por Roberto Sawicki, que ainda toca o violino solo. Ditadura, censura, essas palavras me evocaram algo do presente brasileiro.
Por causa da Argentina, lembrei de Maria Callas, que odiou Buenos Aires quando lá cantou (1949) porque, segundo contou em carta ao marido, a cidade estava cheia de fascistas. De fato, ela não voltou mais àquele país de cujo clima ela também não gostou. O disco (selo Divina) com o que restou gravado da presença da artista na Argentina não é vermelho, por isso peguei este com gravações ao vivo no México, da mesma fase da carreira, com uma voz realmente incomparável. Fica bem na pilha porque é Callas e porque, de fato, não se deve gostar do fascismo.
Como não devemos gostar desses peculiares regimes políticos europeus do século XX, resolvi incluir compositores proibidos pelos nazistas, e um deles morto em campo de concentração (Schulhoff), por marxismo e/ou modernismo e/ou em razão do antissemitismo. Entram Kurt Weill e Ernst Toch (que se exilaram) e o Berg, que morreu de doença antes de ter toda sua obra banida. Em Lulu, por sinal, a ópera que escolhi para a pilha (completada por Friedrich Cerha décadas depois, pois Alban Berg morreu antes de terminar a orquestração do último ato), a crise do capitalismo e a quebra da bolsa de Nova Iorque estão bem no centro da história. Esta gravação, regida por Jeffrey Tate, parece-me muito bem cantada, a começar por Patricia Wise no difícil papel-título, passando por Peter Straka que logra atender à tessitura do Alwa, pela encarnação que Brigitte Fassbaender nos oferece com a lésbica Condessa Geschwitz e pelo veterano Hans Hotter como Schigolch. O disco da Ebony Band,regida por Werner Herbers, inclui o "oratório-jazz" de Schulhoff, "H.M.S. Royal Oak", com texto de Otto Rombach, que conta um episódio real: uma revolta de marinheiros por causa das más condições de trabalho e da proibição de ouvir jazz, um ritmo negro (que também seria proibido pelos nazistas). A revolta vence. Os fãs do atual ocupante da presidência também têm problemas com a negritude. A revolta vencerá.
O disco das trovadoras (trobairitz), na voz de Montserrat Figueras e o grupo Hespèrion XX (quando acabou o milênio passado, Jordi Savall atualizou o nome para Hespèrion XXI), entrou para lembrar das mulheres autoras, contra a misoginia que continua no poder: Condesa de Provenza Garsenda e grande Condesa de Dia. Quase toda essa música foi perdida, mas alguns poemas ficaram e foram cantados com melodia de outros músicos. Parece-me que os fãs do atual ocupante da presidência, fiéis ao ídolo, incomodam-se com esses assuntos e o protagonismo feminino.
Escolhi este disco do grupo da Quixabeira de Lagoa da Camisa, além da vibrante cultura dos trabalhadores rurais, por causa do canto no verso "Essa terra é minha" em "Eu não sou daqui". Por algum motivo, podemos desconfiar que os partidários do atual ocupante da presidência não gostam muito desses trabalhadores, e a escassa simpatia diminui ainda mais quando veem que eles se organizam. No entanto, por alguma razão, esses partidários não veem problemas nas reivindicações de terra se feitas por grileiros.
Taiguara, que era comunista, entrou por causa da censura que sofreu (creio que foi o compositor brasileiro mais censurado da época) e o obrigou a deixar o país. Este era o único disco com lombada vermelha dele que tenho e cobre as músicas anteriores a seus embates mais sérios com a censura, a época em que era conhecido principalmente como cantor romântico. Já está lá, porém, a emblemática "Hoje"
Esta apresentação ao vivo de Elis Regina em 1977 foi lançada originalmente pela gravadora Velas, anos depois da morte da grande cantora. Lembro que eu o ouvi pela primeira vez em um supermercado (esse tipo de estabelecimento vendia discos no século passado) e fiquei paralisado pela voz em "Travessia", de Milton Nascimento. O disco começa e termina com canções contra a ditadura: "Como nossos pais", de Belchior, e "Cartomante", de Ivan Lins (que era o dono da Velas, aliás) e Vitor Martins. Esta, na intepretação de Elis, foi muito relembrada neste fim de mandato de J. Bolsonaro: "Cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei de paus, cai, não fica nada!"
O show "Direitos humanos no Banquete dos Mendigos" reuniu grandes nomes no MAM, Rio de Janeiro, em 1973. Tratava-se da comemoração dos 25 anos da Declaração Universal em um tempo, no Brasil, hostil à dignidade humana. Neste terceiro disco, o único vermelho, temos Milton Nascimento, Jards Macalé, Pedro dos Santos, Dominguinhos e Gal Costa. O poeta Ivan Junqueira fez uma leitura no fim dos artigos desta Declaração das Nações Unidas, texto não amado pelos partidários do atual ocupante da presidência. Tampouco esta organização internacional costuma despertar elogios dessas pessoas.
Da GaL, que foi fotografada fazendo o L várias vezes em 2022 e sempre foi de esquerda, escolhi ainda o "Estratosférica ao vivo", disco duplo recente que combina repertório novo e canções mais antigas, como esta pérola da época da ditadura, "Como 2 e 2", de Caetano Veloso (um ex-cirista que agora faz o L). Estes baianos não são nada apreciados pelos bolsominions, que ficaram muito irritados quando Gal alegremente dançou enquanto seu público demonstrava espontaneamente afetos em relação a J. Bolsonaro.
Em "Munduê", Diogo Nogueira (que honra em vários sentidos o nome do pai, o grande João Nogueira, e também faz o L) acentuou as raízes negras de sua música com os jongueiros do Quilombo de São José da Serra. Bolsonaristas também não gostam desse tipo de repertório (mesmo no belo timbre deste cantor) e até mostram-se capazes de votar em políticos que pesam gente em arrobas.
Esta gravação de "Floresta do Amazonas" foi o último disco gravado de Bidu Sayão, que estava aposentada, mas aceitou retornar aos estúdios a pedido do compositor, Villa-Lobos, que morreria pouco depois e fez nesse momento sua última gravação. É claro que os bolsonaristas não gostam desse tema, e provavelmente também não desta música. Há até gente da música clássica que votou 17 em 2018, mas foi por muita falta, além de consciência política, de consciência de classe.
A maioria do que selecionei foi música vocal. Deixo, então, para comentar por último um item puramente instrumental destes músicos brasileiros. O flautista Francisco Luz e o violonista Fabrício Ribeiro gravaram este disco de música de câmara, "Na solidão em busca de companhia", com música de Villa-Lobos, Radamés Gnattali, Edino Krieger e outros. Escolhi-o por causa da faixa título, de Harry Crowl (um de meus compositores favoritos de hoje), que remete a um poema de Auden. Sei que muita gente não gosta dos poemas de inspiração religiosa desse autor, mas creio que é possível apreciar a simplicidade deste exemplo lírico, e este verso, presente em dois tercetos, é essencialmente antibolsonarista: "Men of their neighbours become sensible".

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Lula no primeiro turno, ou não há simetria entre os dois lados

Este é meu tuíte fixado desde 2018: trecho do programa eleitoral de Fernando Haddad, então candidato a presidente da república pelo PT, com Amelinha Teles e Janaína Teles falando das torturas que sofreram sob comando de Brilhante Ustra, e o atual ocupante da presidência (então candidato) elogiando aquele militar, oficialmente declarado pelo Judiciário brasileiro como torturador.



As duas receberam ameaças anônimas depois e o PT teve um programa político tirado do ar pela Justiça Eleitoral justamente por mostrar Bolsonaro elogiando aquele militar, que havia sido declarado oficialmente torturador pelo Judiciário brasileiro em processo movido pela Família Teles. Note-se que as instituições fizeram sua parte durante a campanha de 2018, o que incluiu a censura inconstitucional (e contrária ao Direito Internacional) da entrevista da Folha de S.Paulo com Lula por Ministro do Supremo Tribunal Federal
Em outubro de 2018, em razão dessas ameaças, redigi com Diogo Justino uma nota pelo grupo de trabalho de Direito, Memória e Justiça de Transição do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais, que o IPDMS não quis publicar.
Tratava-se, no entanto, de uma questão muito relevante politicamente. O atual ocupante da presidência da república elogiou o torturador várias vezes, porém foi na fatídica votação na Câmara dos Deputados em 2016 que escancarou as portas do golpe contra Dilma Rousseff, que projetou o então deputado federal com mais intensidade, além de confirmar, a despeito dos ingênuos, dos incrédulos e dos cúmplices, que o Congresso Nacional tinha realmente decidido romper com a democracia no Brasil. Em caso contrário, Bolsonaro teria sido cassado por aquele ultraje à dignidade humana.
Sabe-se que ultrajar a dignidade corresponde a um dos meios para fazer carreira política, tendo em vista os fins das instituições políticas brasileiras, que conflitam mais ou menos abertamente com os princípios juridicamente instituídos (no atual governo, a colisão é explícita). No entanto, deve-se ressaltar que o voto na apologia aos crimes contra humanidade, na misoginia, no ódio contra indígenas, negros e a população LGBTQIA+ venceu em 2018 em parte por causa do número enorme de votos brancos, nulos e abstenções; somando essas três categorias, 42 milhões de pessoas deixaram de escolher um dos candidatos no segundo turno. Não foram apenas as abstenções, pois o índice de votos brancos e nulos também impressionou: foi "o maior já registrado desde o fim da ditadura militar" (cito matéria da Deutsche Welle).
A situação não deve se repetir nestas eleições, por isso escrevo esta breve nota.
Em 2018, houve muita gente que lavou as mãos diante da anunciadíssima destruição das instituições democráticas e do prometido aumento da violência política. Gente que decidiu fingir, ou realmente achava (a lucidez não é como o sol, não brilha para todos), que Haddad era igual a quem recebia cheques do Queiroz.
Houve até mesmo quem, embora enxergasse paralelos com 1964 (o candidato Bolsonaro viu-os várias vezes, aliás, o que foi esquecido por certos filósofos que resolveram publicar recentemente sobre o bolsonarismo), militares à frente, julgasse que o país vivia uma "escolha difícil". Outras pessoas, com melhor percepção da situação, escolheram com facilidade votar em alguém que considerava áureos os tempos de genocídio indígena, tortura, corrupção, epidemias escondidas pela ditadura militar. Estes foram os fascistas. Por sinal, pudemos ver que, em regra, os perfis neonazistas nas redes sociais escolheram 17 em 2018. Cada um escolhe sua companhia.
Aqueles tempos inaugurados com o golpe de Estado de primeiro abril de 1964 também representaram o encolhimento da renda do trabalhador, o ataque aos direitos sociais, devastação ambiental, desaparecimentos forçados, racismo fomentado pelo Estado, censura, e mais crimes que as diversas comissões da verdade tentaram apurar há poucos anos.
Que todos esses elementos do passado fossem retornar ou se intensificar nestes anos de volta explícita do partido militar ao poder era uma profecia autorrealizada. Mesmo a reação oficial à pandemia, ou seja, deixar que as pessoas morressem, tinha precedente na ditadura militar, como já escrevi. Os inimigos da democracia têm, de fato, motivos para estarem felizes, mesmo se ficaram mais pobres ou se tiveram mortos em razão de suas escolhas políticas. Como um Juscelino Kubitschek às avessas, Bolsonaro quase conseguiu vinte anos de retrocesso em quatro anos de mandato. Em termos de inflação, conseguiu até mais do que isso.
É claro que se trata do que os apoiadores de Bolsonaro querem, mesmo alegando que o fazem em nome da "liberdade" (como naquele significativo manifesto da direita em que o semianalfabetismo aliou-se curiosamente à estupidez política). Em nome da "liberdade", temos o recrudescimento da violência política, com diversos ataques dos apoiadores de Bolsonaro a eleitores da oposição, entre eles o assassinato de Marcelo Arruda, tesoureiro do PT, que teve a festa de aniversário invadida por um policial civil bolsonarista.
A cobertura da imprensa tendeu a culpabilizar a vítima ou a naturalizar o assassinato, seja por um reconhecimento implícito de que sem a criminalidade política a direita não consegue chegar ao poder, seja por uma extensão além-pessoa da anistia informal com que Bolsonaro tem sido tratado pelas instituições. Não há simetria entre os "dois lados" ou entre o alvo e a bala, salvo para os cúmplices e/ou desvairados (que, no entanto, possuem megafones na esfera pública). Ainda escreverei sobre isso.
A Human Rights Watch lançou um apelo para a garantia do voto livre e seguro no Brasil. Quando o PT esteve no poder, isso nunca foi necessário; hoje, setenta por cento dos eleitores têm medo da violência política durante as eleições.
Como escrevi, há os que estão felizes, pois o eleito em 2018 cumpriu muitas das metas que tinha anunciado, como violação dos direitos dos povos indígenas, destruição da Amazônia e ameaças e ataques armados. Eles não são a maioria, porém. Em relação às outras pessoas, entre as quais me encontro, que não estão felizes com os massacres e a situação das chamadas instituições democráticas, a opção é votar 13 para a Presidência da República, dar já a vitória para Lula e não prolongar a violência política com um eventual segundo turno. 
Mais importante ainda, votar em candidatos aos Legislativos federal e estaduais que não conspirem contra a democracia nem se vendam para defender crimes contra o povo brasileiro. Senão, a violência continuará, além das eleições, com incitadores ungidos por mandatos políticos.

quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Poetas de dois mundos: evento em em São Paulo, 9 de setembro

 


O poeta Leonardo Marona, que trabalha na Livraria da Travessa, nela organiza este evento, "Poeta de dois mundos", que volta a ser presencial.

Ele ocorrerá na Travessa de São Paulo no bairro de Pinheiros (Rua dos Pinheiros, n. 513) nesta sexta-feira, nove de setembro de 2022, às 19 horas. 

Farão leituras os autores Augusto Meneghin, Camila Assad, Daniela Rezenda, Fernanda Comenda, Gabriela Efigênia Farrabrás, Guilherme Pavarin, Janaú, Lilian Sais, Mar Becker. Todos eles lançaram pelo menos um livro pela editora Urutau. Também estarei lá.


domingo, 28 de agosto de 2022

Desarquivando o Brasil CLXXXIV: Ato em São Paulo do Dia Internacional dos Desaparecidos



Às 10 horas de 30 de agosto de 2022, em frente à Prefeitura de São Paulo, começará o ato público "Onde estão nossos desaparecidos?", com organização da Associação Mães em Luta, da Associação Mães da Sé e da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Será o Dia Internacional das Vítimas do Desaparecimento Forçado, instituído pela Organização das Nações Unidas em 2010.

Trata-se de um crime que o Estado brasileiro nunca combateu com efetividade e que, não raro, é por ele mesmo praticado: lembre-se, por exemplo, de Amarildo de Souza, que foi sequestrado por agentes da polícia militar do Rio de Janeiro em 2013; seus restos mortais nunca apareceram. Por isso, estão juntas no ato associações dos familiares de desaparecidos da "democracia" e da ditadura.

O desaparecimento forçado, um crime de lesa-humanidade, foi um dos principais instrumentos da repressão política durante a ditadura militar. O Dossiê Ditadura, dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, indica que esse crime cresceu a partir de Geisel: a ocultação dos corpos servia para que a ditadura não só negasse a ocorrência dos crimes, mas reforçasse o discurso da "abertura democrática".

É dessa época esta Carta Mensal do DEOPS/SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social, a polícia política, do Estado de São Paulo), de março de 1975. O documento, que pode ser lido no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo, representa um bom exemplo de que a ditadura não apenas praticava sistematicamente crimes: ela se preocupava em impedir que eles viessem à luz: havia a censura dos meios de comunicação para tanto, bem como a cassação de parlamentares que denunciassem publicamente o governo, só para mencionar os meios "legais" da época; sequestro, tortura e execução extrajudicial de quem denunciasse eram outros meios, fora da lei mesmo naquela época.



Vejam que a campanha de denúncia dos desaparecimentos forçados, que ocorria com força no exterior contando com as redes de exilados, era caracterizada pelos órgãos de repressão como "guerra psicológica adversa" movida pelo "movimento comunista internacional". São categorias da chamda "doutrina de segurança nacional", cuja retórica era usada para as Forças Armadas camuflarem os próprios crimes. Reproduzo a segunda página do documento porque ele menciona um caso famoso, o de Ana Rosa Kucinsi:



Inspirado pelo desaparecimento da irmã (e do marido dela, Wilson Silva) pela ditadura, Bernardo Kucinski escreveu o célebre romance K, traduzido para vários idiomas, sobre que eu e muitos outros já escrevemos. Vejam como a busca de um pai pela filha é vista pelas autoridades: um caso evidente de culpabilização das vítimas.

Diante da inefetividade da justiça de transição no país, há algumas décadas os Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos vêm insistindo no fato de que esses métodos da ditadura se institucionalizaram na "democracia" brasileira. Em 2010, depois de o Supremo Tribunal Federal ignorar a Constituição brasileira e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos para estender a anistia aos agentes da repressão, o Estado brasileiro foi condenado no caso Gomes Lund e outros (o chamado "Caso Araguaia"), pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a investigar os casos de desaparecimento forçado na ditadura e a punir os responsáveis por esse delito. Foi o mesmo ano em que o Estado brasileiro ratificou a Convenção da ONU contra desaparecimentos forçados, depois de tê-la assinado em 2007.

O Estado brasileiro nunca cumpriu a decisão e, em 2018, foi escolhido para a presidência da república um entusiasta da ditadura e da repressão política (mas não em eleições livres, pois o candidato à frente das pesquisas na época, e à frente hoje também, o presidente Lula, foi arbitrariamente preso). Não surpreendentemente, ele, J. Bolsonaro, tem aliado o negacionismo histórico com o negacionismo científico em campos como clima, meio ambiente e saúde pública, com um governo que deixará um saldo inédito de mortos (a pandemia matou muito mais no Brasil do que no resto do mundo) e de devastação ambiental. Nesses dois tipos de negacionismo, vemos o culto e a gestão da morte, que muitos têm caracterizado como necropolítica e é típica dos fascismos.

O ato do dia 30 é justamente o oposto: uma recordação das vidas dos desaparecidos e uma cobrança pública feita em nome deles, pois exigir justiça também é uma medida de memória: quando Judiciário e Ministério Público não punem certo crime, eles contribuem para o esquecimento, que é uma outra dimensão social da injustiça.


sexta-feira, 6 de maio de 2022

Interestelaria: uma antologia, por Julián Axat, de poemas de ficção científica



Interestelaria: Cosmos y Ciencia ficción (Buenos Aires: Ediziones en Danza, 2022) é uma antologia de poesia, organizada por Julián Axat, que realiza encontros improváveis, que podem atravessar continentes e/ou séculos e/ou idiomas: Píndaro e Severo Sarduy,  Giordano Bruno e Enzensberger, Safo e Lorca, Murilo Mendes e Maiakóvski, Blake e Alejandra Pizarnik, o próprio Axat e Baudelaire, Violeta Parra e Ray Bradbury, com Freddie Mercury ao fim. A lista dos autores inclui Szymborska, Luciano de Samósata, Julio Torri, Cyrano de Bergerac, Ginsberg, o Popol Vuh, Olavo Bilac entre muitos outros. 

Talvez seja a primeira antologia de poesia de ficção científica em língua espanhola, informa Axat no prólogo. Não conheça uma equivalente no idioma português. A galáxia criada por Axat é tão inclusiva que estou nela (meu poema sobre as baratas como nova humanidade, que alguns podem achar distópico e/ou fantástico, embora eu pense o oposto).

Como fui incluído, não me cabe resenhar este volume, lançado em edição fora do comércio. Mas posso dar notícia dele, através de um telescópio particular. Divide-se nas seguintes seções: Cosmogonías (Big bang, universo y panspermia), Los astrónomos, Planetas, Lunas y cometas, Constelaciones (Estrellas, galaxias y supernovas), Viajes más allá del tiempo (profecías, distopías, alucinación y sueños, Seres de otros mondos (Robots, superhombres, mutantes, aliens), La carrera espacial (Astronautas, cosmonautas y cohetes), Rock, poesía y ciencia ficción. 

A capa e as ilustrações foram feitas por ninguém menos do que o notável Emiliano Bustos (a lista de obras consultadas para realizar as ilustrações está no fim e representa um outro sistema dentro desta galáxia), também presente como poeta, assim como seu pai, Miguel Ángel Bustos, que é uma das vítimas do terror de Estado na Argentina.

Como ele é um desaparecido da última ditadura naquele país, ecoemos a pergunta que feita no início de seu poema "Celestial", incluído em Interestelaria:


Dónde ha ido el celeste de um cielo
de clara llama?
[...]
Solo quedò el hombre
entre los planetas de hierro y espuma
que van oscuros e gimen.


P.S.: Talvez não seja inoportuno lembrar que Axat publicou em 2021 um impressionante livro de poesia sobre viagens espaciais, Perros del cosmos, também pela Ediziones en Danza, que é uma obra realmente única.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Desarquivando o Brasil CLXXXIII: Áudios dos julgamentos de presos políticos no STM

Devemos todos agradecer ao pesquisador e advogado Fernando Augusto Fernandes; o Superior Tribunal Militar tentou esconder as gravações em áudio dos julgamentos de presos políticos durante a ditadura militar. O STM declarou o segredo por cem anos desse material, mas Fernandes conseguiu acesso graças à decisão no Recurso de Mandado de Segurança n. 23026. O STM também tentou apreender e destruir o material de pesquisa do então doutorando, que conseguiu impedir judicialmente a medida autoritária desta Corte que tem problemas de apneia em ares democráticos.

O autor conta essa história no livro Poder & Saber: Campo jurídico e ideologia, que a Revan publicou em 2012. Antes dessa obra, pela mesma editora, ele havia publicado Voz humana: A defesa perante os tribunais da república, de 2004, em que também conseguiu usar essas fontes, descobertas por Fernando Augusto Fernandes em 1997, graças a decisão do Supremo Tribunal Federal que o STM resistiu inicialmente a cumprir. Ele conta essa história nas obras, cujo processo de feitura confirma a permanência da cultura autoritária desse órgão do Judiciário cuja existência não se justifica mais (a Justiça Federal poderia, sem dúvida, absorver seus casos).

A historiadora Beatriz Kushnir lembrou no twitter do papel pioneiro desse pesquisador, agora que outro historiador, Carlos Fico, está a trabalhar com essas fontes. Infelizmente, em 17 de abril último algumas matérias jornalísticas equivocadas saíram a respeito. 

O Uol, em momento de negação da pesquisa histórica, ignora o nome de Fernando Augusto Fernandes, o descobridor do material, e julga que é inédita uma citação de Sobral Pinto não só está transcrita como foi incluída num dos cds que acompanha o livro de 2004, Voz humana.

O engano não é original, vem da matéria de O Globo, em que vemos Carlos Fico falar que Fernandes havia conseguido judicialmente a liberação das fitas, mas só havia analisado 54 julgamentos. Parece que é o próprio Fico que acha que a fala de Sobral Pinto era inédita em áudio e texto impresso. 

Dito isso, o livro de Fernandes não traz áudios dos magistrados, que são o material que Fico destaca e foram, além do de Sobral Pinto, em parte divulgados por O Globo (ele os cedeu a Míriam Leitão, que foi presa política) e podem ser ouvidos no portal da Globo News.

Como desde a pesquisa de Fernando Augusto Fernandes sabe-se deste material, não podemos deixar de corroborar a manifestação do perfil Arquivística, que publica notícias sobre os arquivos no Brasil e no mundo, sobre o atraso da Comissão de Ética do Senado em querer conhecê-lo. Antes tarde do que nunca, porém, e fiquemos a acompanhar se haverá algum desdobramento institucional. É claro que a  própria Comissão não terá a expertise nem o tempo de fazer a análise dos milhares de horas de gravação.

O Ato Institucional n. 2 foi o instrumento normativo para ampliar a competência da Justiça Militar para julgar civis nas questões de segurança nacional - passo fundamental para conferir um caráter "militar" ao regime que nasceu de um golpe, ele sim, civil-militar (como sustenta Fico, por sinal), pois os conspiradores civis foram muito importantes em 1964. Com a institucionalização de uma diadura de segurança nacional, alguns desses conspiradores civis acabaram cassados, como Carlos Lacerda, as eleições diretas para a presidência foram abolidas com o AI-2 para que a escolha da presidência da república fosse determinada pelos militares, que acabariam dando novo golpe, em 1969, para impedir que o vice (civil) de Costa e Silva chegasse ao poder. Depois, salvo quando assumiu o último ditador, o general Figueiredo, pois Aureliano Chaves foi escolhido para compor a chapa presidencial, teriam o cuidado de que o vice do ditador em plantão sempre fosse militar.

Deve-se lembrar que o próprio direito brasileiro, como ordenamento, sofreu com essa militarização das instituições, eis que ramos jurídicos os mais diversos ficaram submetidos às diretrizes indeterminadas da "segurança nacional". A ditadura militar confiava numa justiça de mesmo caráter. Os protestos do STM em 2014 contra o relatório da Comissão Nacional da Verdade, que ratificou o papel da Justiça Militar na repressão política, não tinham realmente fundamento

O material que Fico está a pesquisar agora, parece, até o momento, confirmar esse quadro. Há diversas provas de que a tortura existia e que as autoridades sabiam disso e com ela cooperavam ou a dirigiam. Curiosamente, apesar da importância do material, o twitter, no destaque "Áudios dos anos 70 mostram oficiais militares falando sobre tortura na ditadura", "protege" as ligações para esses áudios e notícias com um aviso: "O conteúdo a seguir pode apresentar material sensível".



O caráter extravagante da advertência revela-se no fato de que nada, nada do que é ouvido se compara à violência das declarações do atual ocupante da presidência da república sobre os desaparecidos políticos, sobre os crimes de lesa-humanidade em geral e sobre ex-presos políticos, entre eles a própria jornalista Míriam Leitão. O país decaiu muito em termos de decência e civilidade em poucos anos, talvez para níveis abissalmente mais baixos do que o de vários momentos da ditadura. Contudo, o perfil daquela pessoa na rede social não apresenta nenhum aviso semelhante ao que foi dado aos áudios do STM. 

O twitter, resolvendo "marcar" esse material histórico de forma parecida com o que faz com o conteúdo pornográfico, fica evidentemente não do lado do direito à memória e à verdade, mas do ocultamento da história, que é sempre uma tática dos defensores do autoritarismo.


P.S.: Leio em O Estado de S. Paulo de 18 de abril, "Áudios do STM apontam casos de tortura na ditadura", que Fernando Fernandes coordena um projeto com os professores da UFF Gisálio Cerqueira Filho e Gizlene Neder para disponibilizar todos os áudios em portal "em fase de conclusão". De fato, um jornalismo mais sério teria de ouvir o pesquisador que descobriu o material.


sábado, 9 de abril de 2022

Desarquivando o Brasil: CLXXXII: 50 anos da Guerrilha do Araguaia, evento em 12 de abril



No Canal Narrativas da Ditadura Brasileira (inscrevam-se aqui: https://www.youtube.com/channel/UCgQ1CvcgV2yfIDnAvw2tmuA), capitaneado pela professora Luciana Coronel, acontecerá um debate ao vivo, com o depoimento da ex-guerrilheira Crimeia de Almeida (uma das poucas sobreviventes da Guerrilha) e participação minha (pelo IPDMS) e da historiadora Janaína Teles (professora da UEMG).

Ambas são membros da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, sem a qual o Estado brasileiro não teria sido condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil em 2010 (vejam a sentença), movido a partir dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia. Entre as consequências dessa condenação internacional, embora ainda descumprida pelo Estado, estão a Lei de Acesso de Informação e a criação da Comissão Nacional da Verdade.

Criméia foi torturada grávida, deu à luz na prisão e sofreu violência obstétrica; aqui, se pode ver o depoimento que ela deu em 2013 à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" sobre sua história:

Sobreviventes da ditadura relatam tortura de gênero - Parte 1:  https://www.youtube.com/watch?v=-YCg0cIsiKc

 Sobreviventes da ditadura relatam tortura de gênero - Parte 2:  https://www.youtube.com/watch?v=cmIW0wl_Br0

Tudo o que ela conta é impressionante, como a preparação que o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, fez antes de 1964 para a repressão politica, o IPM que ela teve de responder depois do golpe como membro do movimento estudantil secundarista, a prisão em Ibiúna, o Araguaia e, anos depois, a tortura feita pelos médicos após o parto. Seu companheiro, André Grabois, é um dos desaparecidos do Araguaia, bem como seu sogro, Maurício Grabois, todos do PC do B.

Essas histórias não encontram grande circulação; sobre essa amnésia social, cito Janaína Teles ("Os segredos e os mitos da Guerrilha do Araguaia"):

Os governos militares decidiram extirpar a guerrilha da história; o movimento não deveria produzir sequer efeitos judiciais. Perante a justiça militar, a Guerrilha do Araguaia não existiu – os processos movidos contra os sobreviventes não fizeram menção ao fato4. A maioria, presa no início da guerrilha ou fora da área do conflito, sequer chegou a ser processada, tal como ocorreu com Danilo Carneiro e Criméia de Almeida, mantidos confinados por vários meses sem acusação formal (Carneiro, 2010; Almeida, 2008). Os que foram processados acabaram condenados apenas por sua militância em partido clandestino, o PC do B.

Os guerrilheiros permanecem na condição de desaparecidos políticos, uma vez que seus restos mortais continuam em locais ignorados5. Filhos de guerrilheiros, nascidos durante os combates ou em cativeiro, teriam sido apropriados pelos militares.

O apagamento da história persistiu; relembro que a própria Comissão Nacional da Verdade não iria tratar da Guerrilha, o que foi denunciado em agosto de 2014 por Adriano Diogo, presidente da Comissão "Rubens Paiva", e Amelinha Teles, então assessora desta Comissão (depois passaria a coordená-la). Depois disso, a CNV decidiu contratar em setembro pesquisador para elaborar em tempo recorde o capítulo que integrou o relatório final, que seria entregue no início de dezembro (a Carta Capital publicou matéria sobre a denúncia, "Relatório final da Comissão da Verdade pode ficar sem capítulo sobre o Araguaia").

O momento político é de apagamento dessas histórias e de negacionismo dos crimes de lesa-humanidade do Estado brasileiro e das Forças Armadas, que voltaram ao poder com um preposto que debocha abertamente do direito dos familiares de desaparecidos ao luto. Espero que o evento contribua, ainda que modestamente, para a reversão do estado de coisas.

Adendo:

A ligação para o evento: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=bQ2tXZSZAio

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

"No dia do seu passamento/ não só os nazistas choraram"


I. A leitura em branco



No dia do seu passamento
não só os nazistas choraram,
mas todos eles o fizeram
no dia do seu passamento.

Também os fascistas choraram,
não só eles, mas eles todos
no dia do seu passamento.

Quanto pranto dos homofóbicos,
dos racistas e dos misóginos
seco derramado sob máscaras
no dia do seu passamento

enquanto o corpo alimentava
mais vermes, também iletrados
agora totalmente em branco.



II. Fala da garganta inflamada ao vírus


– o vírus, que não existe,
não me atinge, pois só
pertence à ordem do letal
o que existe, e somente
pode atingir o existente
aquilo que também o seja,
por conseguinte teu cu
também não me atinge,
após as estocadas
das minhas aulas
ele não mais existe,
virou falha geológica,
e não há nenhuma
onde habito, uma região
do maior país do mundo,
não no cu de terra onde inventam
um vírus, portanto
as vacinas inoculam
a inexistência, destruindo
a ordem, a propriedade, a fé
e o bom gosto, claro,
porém, assim como descobri
que a terra é plana
porque minha bunda não é curva,
sei que o vírus não existe,
é o que dizem os números,
só morreram pessoas com órgãos,
portanto foram eles que falharam,
morreram pessoas sufocadas,
ou seja, falhou a atmosfera
que fugiu momentaneamente do espaço,
comprovando o erro da lei da gravitação universal
do imbecil do Newton ou do Einstein,
comunistas que queriam negar
o voo dos anjos,
a falha é da atmosfera, não
do corpo, e o vírus é somente
quase um corpo
ou um cu, que é feito de oco
e por isso quase inexistente.


III. Luta oficial


a principal diferença entre um pangaré de carroça e um puro sangue não é a cor
o direito racial é racismo
fiquem eles com os rituais com galináceos pretos
eu fico com n. s. jesus cristo
e a uma higiênica distância em caso de mau cheiro
dos cantores negros que vendem 5 milhões de discos
dos gays e das lésbicas

a contribuição básica dos negros ao Brasil foi dada através do trabalho escravo
a contribuição cultural das religiões africanas no mundo é perfeitamente dispensável
o normal é ter uma oligarquia no poder
é falso que a ditadura impeça o exercício da atividade intelectual
aliás não fez mais do que duzentas vítimas
mas
o Estado prende na armadilha da pior das tiranias uma imensa rede de serviços públicos
até de saúde

até de saúde
o pensamento de um filósofo não se deduz das crenças gerais da comunidade
eu fico com n. s. jesus cristo
a religião é um valor universal uma condição sine qua non das culturas
colocá-la abaixo do vírus é monstruoso

é verdade que
tendo matado o gigante do comunismo a dentadas
o herói descobriu que o falecido era aidético

uma verdadeira cultura literária pode corrigir essas distorções
introduzindo na vivência da obra o senso das proporções e da conveniência

um puro sangue


IV. Resposta do vírus à garganta inflamada


Embora tente,
não logro ouvir
que não existo
enquanto roo
o fio do fôlego;
enquanto piso
no seu pescoço
não ouço a voz
que rouca explica
que não existo
para a doutrina
que administra
o genocídio,
não posso assim
saber-me nada,
sumo nihilo,
não logro ouvir
por que a língua
contrai-se em ricto,
vermelho verme
agora inerte,
soa tão mínima
quanto as bactérias
que se alimentam
de sua matéria, a
filosofia
talvez provenha
agora delas,
como a que explica
que não existo
segundo toda a
economia,
ela jamais
contabiliza
corpos caídos
caso não possam
ser revendidos;
também segundo
a teologia
pois ninguém sofre
do inexistente,
morrer do vírus
trairia a fé
em deus pela
ímpia crença
no genocídio,
e quem morreu
não paga dízimo,
o que comprova a
falta de fé
dos que caíram;
mas tudo isso
é o que ensinam,
e nada aprendo:
infesto o sangue
de meu silêncio;
como eu, o vírus
não tenho ouvido,
continuo sendo,
não ouço aqueles
que me revelam
inexistente,
nem mesmo quando
alto ressoam
tosses, gritos
e os estertores,
e aos pulmões juntam
respiradores,
eu não consigo
saber enfim
que não existo,
e assim prefiro,
pois o inaudível
é bem mais vivo
do que a teoria.


V.  Luto antioficial


Os que cairiam
por tua causa
saudamos
a queda
que entre ti
e nós
escolheu
o que lhe era semelhante