O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 24 de janeiro de 2015

Desarquivando o Brasil XCIX: Justiça Militar, "parte do esquema militar", e o STF de hoje

O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) gerou, de imediato, reações curiosas, como a defesa do crime de tortura em jornal que auxiliou a repressão, e também uma curiosa nota do Superior Tribunal Militar (STM) de rejeição às críticas feitas pela CNV à Justiça Militar.
A nota à imprensa, divulgada de forma aparentemente constrangida (ela não tem nem mesmo título), pode ser lida no sítio do Tribunal. Cito um trecho:
Na realidade, a Justiça Militar da União (JMU) não “teve papel fundamental na execução de perseguições e punições políticas”, não “institucionalizou punições políticas” e tampouco ampliou, para si mesma, sua competência para o “processamento e julgamento de civis incursos em crimes contra a Segurança Nacional”. Muito menos, foi a “retaguarda judicial [...] para a repressão [...] conivente ou omissa às denúncias de graves violações de direitos humanos”.
Nas recomendações finais, o Relatório sugere a “exclusão de civis da jurisdição da Justiça Militar Federal”, pois consiste, segundo a Comissão, em “verdadeira anomalia que subsiste da ditadura militar”.
[...] O Poder Judiciário só age quando acionado e a JMU, à época dos fatos, assegurou os princípios garantistas e os direitos humanos.

Segundo a ministra Maria Elisabeth Guimarães Teixeira Rocha, a Justiça Militar, ao contrário da Justiça comum, não teria se dobrado ao regime. Ela o havia afirmado no número 24 da Revista do Ministério Público Militar, de novembro de 2014, em que publicou o discurso significativamente chamado "A importância das justiças militares para o Estado Democrático de Direito":
Mas o STM foi a única Corte de Justiça do Brasil que subscreveu manifesto, em 19 de outubro de 1977, autografado por todos os seus Ministros, condenando as torturas e sevícias, corriqueiramente praticadas, em defesa da dignidade da pessoa humana. Um ato de coragem e destemor, diferentemente de todo o resto do Poder Judiciário que quedou silente.

Houve quem me perguntasse se esses protestos do STM faziam sentido. De fato, não, mas a resposta não é tão simples. Podem-se encontrar comentários como este, atribuído a Evaristo Moraes Filho, de que "o milagre brasileiro foi a Justiça Militar, porque ela funcionava" (por George Tavares em Os advogados e a Ditadura de 1964, organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, edição da Vozes e da PUC-Rio).
Em revanche, pode-se ler em Brasil: Nunca mais a imbricação entre a Justiça Militar e o poder autoritário:
Por lei, os juízes militares devem ser escolhidos por sorteio entre os oficiais habilitados, segundo listas enviadas pelos órgãos da administração do pessoal das Armas.[...]
O que se verificou, no entanto, ao analisar os processos do Projeto BNM, é que vários oficiais se repetiam nos Conselhos sucessivos com uma frequência tal que ultrapassava qualquer probabilidade estatística de um sorteio honesto. E mais: chegavam a ser indicados como juízes-militares elementos vinculados, direta ou indiretamente, aos organismos de segurança.
Houve ocasiões em que o réu se defrontou, na Auditoria, com um oficial membro do Conselho, que o tinha interrogado durante a fase investigatória nos órgãos de segurança. Os capitães do Exército Maurício Lopes Lima e Roberto Pontuschka Filho, acusados de torturararem presos políticos no DOI-CODI-II do Exército, funcionaram como juízes em processos nas Auditorias de São Paulo.
A Justiça funcionaria como "extensão do aparelho de repressão policial militar"; "a análise dos processos pesquisados leva à conclusão de que a quase totalidade das condenações apoiou-se no conteúdo dos inquéritos policiais. As provas colhidas durante a fase judicial eram ignoradas pelas sentenças".

O Ato Institucional no. 2 (AI-2), modificando o parágrafo primeiro do artigo 108 da Constituição de 1946 fez com que os inquéritos policiais militares relativos a crimes contra a segurança nacional passassem para a competência da Justiça Militar mesmo em caso de réus civis: "Esse foro especial poderá estender-se aos civis nos casos expressos em lei para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares."
O AI-2 foi importantíssimo para a institucionalização da ditadura: extinguiu todos os partidos políticos existentes (art. 18), acabou com a eleição direta para Presidente da República e Vice (art. 9o.), além das garantias de vitaliciedade e estabilidade (já atingidas, por seis meses, pelo primeiro Ato Institucional), suspendeu a garantia de inamovibilidade (art. 14), ampliou a composição do STM (art. 7o.) e do STF (art. 6o.), fez a nomeação dos juízes federais depender do Presidente da República (art. 6o.); o artigo 16 vai além do primeiro AI na caracterização dos efeitos da suspensão dos direitos políticos...
Os militares não confiavam nos juízes civis, e sim em sua Justiça, e a intervenção no STF também tinha como fim (nesse momento, não bem sucedido) de assegurar maioria também neste Tribunal.
Algumas decisões das auditorias militares são antológicas em seu papel de garantia da tortura e da execução extrajudicial; por exemplo, a decisão do alegado "suicídio" de Manoel Fiel Filho, assassinado após tortura no DOI-Codi de São Paulo.
Os exemplos de decisões análogas são diversos. Lembremos de outro tipo de exemplo: a Justiça Militar sendo usada para cercear a discussão do Projeto de Anistia.
A Comissão Mista formada no Congresso Nacional em 1979 para discutir o projeto governamental, sob a presidência do Senador Teotônio Vilela, resolveu fazer visitas aos presos políticos para colher denúncias. Parlamentares da Arena, partido de sustentação política da ditadura, boicotaram essas visitas e boa parte das reuniões da Comissão.

O STM resolveu impedir essas visitas, incômodas para a ditadura. Os militantes da ALN Gilney Amorim Viana e Perly Cipriano, no livro Fome de liberdade (2a. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009), que foram presos políticos no Frei Caneca, contam:

A ditadura tem poucos recursos: quando falha o esquema parlamentar só pode apelar para o esquema militar, pois não tem apoio popular.
E o esquema militar, neste momento, foi acionado através da chamada Justiça Militar. Alguns juízes auditores são reconhecidamente ligados aos órgãos de repressão política (em São Paulo, primeiro à OBAN - Operação Bandeirante, depois ao DOI-CODI). Através deles tentam impedir a visita de parlamentares ao Presídio Político do Barro Branco, apelando para pseudodireitos regulamentares de controle da visitação. Isso logo depois da visita realizada pelo senador Teotônio Vilela, 9 de julho passado, que mereceu uma crítica indevida e extrajudicial da parte de um destes conhecidos juízes auditores, através de comunicado secreto ao Superior Tribunal Militar. De imediato a iniciativa teve consequências: impediram a visita do líder do MDB na Câmara Federal, deputado Freitas Nobre, aos companheiros do Barro Branco, em 14 de julho. E, completando, impuseram uma série de limitações e cerceamento às visitas normais aos presos políticos.

E transcrevem ofício do General Reynaldo Melo de Almeida, então presidente do STM (nessa passagem lembram que o General Jordão Ramos foi politicamente preterido para a presidência desse Tribunal; de fato, ele não era confiável para a ditadura; tentou, por exemplo, reabrir em 1978 o caso do assassinato de Alexandre Vannucchi Leme) ao presidente do Senado Federal. O ofício revela aquele comunicado e explica que a "entrevista coletiva paramentar" não fora permitida por falta de autorização às autoridades judiciárias. Os autores aproveitam e fazem notar que o general no ofício reconhece o que a ditadura publicamente negava, isto é, que eles eram presos políticos.
Vejam este despacho do Juiz Auditor Nelson de Silva Machado Guimarães, da 2ª Auditoria da Justiça Militar,em 12 de março de 1979,  indeferindo petição, apresentada por parlamentares, para que fossem permitidas visitas coletivas aos presos políticos do Barro Branco, que estavam em greve de fome: "Os Comitês Brasileiros pela Anistia, na verdade, estão confundido a opinião pública: a pretexto de uma proposta de pacificação de espíritos, com a qual têm conseguido algum apoio de pessoas e entidades generosas mas incautas, estão pregando a subversão, tentando ocultar a verdade de muitos fatos, e promovendo, na prática, uma forma de apologia do crime e dos criminosos."
É bastante curiosa a alegação final de "independência" do Judiciário, considerando que esse Poder estava dominado pelo Executivo, especialmente a Justiça Militar.
Vejam como a justiça Militar colaborava na prática de crimes contra a humanidade, nesta passagem, entre várias, do  Relatório da CNV, no capítulo sobre desaparecimentos forçados:
18. O caso de Frederico [Frederico Eduardo Mayr, militante do Molipo; vejam a audiência da Comissão da Verdade do Estado de SP "Rubens Paiva" sobre o seu caso] é representativo de um padrão na prática de desaparecimento. Sua prisão e morte não foram oficialmente assumidas pelo Estado na época, mas foram objeto de denúncias por diversos presos políticos no âmbito do Processo no 100/1972, da 2a Auditoria Militar de São Paulo. O juiz auditor Nelson da Silva Machado Guimarães, responsável pelo processo, não fez constar nos autos as denúncias, mas extinguiu a punibilidade de Frederico em razão de sua morte, comprovada por documentos do DOPS/SP: o exame necroscópico e o atestado de óbito com o nome falso de Eugênio Magalhães Sardinha, embora o nome verdadeiro aparecesse grafado à mão. Em depoimento à CNV em 31 de julho de 2014, o juiz Nelson da Silva Machado Guimarães reconheceu que recebia atestados de óbito com nomes falsos de militantes políticos que estavam sendo processados à revelia e que, com base neles, determinava a extinção da punibilidade por morte. O juiz admitiu que não ordenava a retificação dos atestados para corrigir a identificação das vítimas e tampouco prestava informações às famílias que, àquela altura, estavam à procura de seus parentes. No caso de Frederico Mayr, somente em 1979, quando tiveram acesso ao atestado de óbito registrado com o nome falso, os familiares tomaram conhecimento de seu sepultamento no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em São Paulo. Inúmeros casos repetem o uso de cemitérios clandestinos e sepultamento de vítimas como indigentes ou com identidade falsa. [tomo I, volume I, p.505-506]
Nessa posição da Justiça Militar como garante dos crimes contra a humanidade, lembramos da Sofía I. Lanzilotta e Lucía Castro Feijóo (Justicia y Dictatura: Operadores del plan cívico-militar en Argentina, Buenos Aires: Ediciones del CCC, 2014): "En el contexto del terrorismo de estado, esa omisión al deber de cuidado que especialmente le compete al juez constituye un delito por omisión de lesa humanidad.".
A CNV, no entanto, poupou esses garantes, que não entraram na lista dos 377 autores de graves violações de direitos humanos.

Apesar de tudo isso, houve judicialização da repressão (não para todos e, especialmente, não para o maior número das vítimas da ditadura militar: índios e camponeses, que morreram aos milhares), e ela também teve um efeito positivo (além do negativo de comprometer setores da Justiça na defesa do regime). Lembremos da pesquisa de Anthony Pereira (Political Injustice, já publicado no Brasil), que mostra que a Justiça Militar absolvia na metade dos casos. o formalismo do direito (que pode ser favorável aos direitos humanos), inclusive do direito processual, acabou permitindo a rejeição de diversas denúncias que, tantas vezes, eram ineptas, sem nem mesmo especificação do crime que teria sido cometido. Como exemplo, cito declaração de voto do General Pery Bevilaqua, Ministro do STM, no Habeas Corpus no. 27937, em 1o. de setembro de 1965.
A falta de justa causa para processar os 14 oficiais e sargentos que teriam cometido o "crime de fidelidade" ao governo de João Goulart, e que não aderiram em alta velocidade à Revolução que irrompera em Minas Gerais a 31 de março, se evidencia na fragilidade - para não dizer o ridículo - das acusações contidas na famosa denúncia. Assim, salienta o informante, "assistir palestras de Leonel Brizola", "tomar parte em movimento de solidariedade política", "pressionar o ex-presidente João Goulart a não renunciar", "candidatar-se a cargos eletivos", "ligar-se diretamente ao comandante do III Exército", "frequentar certas livrarias" [...]
Bevilaqua foi voto vencido nesse caso de militares que residiam em Porto Alegre. Em um sistema como esse, posições legalistas podiam ser "subversivas". Não por acaso, Bevilaqua foi um dos magistrados afastado por meio dos atos institucionais, e não por acaso a ditadura teve que intervir diretamente no Judiciário, não só ameaçando juízes, mas também aposentando-os à força ou os demitindo, além de tentar impedir que juristas de esquerda chegassem à magistratura.
É impressionante que os bacharéis engajados na ditadura continuem negando que ela tenha existido, e afirmem ainda que havia Judiciário e Congresso independentes. É certo que o fazem nos jornais que mais a apoiaram.

A nota do STM é um exemplo, pois, de impressionante amnésia seletiva, em que o esquecimento cobriu quase todo o panorama. Ficou de fora dessa amnésia o acórdão de 19 de outubro de 1977 que determinou a apuração de tortura contra Paulo José de Oliveira Moraes, denunciada pelos Ministros Gualter Godinho (que era civil) e Júlio de Sá Bierrenbach.
Vejam, ao lado, tirado de pasta da Ordem Social do DOPS de Santos (OS 37, no Arquivo Público do Estado de São Paulo), o início de matéria sobre esse acórdão e as denúncias de tortura - assunto que era destacado nessas pastas.
Apesar disso, outra coisa é imaginar o que teria havido se o AI-2, ou medida análoga, nunca tivesse sido editado: decisões como aquela - uma exceção no âmbito da Justiça Militar - teriam sido bem mais frequentes.
Lembro das palavras de Hélio Bicudo em Lei de Segurança Nacional: Leitura crítica (São Paulo: Paulinas, 1986):
Num país democrático os crimes - sejam eles quais forem - devem ser julgados pela justiça comum. Somente as infrações disciplinares devem ser apreciadas pela hierarquia militar, como, aliás, acontece no serviço público em geral, onde essas infrações são conhecidas e decidida a punição pelos chefes de repartição.
A Justiça Militar, como se estrutura no Brasil, é uma justiça especial, e como tal deve desaparecer.
Por isso, dentro da atual democracia estilo "garantia da lei e da ordem", é tristemente significativo que, sem mesmo precisar de um novo AI-2, o STF, pelas mãos do Ministro Luís Roberto Barroso, em caso de suposto "desacato" contra militares na ocupação do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, pelas Forças Armadas, no Rio de Janeiro. Trata-se do HC 112932, julgado em 13 de maio de 2014:
Ementa: HABEAS CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO A RECURSO ORDINÁRIO. PACIENTE CIVIL ACUSADA DE DESACATO PRATICADO CONTRA MILITAR EM ATIVIDADE TIPICAMENTE MILITAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. INAPLICABILIDADE DA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS. 1. Compete à Justiça Militar processar e julgar civil acusada de desacato praticado contra militar das Forças Armadas no “desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública” (art. 9º, III, d, C.P.M). Processo de pacificação das comunidades do Complexo da Penha e do Complexo do Alemão. Precedentes da Primeira Turma: HC 115.671, Relator para o acórdão o Ministro Marco Aurélio; e HC 113.128, Rel. Min. Luís Roberto Barroso. 2. O Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 90-A da Lei nº 9.099/1995, com a redação dada pela Lei nº 9.839/1999 (HC 99.743, Relator para o acórdão o Ministro Luiz Fux). Inaplicabilidade da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais ao âmbito da Justiça Militar. Precedente: HC 117.335, Rel. Min. Gilmar Mendes. 3. Habeas Corpus extinto sem resolução de mérito, por inadequação da via processual.
A paciente, em 2 de outubro de 2011, havia mostrado a bunda para os militares que reclamavam do barulho e não conseguiam dormir. Nesta jurisprudência da bunda subversiva, Barroso, na verdade, seguiu o parecer da Subprocuradora-geral da República, Cláudia Sampaio Marques, com o requinte antigarantista de impedir a possibilidade de suspensão do processo da lei no. 9099/1995, ao deslocar o processo para a competência da Justiça Militar. O Ministro Joaquim Barbosa, antes de se aposentar, já havia denegado liminar com uma fundamentação bastante sumária.
A Subprocuradora-Geral aplicou desta forma o princípio da isonomia: "considerando que o regime militar está permeado de situações excepcionais, pois fundado nos postulados na hierarquia e da disciplina, seria despropositado impor aos militares o mesmo regime jurídico penal dos civis."
Não é despropositado, porém, para essas autoridades, impor aos civis o regime excepcional do processo na Justiça Militar... In dubio pro caserna.
 Essa nova jurisprudência diverge de decisões passadas do STF (como lembrou Rogério Tadeu Romano). Ministro Celso de Mello, em medida cautelar do HC 110237, em 19 de dezembro de 2013 (reiterando a decisão na cautelar, em 12 de setembro de 2011), reafirmou o princípio do juiz natural, e ainda se referiu a uma tendência de extinção das Justiças Militares no mundo:

A REGULAÇÃO DO TEMA PERTINENTE À JUSTIÇA MILITAR NO PLANO DO DIREITO COMPARADO.
- Tendência que se registra, modernamente, em sistemas normativos estrangeiros, no sentido da extinção (pura e simples) de tribunais militares em tempo de paz ou, então, da exclusão de civis da jurisdição penal militar: Portugal (Constituição de 1976, art. 213, Quarta Revisão Constitucional de 1997), Argentina (Ley Federal nº 26.394/2008), Colômbia (Constituição de 1991, art. 213), Paraguai (Constituição de 1992, art. 174), México (Constituição de 1917, art. 13) e Uruguai (Constituição de 1967, art. 253, c/c Ley 18.650/2010, arts. 27 e 28), v.g..
- Uma relevante sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (‘Caso Palamara Iribarne vs. Chile’, de 2005): determinação para que a República do Chile, adequando a sua legislação interna aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar, adote medidas com o objetivo de impedir, quaisquer que sejam as circunstâncias, que ‘um civil seja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares (...)’ (item nº 269, n. 14, da parte dispositiva, ‘Puntos Resolutivos’).
- O caso ‘ex parte Milligan’ (1866): importante ‘landmark ruling’ da Suprema Corte dos Estados Unidos da América.
O POSTULADO DO JUIZ NATURAL REPRESENTA GARANTIA CONSTITUCIONAL INDISPONÍVEL, ASSEGURADA A QUALQUER RÉU, EM SEDE DE PERSECUÇÃO PENAL, MESMO QUANDO INSTAURADA PERANTE A JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO. [grifos do original]
Esta foi uma das decisões do STF em que se respeitou jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A sentença desta Corte da OEA nesse caso, de 22 de novembro de 2005, estabelecia a obrigação de o Chile adequar seu ordenamento jurídico para que, se desejasse manter uma "jurisdição penal militar", "em nenhuma circunstância um civil se veja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares". Cito este ponto resolutivo:

14. El Estado debe adecuar, en un plazo razonable, el ordenamiento jurídico interno  a los estándares internacionales sobre jurisdicción penal militar, de forma tal que en caso de que considere necesaria la existencia de una jurisdicción penal militar, ésta debe limitarse solamente al conocimiento de delitos de función cometidos por militares en servicio activo. Por lo tanto, el Estado debe establecer, a través de su legislación, límites a la competencia material y personal de los tribunales militares, de forma tal que en ninguna circunstancia un civil se vea sometido a la jurisdicción de los tribunales penales militares, en los términos de los párrafos 256 y 257 de la presente Sentencia.

A violação dos padrões do Direito Internacional dos Direitos Humanos não é surpreendente no Supremo Tribunal Federal, tampouco se vinda de Barroso, que já escreveu que os internacionalistas defendem a prioridade do Direitos Internacional dos Direitos Humanos "por causa de sua formação". Esse caso, assim como a ADPF 153 (o caso da Lei de Anistia do General Figueiredo), obedece à lógica do inimigo interno, herança da doutrina de segurança nacional: se antes os inimigos eram os "subversivos", os opositores, ou simplesmente quem estava do outro lado do tiro, da bomba ou do napalm (usado contra os índios), hoje eles são os moradores de favelas, de ocupações, os índios (especialmente no sul da Bahia), os manifestantes contra a violência oficial e o desperdício de bilhões para beneficiar empreiteiras. Tais são os novos inimigos do governo, as chamadas "forças oponentes", e contra esses cidadãos preparam-se projetos de lei antiterrorismo.
A Justiça Militar continua no Brasil e, no esquecimento de seu passado, vemos que a lógica do militarismo está presente no Supremo Tribunal Federal - como se todo Judiciário se tornasse, progressivamente, Militar. Os cultivadores da tradição no Direito provavelmente elogiarão essa tendência e defenderão que ela é a mais adequada num país em que o primeiro tribunal foi militar, estabelecido pela Corte portuguesa em 1808. A monarquia lusitana, obviamente, tinha seus motivos para tratar os brasileiros como inimigos.
Pode chocar os que não conheçam os atuais tempos da magistratura que nenhum dos perigos para a democracia tenha sido realmente analisado no HC 112932. Com efeito, na falta de Ministros como Victor Nunes Leal, afastado pelo AI-5, não é necessário nenhum AI-2: a submissão ao militarismo é voluntária.

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