O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Amazing Jessye

Jessye Norman morreu, aos 74 anos, no último dia 30 de setembro. Eu me lembro quando ouvi a voz dela pela primeira vez na adolescência, nos anos 1980, em um programa dedicado a vozes na Rádio MEC. Sérgio Britto, que, como se sabe, também foi uma grande diretor de ópera, explicava que não fazia sentido compará-la a Callas e que ela não iria bem se cantasse certos papéis da cantora grega.
A comparação não fazia sentido, claro, era coisa de jornalistas tentando achar alguma etiqueta na artista que eles passavam a conhecer. Jessye Norman tinha um repertório bem mais diverso, não só em termos de gênero (Callas cantou quase somente ópera, e sua única incursão em oratório foi gravada, mas apagada pela rádio), de estilos de época (cantou barroco e música contemporânea), mas também no campo dos idiomas, pois boa parte de suas melhores interpretações foram cantadas em alemão, francês e inglês.
Naquela década, as possibilidades vocais de Jessye Norman continuavam no auge. Eu nunca a vi ao vivo, embora tenha vindo ao Brasil, pois os ingressos eram caros. O primeiro elepê que tive dela foi o das 4 últimas canções de Richard Strauss, com Kurt Masur regendo a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig. Eles as gravaram, com outros Lieder (canções) em 1983. Comprei-o usado e fui depois à casa de um colega da faculdade por causa de um trabalho acadêmico, ele quis ouvir e ficou pasmo com a beleza do timbre. Essa era uma das primeiras impressões que Jessye Norman deixava, bem como a força da voz. O timbre permanecia profundo mesmo no pianíssimo.
Quando ela começa este poema de Hermann Hesse, "Frühling" (Primavera), com o verso "In dämmrigen Grüften", o grave impressiona; comparem esta frase inicial com a de Kiri te Kanawa, outra grande intérprete de Richard Strauss.
Kanawa, sem dúvida, tinha uma voz de soprano. Não era o caso de Jessye Norman que, embora tenha estreado como Elisabeth na ópera Tannhäuser de Wagner, um papel de soprano, e haja cantado outros papéis desse tipo vocal (nunca os mais agudos), sempre interpretou repertório de meio-soprano e de contralto. Quando Norman podia escolher uma tonalidade para interpretar determinada peça (o que, em regra, não é possível fazer em ópera, mas sim no gênero da canção), ela costumava escolher tonalidades, por assim dizer, medianas.
Uma coisa é extensão, outra é a tessitura. Um meio-soprano pode perfeitamente atingir os agudos de soprano; o problema é que não lhe será confortável ficar muito tempo na região mais aguda, ou suas notas não serão tão boas quanto as outras de sua extensão. Com o passar do tempo, a extensão no agudo de Norman diminuiu, o que é comum, e ela teve de deixar papéis como o de Sieglinde ou o de Ariadne na ópera de Richard Strauss, em que ela foi particularmente sublime. Felizmente, ela os pôde cantar por bastante tempo (assim como Waltraud Meier, uma mezzo, conservou por muitos anos Isolda no seu repertório - personagem que Norman não chegou a cantar no palco). Não porém, os do repertório italiano do século XIX e do início do século XX, que são, em geral, mais agudos. Provavelmente por isso, ela não seguiu o caminho de Leontyne Price (que foi Tosca, Aida, as duas Leonoras de Verdi...) e escolheu um caminho próprio, original, que incluiu a Alceste de Gluck, a Hélène de Offenbach, a Euryanthe de Weber e a Joana d'Arc de Tchaikovsky, em francês.
Algumas das notícias que saíram com sua morte, com a ignorância que predomina na imprensa diária, chegaram a declarar que Norman foi grande intérprete de... Aida, de Verdi, e Carmen, de Bizet. Absurdo, isso significa ignorar os tesouros que a cantora deixou, que estão em outros repertórios. Ela cantou Aida, mas logo deixou essa ópera, que nunca gravou, por sinal; nos registros ao vivo, via-se que ela alcançava o dó agudo de "O patria mia", mas a tessitura do papel era alta para ela (aqui, ela parece mais mezzo do que Fiorenza Cossotto, que canta Amneris; no dueto com o tenor, que não indico aqui, ela está realmente pisando em ovos; mas sua voz já tinha quebrado no início de "Ritorna vincitor"...). É sinal de surdez ou de ignorância sobre a carreira da cantora que parte da imprensa dos EUA também tenha destacado essa ópera. Ou de clichê racial: por ser uma cantora negra, logo ela teria que ser uma Aida, assim como Martina Arroyo e Leontyne Price...
Ela mesma declarou que recebeu diversas ofertas para cantar Aida, como Leontyne Price, mas que preferia as músicas francesa, alemã e austríaca, de Poulenc, Schubert, Mahler, Strauss e Wagner (por exemplo, nesta entrevista dada ao Finantial Times depois que ela publicou sua autobiografia, Now stand up straight and sing!, que ainda não tenho).
Em relação a Carmen, cuja tessitura é confortável para um meio-soprano, ela deixou um disco bem dispensável.
Sua voz, fundamentalmente, era de um meio-soprano com uma extensão excepcional, que lhe permitiu interpretar papéis de soprano durante bastante tempo e lhe franqueou incursões no registro de contralto. Ela pôde cantar sem problemas tanto a parte de contralto da Canção da Terra de Mahler (ouçam o final de "Da beleza") quanto o solo de soprano do Réquiem Alemão de Brahms. Tanto a parte de soprano quanto a de mezzo em Gurre-Lieder de Schönberg. Ou papéis, em ópera, cantados por essas duas vozes, como a Dido na ópera de Purcell (por exemplo, dublando a si mesma neste especial). Vejam como ela audivelmente está em casa cantando a "Chanson perpétuelle", de Chausson, em registro de meio-soprano. Essa interpretação e outras de música francesa (Ravel, Debussy, Offenbach, Poulenc...) bastariam para que os franceses escolhessem esta cantora estadunidense, com justiça, para vestir a bandeira francesa e cantar a Marselhesa no bicentenário da Revolução.
Alec Ross escreveu que o auge de Norman foi relativamente curto e que, nos anos 1990, ela já apresentava dificuldades vocais, especialmente no agudo. Discordo; para um meio-soprano que cantava papéis de soprano, suas notas mais altas resistiram bastante tempo, e só temos a agradecer que ela tenha se aventurado nesse repertório a que ela chegou mediante sua técnica vocal, e melhor do que outras intérpretes que, naturalmente, tinham vozes agudas.
Um exemplo disso: este crescendo quilométrico em "Beim schlafengehen", outra das 4 últimas canções de Richard Strauss (repertório que praticamente apenas os sopranos cantam), no trecho "Und die Seele". Aqui, ela conta uma história ótima sobre esse trecho, que é precedido por um solo de violino, cuja melodia é retomada pela voz. Jessye Norman faz outras cantoras, não tão providas de possibilidades de dinâmica, parecerem afônicas. Logo depois, quando ela canta "schweben", a voz parece realmente flutuar; em "tief", o grave faz-nos ouvir a profundidade dessa voz; e o agudo é seguro e radiante. O curioso é que a cantora faz tudo isso muito lentamente (seu controle respiratório era excepcional), os tempos adotados por Masur são bem mais largos do que os de outras gravações. Provavelmente Richard Strauss não imaginava ouvir tais canções assim, tampouco as outras que estão nesse disco (que inclui uma interpretação grandiosa de "Ruhe, meine Seele"), mas o que os intérpretes fazem nele me parece completamente convincente, e a voz de Jessye Norman soa incomparável.
No entanto, como sempre com os grandes intérpretes, a graça de Jessye Norman não estava tanto no quanto ela podia atingir, mas em como ela o fazia. A outra impressão que ela causava, confirmada quando a víamos cantar, era a de nobreza. Ela era uma rainha no palco, mesmo sem montagem cênica. Vejam-na neste concerto, cantando a Balada da Senta em O Holandês Errante (ou O Navio Fantasma), de Wagner: https://www.youtube.com/watch?v=2VBa3jj2Lwc
Nesse "como", estava sua dicção; ela tinha que ir para a canção de câmara. Certamente a abertura da boca contava para isso.Tiveram a boa ideia de destacar este trecho de uma masterclass de Thomas Quasthoff com o soprano Yana Eminova, e ele pede para a estudante imitar Norman na consciência de que o corpo é um instrumento. Vejam-na, em outro trecho daquele especial, dublar a si mesma na célebre canção de Schubert "Erlkönig", em que ela tem que encarnar três personagens, além do narrador. Ela interpreta com todo o corpo, mesmo com a economia de movimentos.
Nos papéis em que essa nobreza ficava deslocada, a cantora não costumava se destacar. Ela mesma dizia que não cantava o personagem principal da Carmen no palco por não ter o físico do papel; no entanto, decidiu gravá-lo com a regência de Ozawa, e a gravação é completamente dispensável, em boa parte por causa dela, que canta a Habanera como se fosse uma oração (houve quem selecionasse este momento como exemplo de canto entendiante)... Mesmo em recital, ela podia destruir esse ritmo de dança e interpretá-la lentissimamente.
No final da Balada, vê-se que o agudo está presente e estável, mas não é o de um soprano dramático como Birgit Nilsson. Norman destacou-se nos papéis que os alemães chamam de jovem soprano dramático, como Elsa (de Lohengrin, de Wagner) ou a Elisabeth. Os papéis mais pesados estavam fora de seu alcance; ela tentou gravar Isolda, tendo cantando algumas vezes a cena final (aqui, Karajan cria, antes do clímax, que é realmente fortíssimo, um som quase camerístico para a cantora), mas desistiu, e não aconselho a ver a tentativa de cantar a Imolação de Brünnhilde com Masur regendo, pois ela transpôs para baixo todos os agudos. Nem em estúdio ela fazia muito bem, como notou Paul Corfield Godfrey nesta resenha ao disco Wagner que ela gravou com Klaus Tennstedt.
Jessye Norman estreou em Berlim em 1968 no papel de Elisabeth; ela conta como foi a curiosa história dessa audição nesta palestra no Instituto Aspen. Com isso, ela repetiu o destino de tantos grandes cantores líricos nascidos nos EUA, o de terem que ir para a Europa para poder fazer, depois, carreira no país natal. Aconteceu com Maria Callas, mas também, nos dias de hoje, com Joyce DiDonato. Uma vergonha para o Metropolitan Opera House que Norman só tenha estreado lá em 1983, como Cassandra na ópera Os Troianos, de Berlioz (papel muitas vezes cantado por meio-sopranos). Somente hoje, quando decidi escrever esta lembrança, descobri que existia este vídeo da queda de Cartago!
Assim como é interessante notar que tantos dos maiores intérpretes de Wagner foram judeus, a começar, na vida do compositor, por Lili Lehmann e Hermann Levi, era divertido ver como Norman, uma cantora negra, destacava-se em um repertório germânico que os racistas e/ou neonazistas acreditariam reservado para as intérpretes brancas. Ela não foi, porém, a primeira a triunfar no mundo da ópera. Em 1961, Grace Bumbry foi a primeira cantora negra a cantar no templo de Wagner, o teatro de Bayreuth, no papel de Vênus em Tannhäuser. Leontyne Price, na mesma época, cantou com Karajan em Salzburgo e em outras cidades. Shirley Verrett, Reri Grist e Martina Arroyo também, nos anos 1960, destacavam-se no repertório lírico. Entre os homens, lembro agora de Jess Thomas, que estreou em Bayreuth como Parsifal em 1961, e Simon Estes.
De qualquer forma, Jessye Norman também teve de superar as barreiras do racismo e o fez não só interpretando essa música europeia, mas também a música negra estadunidense, o jazz (este gênero, com mais ênfase nos últimos anos, quando praticamente não cantava mais ópera) e especialmente o spiritual, que ela transportou a alturas transcendentes. Ela costumava interpretar spirituals nos seus concertos com piano, e um de seus êxitos mais populares foi o concerto que fez com outra cantora lírica estadunidense, Kathleen Battle, dedicado apenas a esse repertório, com regência de James Levine. É muito bonito ouvir o contraste entre o soprano de Battle e o meio-soprano de Norman.
À diferença de outras divas, Norman não recuava diante da música do século XX e cantou tanto Stravinsky (que ela apreciava tanto quanto Mozart) quanto Schönberg (incluindo o monograma atonal Erwartung; é interessante o que ela diz sobre a peça nesta conferência em 2007 a partir dos 22 minutos), bem como nomes posteriores.
Entre várias apresentações públicas, Jessye Norman cantou, na comemoração pública dos 70 anos de um dos maiores líderes políticos do século XX, Nelson Mandela, "Amazing grace" (ela não escolheu, evidentemente, uma tonalidade para soprano). Como ela gostava de terminar seus recitais com um spiritual ou com algum hino cristão, em homenagem à grande artista, escolho o mesmo hino do século XVIII, mas numa interpretação mais íntima: https://www.youtube.com/watch?v=dneH1XPT4z8

P.S.: Como ela não dava apenas um bis, deixo ainda uma passagem de contralto que Jessye Norman iluminava imensamente tanto acompanhada por piano quanto por orquestra, no contexto da Terceira Sinfonia de Mahler, "Urlicht". É lindíssima e diz, com toda simplicidade, "eu vim de Deus, eu voltarei para Deus".

domingo, 19 de março de 2017

30 dias de canções: Schubert e o duplo

30 dias de canções

Dia 27: Uma canção que cancela as canções

"Der Doppelgänger" ("O duplo"), uma das consequências de Franz Schubert ter lido Heinrich Heine. Pena que o compositor morreria pouco depois.
O editor Haslinger, após a morte do compositor em 1828, reuniu postumamente as últimas canções (com exceção de "Der Hirt auf dem Felsen") sob o título Schwanengesang ("Canto do cisne"). Não se trata, portanto, de um ciclo como Viagem de inverno e A bela moleira, concebidos pelo compositor. 
Nesse conjunto, está a célebre "Serenata", sobre poema de Ludwig Rellstab (vejam o tenor Peter Schreier e o pianista Rudolf Buchbinder), que os cantores populares também interpretam, se tem voz para tanto (por exemplo, a rainha do rádio Ângela Maria e, da geração mais nova de cantores brasileiros, Lívia Nestrovski).
No entanto, os poemas de Heine que estão nesse conjunto póstumo destacam-se por uma sonoridade própria e estão entre as obras máximas de Schubert e da canção em geral.
Entre elas, "Der Doppelgänger" talvez seja a mais desconcertante. Sugiro ouvi-la na voz de contralto da cantora e maestrina Nathalie Stutzmann, acompanhada por Inger Södergren. https://www.youtube.com/watch?v=vCv9i-1IRFA.
A primeira estrofe do poema de Heine descreve o ambiente: noite quieta, ruas silenciosas. O amor do narrador ali morava; ela deixou a cidade, mas a casa ainda está no mesmo lugar...
Na segunda estrofe, ele vê outro homem, que está atormentado pela dor. Ele se horroriza quando vê a face dele, iluminada pela lua: é a sua própria forma... A declamação chega ao desespero em "meine eigne Gestalt" (minha própria forma): https://youtu.be/vCv9i-1IRFA?t=2m15s; vejam a expressão de Stutzmann nesse momento: ela exprime o desgosto do narrador em deparar-se com o duplo.
Na terceira e última estrofe, ele se dirige a seu "pálido companheiro" e indaga por que ele "macaqueia" a dor de amor que o torturou naquele lugar, tantas noites, em um tempo antigo.
Depois do forte em "so manche Nacht": https://youtu.be/vCv9i-1IRFA?t=2m48s, vem o melisma em alter (velho, antigo) e a música vai desaparecendo no piano.
Ian Bostridge, conhecido tenor e intérprete de Schubert, em A Singer's Notebook, destacou a "terrível simplicidade e severidade", a "subversão radical do impulso melódico" das canções sobre poemas de Heine em O canto do cisne, que "ainda chocam e parecem ir muito além dos poemas de amor perdido em que se baseiam".
De fato. Esta não foi a última canção de Schubert, mas poderia ter sido. Principalmente, ela aponta para o fim de um estilo de canção mais próximo da popular (que continuaria, mas pareceria cada vez mais anacrônico). Pode-se ver "na paralisação da linha vocal - o que expressa o estado mental patológico do narrador - apenas o melisma final tem algo que lembra a forma da canção", conforme lembra Helene Wanske na apresentação da gravação que o barítono Bo Skhovus fez do ciclo Schwanengesang
No "alter Zeit", isto é, no tempo antigo é que aparece na linha vocal um perfil mais cantabile... Aqui, Schubert parece dar adeus a uma forma de canção.
Brigitte Fassbaender, em nota à própria gravação com o compositor e pianista Aribert Reimann, vê nessa canção uma ruptura "em direção a um novo mundo". 
Seria o desgosto de deparar-se consigo mesmo, com o duplo, uma exasperação com os limites da forma? Não sei, e precisaríamos que Schubert tivesse vivido mais para que soubéssemos aonde ele iria, que formas novas ele inventaria
De qualquer forma, Der Doppelgänger aponta novos desafios para os compositores de canções e, nesse terreno, Schubert nunca seria ultrapassado.


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita
Dia 18: Amin, Garfunkel e outros pássaros
Dia 19: Wolf e Mörike imaginando a ilha
Dia 20: A loucura, Schumann e Andersen
Dia 21: Tiganá Santana e a memória negra
Dia 22: A boca seca da revolução: Miguel Poveda e Narcís Comadira
Dia 23: Encontrar o dia novo, Villa-Lobos e Ferreira Gullar
Dia 24: Bosco e Blanc vs. racismo e censura
Dia 25: Sarah Vaughan e os palhaços
Dia 26: Mahler, o marginal


sábado, 19 de maio de 2012

Dietrich Fischer-Dieskau, música e poesia

Escrevo como um ouvinte órfão. Descobri Dietrich Fischer-Dieskau, que morreu ontem, aos 86 anos, somente na minha graduação, quando conheci um colega mais novo que admirava intensamente o cantor. Comprando discos usados nos vários sebos de lp que existiam no Rio de Janeiro no início dos anos 1990, e depois discos compactos, fui conhecendo seu repertório. Ouvi Schubert primeiro com Ely Ameling (em uma ótima coleção para bancas de jornais), mas o texto para ela não tinha tanta importância quanto para Dieskau, e o Lied, a canção alemã, não é nada sem o texto.
Não que o texto seja sempre bom nesse gênero; Schubert escreveu alguns de seus melhores Lieder sobre uns poemas sentimentais que não seriam lembrados sem a música. O compositor (e o intérprete) podem transfigurar eventuais fraquezas do poeta, e quando Schubert descobriu Heine, por exemplo, no Canto do Cisne, os resultados foram incomparáveis; ouçam a canção do duplo, "Der Doppelgänger".
Dieskau gravou todos os Lieder de Schubert para voz masculina, e interpretou o ciclo Winterreise (Viagem de inverno), uma das maiores obras da música de todos os tempos, diversas vezes (com oito gravações de estúdio dessa obra segundo The Guardian) ao longo das décadas de sua carreira, que durou do final dos anos 1940 até o início da década de 1990.
No entanto, é muito redutor caracterizá-lo como essencialmente um intérprete de Schubert: cantor de vocação intelectual (ele é autor de diversos livros, autobiográficos e sobre música) e enciclopédica, conferiu-se a missão de gravar as canções para voz masculina de Brahms, Liszt, Schumann, Hugo Wolf... Hermann Prey, o outro grande barítono alemão de seu tempo, também teve uma ambição de cobrir o vasto campo da canção clássica, porém não pôde deixar uma discografia tão imensa.
Dieskau era um grande músico (o que o levou a dedicar-se à regência, campo em que não logrou destacar-se), o que nem todas as grandes vozes são. Luciano Pavarotti, por exemplo, destacava-se mais pelo esplêndido instrumento vocal do que pela inteligência musical. Com Dieskau podia ser o contrário, e a maestria do músico em geral impressiona ainda mais do que a beleza da voz. No obituário escrito por Christophe Huss, é contada a conhecida história da audição do então jovem cantor com Furtwängler, já em seus últimos anos de vida. Dieskau levou para a audição os Quatro cantos sérios, de Brahms, obra que exige enorme maturidade interpretativa, e o maestro, a princípio reticente com a ousadia, maravilhou-se com a interpretação. Depois, gravaram Wagner (o Kurwenal de Tristão e Isolda, ópera que voltou a gravar décadas depois - ele atravessou gerações de regentes, de Klemperer a Barenboim - com Carlos Kleiber) e Mahler (Lieder eines fahrenden Gesellen) - este último compositor, por instigação do barítono, pois o grande regente alemão, bastante conservador no repertório (e na composição), não se interessava por ele.
Dieskau tinha sua grande inteligência musical, uma grande compreensão do texto literário (não por acaso, era também escritor) e isso certamente contribuiu para que continuasse na música como regente, depois de aposentar-se como barítono em 1992. Nunca o ouvi nesse tipo de atuação, mas sei que não logrou destacar-se nessa atividade como conseguiu na de cantor (ao contrário de um René Jacobs).
A voz, que não era grande, era decerto inconfundível e formada por uma grande técnica vocal. Neste Mahler, "Der Tamboug'sell", que cantou décadas depois sob a regência de Hans Zender, pode-se ouvir o grande controle dinâmico que mantinha sobre sua voz, sua mezza voce não como simples ornamento ou gratuito exibicionismo vocal, mas como recurso comandado por uma inteligência interpretativa ímpar. Alguém imagina, por exemplo, o Tita Ruffo cantando suavemente (em regra, é muito mais fácil gritar uma nota aguda do que cantá-la na nuance piano) dessa forma?
Sua posição na EMI e, depois, na Deutsche Grammophon, não deixou de causar animosidades com outros cantores: assim, Christa Ludwig, uma das maiores cantoras do século XX, queixou-se de que desejava gravar mais Schubert, porém a gravadora queria fazer a milésima gravação de Dieskau (de fato, algumas canções podem ser ouvidas em mais de dez versões com esse cantor).
No entanto, às interpretações cada vez mais requintadas de Dieskau, pode-se muitas vezes preferir as de Hermann Prey, e um desses casos é Die schöne Müllerin (A bela moleira), primeiro grande ciclo de Schubert.
Fischer-Dieskau, em seu livro de memórias, escreveu que "Callas tinha a Tebaldi; Karajan tinha Bernstein" e ele tinha Prey, que morreu em 1998, ainda atuante como cantor. Os dois barítonos "rivais" são muito diferentes: Dieskau se orienta mais evidentemente pelo texto (e o seu canto tem muito de parlato (leiam o obituário do Euterpe) e sua voz é mais tenoril; Prey, por sua vez, com um instrumento mais robusto, parece mais espontâneo. Ouçam Prey neste momento tranquilo da Viagem de inverno, "Der Lindenbaum", e Dieskau, com Brendel no piano.
Os dois cantores gravaram juntos, e é instrutivo ouvi-los assim. Lembro agora de três óperas de Mozart, As Bodas de Fígaro, com Karl Böhm na regência: Prey cantou Fígaro e Dieskau, o Conde; A flauta mágica, com o maestro Solti, em que Prey interpretou Papageno e  Dieskau, o Orador; Così fan tutte, por Jochum, em que o Don Alfonso de Dieskau provoca o Guglielmo de Prey.
São duas formas diferentes de pensar a música. A de Dieskau parece-me torná-lo no intérprete ideal de Hugo Wolf e sua combinação tão sofisticada de música e texto. Lembro como foi uma revelação para mim ter ouvido a caixa de Dieskau com oito discos dos Lieder desse compositor. O pianista foi um de seus parceiros preferidos dos anos 1970, o também regente Daniel Baremboim.
Aqui, pode-se ver a classe infinita de Dieskau em três Lieder de Hugo Wolf  que concedeu como bis neste concerto com o pianista Hartmut Höll, frequente acompanhante do final de sua carreira como cantor. É admirável a forma como diz "Da scheint der Mond" em "Der Tambour", bem como todo o melodioso "Gesang Weylas", com a solenidade de "Uralte Wasser" e, no verso final, o sábio contraste, desejado pelo compositor e difícil de ser atingido sem exageros pelo intérprete, entre "Könige" (reis) e "Wärter" (servos) na frase final.
No campo da música de câmara, Dietrich Fischer-Dieskau destacou-se sobretudo no repertório alemão. Sua curiosidade intelectual o fez gravar até as canções de Nietzsche, disco que eu gostaria de ter e está fora de catálogo. Em geral, ele não é interessante cantando a canção francesa.
Também no campo da ópera, ele é melhor no repertório germânico. Mesmo aí, há alguns senões. Ele decidiu que, por meio da técnica, conseguiria interpetar com a voz de barítono lírico que ele possuía papéis para vozes mais amplas e mais pesadas. Nisso, conseguiu alguns resultados interessantes, e outros que não chegam a ser curiosidades. Ele por vezes tentava compensar a eventual inadequação vocal enfatizando excessivamente certos detalhes, abusando de Sprechgesang (até em Verdi, o que é, no mínimo, exótico), pegando notas por baixo (o que podia comprometer a afinação)...
Neste vídeo, podem-se ver várias fotos dos papéis operísticos do cantor, enquanto o ouvimos cantando uma de suas especialidades (e uma de minhas árias favoritas), o Conde de Almaviva de As bodas de Fígaro.
Lembro aqui do que eu gosto, e isso inclui três óperas de Verdi, a que vou dar mais destaque tendo em vista os preconceitos etnocêntricos que entram em cena quando alemães cantam repertório italiano e vice-versa. Há quem torça o nariz para o Rigoletto que gravou para Kubelik com os grandes cantores italianos Renata Scotto e Carlo Bergonzi; eu gosto muito, por causa dos mil detalhes de sua interpretação. Se a voz não se pode comparar, por exemplo, a de Robert Merril nesse repertório, a inteligência do cantor também é incomparável. Rigoletto, na voz de Dieskau (como também na de Gobbi), não é só um bufão, mas também um pai, que é ultrajado, mas também consolador.
Digo o mesmo de Falstaff, na iconoclástica gravação que fez com Bernstein - é sutilmente hilariante ao exclamar (iludido) "Alice è mia!", é simultaneamente delicadíssimo e profundo seu "Quando ero paggio"...
Ainda melhor acho que foi seu Marquês de Posa no Don Carlo, composto a partir da célebre peça de Schiller. O papel foi sua estreia em ópera, e ele a cantou tanto em alemão quanto em italiano. Não sei se o fez em francês (que é o original, Don Carlos foi escrito para a ópera de Paris). Vejam o dueto de amizade (um tanto cortado neste vídeo, mas o incluo para que vejam o barítono ainda jovem), em alemão, com o grande tenor James King como Don Carlo.
Dieskau gravou em estúdio o Posa para a que talvez seja a melhor versão em italiano dessa ópera, a de Solti. Os outros cantores também são estrelas: Renata Tebaldi, Grace Bumbry, Carlo Bergonzi, Nicolai Ghiaurov, Martti Talvela. Mas, quando volto a essa gravação, é principalmente por causa do barítono. Esse papel pode ser cantado perfeitamente por uma voz como a dele, e Dieskau, além de adotar posturas diversas para o personagem (um grande ator, sem dúvida) nas cenas na corte, mais formais, com o amigo Carlo e com o rei, faz uma das mais convincentes cenas de morte em todas as óperas, depois que Posa é baleado ao visitar Carlo na prisão: "O Carlo, ascolta". Não achei essa ária, mas a anterior, "Per me giunto è il dì supremo".
No repertório germânico, acho-o incomparável ao menos como o trovador Wolfram da ópera Tannhäuser, de Wagner. Ao contrário do que curiosamente diz o obituário em Le Monde, ele não tinha voz para um papel de baixo-barítono como Wotan (pôde fazê-lo, no entanto, em O ouro do Reno, com Karajan, que escolheu, em geral, cantores com vozes mais leves do que o esperado). Mas o que torna o barítono um cantor de Lieder magistral permitia que fizesse um Wolfram - um personagem cantor e poeta - excepcional.
O extenso obituário publicado em The New York Times conta como Dieskau foi obrigado a integrar-se a Wehrmacht, e teve seu irmão morto pelo Estado nazista. É curioso ler que seus imensos dotes musicais fizeram com que os americanos não o quisessem repatriar para a Alemanha...
No tocante aos períodos musicais, creio que Dieskau era bem mais feliz na música contemporânea (os textos que indiquei lembram dos compositores que escreveram para ele, como Britten e Aribert Reimann e mais uma série de estreias de obras novas, que mostram o impacto do grande barítono no meio musical) do que no barroco. Em Bach ele não soa nada autêntico, tampouco em Händel: sua coloratura é laboriosa demais, a interpretação raramente soa natural. Hans Hotter, que tinha uma voz bem maior do que a de Dieskau, mostrava-se muito mais ágil na parte final de Ich habe genung, cantata de Bach - e cantava Wotan e o Holandês de Wagner, o que Dieskau nunca pôde fazer muito bem. Pode-se também gostar mais do Winterreise com Hotter...
A propósito, uma anedota que é contada por Robert Craft. Na gravação da Paixão segundo São Mateus com Otto Klemperer (que está bem longe das pesquisas musicológicas de hoje...), o barítono queixou-se da lentidão dos andamentos do maestro. Klemperer, que o chamava de "Fieskau", disse que iria pensar. No dia seguinte, Fischer-Dieskau disse que sonhou com ninguém menos do que Bach, que teria concordado que estava lento demais. Klemperer deu o troco na sessão seguinte, revelando que também havia sonhado com Bach - e que o compositor havia dito que nunca tinha ouvido falar desse cantor! Tal era a mordacidade de Klemperer.
Uma das obras contemporâneas que interpretou, Preghiere, foi composta por Dallapiccola sobre textos de Murilo Mendes (traduzidos por Ruggero Jacobbi) - com quem o compositor italiano teve uma empatia instantânea. Creio que esse foi o único poeta brasileiro que Fischer-Dieskau cantou, peço para que me corrijam se estiver errado. Os poemas musicados, de Poesia liberdade, foram "Voto", "Desejo" e "A tentação". Os três manifestam o cristianismo visionário ("Ao sopro da transfiguração noturna/ Distingo os fantasmas de homens/ Em busca da liberdade perdida:") e provocador de Murilo:

"Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz".


Ouçam a intensidade de Fischer-Dieskau. Ele está à altura dessa poesia.
Quem quiser aproveitar duas horas com o cantor e ainda não têm seus discos e vídeos, pode vê-lo interpretando Mandryka na ópera Arabella, de Richard Strauss, com a melhor intérprete do papel-título, Lisa della Casa. O maestro é Keilberth. Depois, ele ainda gravaria essa ópera com sua segunda esposa, e hoje viúva, a grande soprano Julia Varady.
Escolhi, porém, "O adeus", última parte de A canção da terra, de Mahler, para despedir-me hoje do cantor. Depois, escolherei outro repertório para reencontrá-lo - tarefa para toda a vida.
Nesta ligação, temos essa obra inteira de Mahler, ao vivo, também com Keilberth na regência e ninguém menos do que Fritz Wunderlich cantando os solos do tenor. Ewig, ewig...