O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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sexta-feira, 27 de março de 2020

Mortes de Naomi Munakata e Martinho Lutero, coronavírus e eugenia bolsonarista

Dois dos maiores regentes de coro no Brasil, Martinho Lutero Galati e Naomi Munakata, morreram em 25 e 26 de março de 2020, respectivamente, por causa do vírus corona, apesar de o brasileiro "não pegar nada", de acordo com as ideias infecciosas do governo federal.
Ouçam a matéria da CBN, "Regentes Naomi Munakata e Martinho Lutero morrem por coronavírus".
Eram dois dos maiores músicos brasileiros e dispensam apresentações; para os estrangeiros que lerem esta nota, sugiro ler esta matéria com as atividades no Brasil e na Europa de Lutero; esta outra, sobre o currículo da regente.
Eu assisti a várias apresentações de ambos. Tinham concepções diferentes de som: Munakata preferia que seus cantores emitissem de forma mais seca e com pouco vibrato. Lutero, por vezes, queria bem o oposto, como nas épicas interpretações de "A Internacional" que vi.
O cd "Canções do Brasil", com o coro da Osesp, parece-me dar uma boa ideia do que Munakata queria atingir em termos de qualidade sonora. Trata-se, como se sabe, de um disco obrigatório para os interessados pela rica música coral brasileira, não só pela qualidade dos cantores da Osesp, mas pela escolha do repertório, que reúne o popular e o erudito.
Nunca cantei sob a direção de nenhum deles. Uma vez, numa apresentação do Coro Luther King em homenagem que a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo faria a Inês Etienne Romeu (a única sobrevivente da Casa da Morte, um centro clandestino de tortura e execução extrajudicial que a ditadura militar mantinha em Petrópolis), ele me convidou para cantar a "Suíte dos pescadores", de Dorival Caymmi, no arranjo de Damiano Cozzella, porque, antes do concerto, mencionei que havia interpretado essa peça no Coral da USP, e o Coro dele estava desfalcado. Mas não ousei fazê-lo, pois não tinha ensaiado.
Como naquela ocasião, Martinho Lutero participou de várias atividades de memória, verdade e justiça. Ele regeu na missa em homenagem a Vladimir Herzog em 2015, na Catedral da Sé, no aniversário de 40 anos da cerimônia inter-religiosa realizada após a tortura e a execução do jornalista pela ditadura militar. Escrevi uma nota sobre este emocionante momento: https://opalcoeomundo.blogspot.com/2015/12/retrospectiva-2015-palavras-publicas.html
Essas atividades devem ter representado algum peso na demissão política que o afastou do Coral Paulistano em 2016, que comentei no blogue. Munakata assumiu a instituição criada por Mário de Andrade.
Adriano Diogo, que foi presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", convidou-o para se apresentar em algumas audiências públicas, como a do caso Olavo Hanssen. Por isso, no seminário de 5 anos da Comissão, ele foi chamado para dar um testemunho; embora estivesse previsto na programação, na véspera decidiu não aparecer por causa do concerto que regeria à noite. Ele havia chegado da Itália. Provavelmente já estava infectado pelo vírus que o mataria doze dias depois. Sua esposa, Sira Milani, agora viúva, falou em seu lugar. Ele regeu o concerto do dia 13 e o do dia seguinte, neste ano do cinquentenário do Coro Luther King.
Munakata tinha 64 anos, e Lutero, 66. A eugenia bolsonarista do "Infelizmente algumas mortes terão, paciência" parece apostar em que a população (ou, ao menos, seus eleitores, que não recuam diante do elogio à tortura e a outros crimes contra a humanidade) não ligará para colocar em risco as pessoas da terceira idade. O capital certamente não se incomodará, ele é acumulado a partir de campanhas como esta; vejam esta foto de Isadora Neumann, "eu pago teu salário", em carreata gaúcha, que documenta a violência de classe, bem como as declarações do dono do Madero sobre as 5 ou 7 mil mortes, e de Roberto Justus.
No entanto, há também vítimas jovens. As ações do governo federal apontam para o aumento dessas vítimas, o que gerou o rompimento com a maior parte dos governadores do Estado (uma exceção é Zema, de Minas Gerais, eleito pelo Novo, um partido-satélite do bolsonarismo) até com aliados que se elegeram em 2018 na onda da extrema-direita, como Caiado, Witzel e Doria.
A combinação de provincianismo jurídico e geopolítico com a submissão aos Estados Unidos, outra das velhas novidades da ditadura militar requentadas por Bolsonaro, caracteriza a política externa deste governo, e parece estar na base na violação das recomendações da Organização Mundial de Saúde. Medida análoga em Milão acarretou a aceleração das mortes, razão pela qual o prefeito daquela cidade, com o peso de cadáveres às costas, reconheceu o que chamou de "erro". Aquela propaganda letal da Itália é similar à do governo federal brasileiro.
Nesta sexta-feira, dia 27, o ministro da saúde, nesta gestão lamentável, resolveu não aparecer em uma reunião virtual da OMS sobre o assunto; contatado por Jamil Chade, o governo tampouco esclareceu quem teria sido o representante oficial de baixo escalão na reunião! Parece que a administração está mais preocupada com a contratação sem licitação de empresas que doaram para a campanha do atual ministro, segundo apuração de Breno Costa.
Vi que algumas pessoas chamaram atenção ao fato de que no vídeo de propaganda "O Brasil não pode parar", compartilhado pelo filho investigado por alegado esquema de rachadinha em seu gabinete e lavagem de dinheiro, em contraste flagrante com a maior parte da publicidade, a maioria dos que aparecem no filme são negros, e fazem, em geral, o papel de trabalhadores em ocupações manuais e/ou de baixa qualificação. São essas pessoas que o governo federal, aparentemente, quer expor ao vírus. Enquanto isso, seus apoiadores mobilizam redes de desinformação para negar que o vírus corona provoque mortes.
Há jornalistas, como Kennedy Alencar, que já falam em "genocídio". O deputado Fábio Trad chamou de genocídio a iniciativa de ""isolamento vertical''' do governo federal, isto é, de isolar apenas pessoas que são consideradas grupos de risco. Esse deputado é, lembra o Congresso Em Foco, "primo do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e irmão do senador Nelsinho Trad, que contraiu covid-19 após integrar a comitiva de Bolsonaro que foi aos Estados Unidos no início de março"...
O Congresso em Foco divulgou que "Pesquisadores de Oxford projetam 478 mil mortes por covid-19 no Brasil". O estudo foi publicado em 14 de março.
"Bolsonaro Genocida" foi o tópico mais comentado no twitter no Brasil no dia 23 de março; foi o momento da Medida Provisória 927/2020, que foi elaborada para deixar os empregados quatro meses sem salário, e gerou tanto repúdio que obrigou o ocupante da presidência a recuar:


Há dez dias ocorrem protestos diários contra Bolsonaro no Brasil, em geral panelaços. Aqui em São Paulo, projetam-se em prédios imagens como estas, que fotografei no dia 25:



Além disso, subsistem as dúvidas sobre a saúde do ocupante da presidência: ele estaria contaminado pelo vírus corona quando compareceu às manifestações em seu favor no dia 15 de março e, assim, teria cometido crime contra a saúde pública? Ele nega sem mostrar os exames. Boa parte de seu entorno contaminou-se, inclusive o ministro Augusto Heleno. Seu filho que tentou ser embaixador do Brasil nos EUA sem saber inglês e ignorando quem é Henry Kissinger afirmou a Fox News que o pai testou positivo para o vírus, mas depois negou. O Hospital que atendeu o ocupante da presidência e sua esposa omitiu o resultado de dois pacientes.
Entretanto, o governo federal tenta ocultar informações sobre a epidemia. Afortunadamente, o Conselho Federal da OAB , na ADI 6351-DF, conseguiu que o Supremo Tribunal Federal suspendesse, em decisão liminar, o trecho da Medida Provisória 928/2020 que permitia ao governo suspender os prazos de resposta aos pedidos fundamentados na Lei de Acesso à Informação. Na decisão, o Ministro Alexandre de Moraes destacou o caráter antidemocrático, pois avesso à transparência, da medida de Jair Bolsonaro:
O art. 6º-B da Lei 13.979/2020, incluído pelo art. 1º da Medida Provisória 928/2020, não estabelece situações excepcionais e concretas impeditivas de acesso a informação, pelo contrário, transforma a regra constitucional de publicidade e transparência em exceção, invertendo a finalidade da proteção constitucional ao livre acesso de informações a toda Sociedade.
Não é possível realmente cantar em coro quando se está em isolamento social; a tecnologia não permite resolver os problemas dos pequenos atrasos na transmissão e de sincronização, muito menos de timbragem e prática de conjunto (os vídeos que supostamente mostrariam o contrário têm todos, no mínimo, uma base pré-gravada). Dessa forma, nós, que cantamos em conjunto, não podemos nos reunir, neste momento, para lamentar o falecimento de Naomi Munakata e Martinho Lutero, tampouco protestar em apresentação pública contra o governo que trata essas mortes como caso menor e engendra políticas que irão multiplicá-las. Teremos que achar outras formas de protesto, ou de canto, contra esta nova eugenia.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

30 dias de ópera: um desafio político

Em 2011, resolvi participar de um desafio de trinta dias sobre livros, que vi pela primeira vez no blogue de Niara de Oliveira. Eu acabei tendo coragem de participar, modificando-o um pouco e lhe dando o título "30 dias de leituras: Um desafio e o direito à literatura".
Em 2017, a partir de uma lista que vi dezenas de pessoas respondendo, e, várias delas com visível desinteresse em relação a esse gênero musical, o que me irritou, propus para mim um "30 dias de canções: um desafio em tempos de fim da canção?" a partir de uma lista em inglês, que transformei segundo meus interesses artísticos.
Agora, no fim de 2019, resolvi imaginar este, sobre ópera. Trata-se de um gênero que vejo/ouço desde a adolescência. Curiosamente, em 2017 ingressei em um Coro, a Associação Coral da Cidade de São Paulo, que é uma organização não governamental, que produziu uma ópera em 2018, a Carmen, de Bizet, e duas em 2019, A flauta mágica, de Mozart, e La Bohème de Puccini, cujas últimas récitas ocorrerão em 7 e 8 de dezembro, todas com a regência de Luciano Camargo e a direção cênica de Rodolfo Vázquez.
Essas produções, apesar do meu papel modesto, me fizeram ver um pouco o gênero por dentro e, em consequência, me admirar como elas possam dar certo, apesar de tantas oportunidades para o fracasso: a orquestra, os solistas, o coro, a regência, a direção cênica, o figurino, o balé, o cenário, em todos esses campos podem ocorrer desastres. É, de fato, um trabalho coletivo, apesar do star system que também nele se faz presente. Por isso, a ópera emociona tanto, quando o milagre da conjunção de tantos elementos artísticos opera-se.
Como nos outros dois desafios, eu me posiciono antes de tudo como espectador, e talvez o que eu venha a escrever tenha algum interesse como sinal do que parte do público pensa. Talvez possa até mesmo ser esclarecedor para uma ou outra pessoa, tendo em vista que este gênero musical/teatral, apesar de secular, não é tão conhecido. Colegas falaram de gente do público saindo, perplexa, porque não encontraram os microfones que os cantores usariam...
Os cantores, tanto os solistas quanto os do coro, cantaram sem microfone algum, o que normalmente ocorre em ópera. Isso choca quem não conhece música, sei disso. Imaginem pessoas que ignoram a tal ponto as possibilidades do corpo humano, que desconhecem que uma voz treinada pode ser ouvida, mesma com orquestra e coro, sem amplificação artificial?? Pessoas que acham que não havia música vocal antes da invenção do microfone? Vê-se nesse ponto como as commodities da indústria de entretenimento, consumidas nos meios de massa, são também máquinas de ignorância.
Esse desconhecimento básico do que é a voz humana, propiciado pela música comercial, ocorre com outros. Imaginem sítios de "open culture", por exemplo, que veem apresentações de cantatas de Bach e acham que se trata de ópera, na ignorância completa da dimensão teatral do gênero??? Johann Sebastian Bach, por sinal, jamais compôs uma ópera sequer.
Outro fator que me levou a criar este desafio é que, em tempos de obscurantismo, fazer arte pode ser um desafio político. É verdade que há países, como o Irã, em que o gênero é proibido; as limitações às liberdades artísticas e de expressão chegam a tal ponto. Porém o que me importa é que a imaginação artística mobilizada pela ópera pode sugerir novos mundos, seja na música, seja no teatro. E que ela incomode, por exemplo, a direita e os fascistas, seja pelos nazistas na década de 1930 perseguindo e conseguindo fechar a Ópera Kroll, dirigida pelo grande Otto Klemperer, e que fazia montagens de obras de vanguarda de Hindemith, Schoenberg, Kurt Weill e Brecht entre outros. Ou que escandalize hoje os equivalentes atuais daquelas espécies políticas, como aqueles que falaram de "genocídio branco" porque, no Metropolitan Opera House, em Nova Iorque, em uma comédia de Donizetti, La fille du régiment, os papéis principais foram assumidos por uma cantora negra sul-africana, Pretty Yende, e por um tenor latino, mexicano, Javier Camarena. Os dois fizeram um sucesso tremendo neste ano, e isso incomodou muito os racistas.
A flauta mágica, de Mozart, foi um exemplo de ópera política em sua época, com sua agenda iluminista e contrária ao Antigo Regime. Por essa razão, fazia sentido encená-la atualmente, como fez o maestro Luciano Camargo em agosto deste ano em São Paulo, com ligeiras mudanças no texto e a sagração de Pamina, a protagonista feminina, no final.
Imaginei este desafio "30 dias de ópera" com uma abertura e um fim, uma primeira seção com tópicos de experiência pessoal com o gênero; uma segunda, com elementos do gênero; uma terceira, sobre temas específicos, algo mais semântico; uma quarta com transformações de ópera seja em outras obras artísticas, seja em fatos históricos. Será divertido se outras pessoas quiserem criar desafios congêneres.


Primeiro dia: A ópera de hoje
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida
Dia 3: Uma estreia assistida
Dia 4: A primeira ópera assistida
Dia 5: O primeiro disco de ópera
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

30 dias de canções: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura

30 dias de canções

Dia 7: Uma canção de luta

"Suíte dos pescadores", de Dorival Caymmi. Vejam trechos de um ensaio do compositor com a família e Tom Jobim; ou a filmagem de Orson Welles no Brasil.
Trata-se realmente de uma suíte, pois ela congrega elementos diversos: a canção de trabalho, uma resposta das mulheres, a morte e o lamento, e a volta da canção de trabalho - o que é o mais triste: sabemos que o ciclo se repetirá, e o que significa aquele ofício.
Como em outros momentos da obra de Caymmi ("É doce morrer no mar", na calorosa voz do compositor), a canção de trabalho também é um pequeno réquiem, o que é compreensível, tendo em vista os perigos dessa profissão, e especialmente relevante se levarmos em conta que estamos no país da impunidade dos acidentes do trabalho: quem já teve a notícia da aplicação das sanções penais contra empregador em razão desses acidentes?
A equação entre trabalho e morte, na canção, porém, não leva na Suíte a um movimento de luta, e sim de busca de consolação religiosa.
Cantei-a algumas vezes no Coral da USP, no arranjo de Damiano Cozzella, e a ouvi com outros grupos. Ignorava, porém, que essa música era cantada pelos presos políticos em São Paulo durante a ditadura militar. Fui saber disso em atividade da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva', em maio de 2013, quando a vi com o Coro Luther King, regido por Martinho Lutero. Era uma homenagem a Olavo Hanssen, o primeiro preso político assassinado pelos agentes do Deops/SP durante a ditadura militar. 
Escrevi sobre o evento aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/ato-em-memoria-de-olavo-hanssen-e.html
O evento começou depois das 16 horas e durou até quase 19, e contou com a participação do Grupo Cultural Luther King, regido por Martinho Lutero Galati, que cantou, entre as mesas, a "Suíte dos Pescadores", de Dorival Caymmi no arranjo de Damiano Cozzella (já a cantei, e não é fácil; vejam-na: https://www.youtube.com/watch?v=b8Nvr7Xx_Jo), música que, Ivan Seixas explicou, era cantada sempre que um preso político era libertado ou transferido. Concluídas as falas, o grupo ainda cantou e tocou "A Internacional".
Neste caso, o trabalho era político, de luta contra a ditadura. O réquiem, claro, tinha seu lugar por conta dos militantes mortos e desaparecidos. Mas a volta da canção de trabalho reafirmava o compromisso político contra a repressão.
Nesse contexto, tratava-se realmente de uma música de luta.
Uma palavra sobre o regente Martinho Lutero, que assumiu o Coral Paulistano em dezembro de 2013 no âmbito de um projeto de fortalecimento da instituição. O próprio portal da instituição diz: "Após sua missão original se perder em anos de decadência, em 2013 o grupo foi novamente fortalecido e revalorizado, passando a se chamar Coral Paulistano Mário de Andrade. Com uma programação extensa de apresentações de música brasileira erudita em diferentes espaços da cidade, retomou seu fôlego e retomou suas atividades resgatando sua autenticidade."
No aniversário de quarenta anos de assassinato do jornalista Vladimir Herzog no DOI-Codi de São Paulo, ele regeu o Luther King: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2015/12/retrospectiva-2015-palavras-publicas.html; uma das canções interpretadas foi o "O bêbado e a equilibrista", de João Bosco e Aldir Blanc, que foi o hino informal da campanha pela anistia.
Martinho Lutero regeu o Paulistano na homenagem a Inês Etienne Romeu promovida em abril de 2016 pela Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo. Ele incluiu o início da "Suíte dos Pescadores" na apresentação. 
No entanto, pouco depois, em junho de 2016, em mais um exemplo do contexto político de retrocesso, ele foi afastado do Paulistano, instituição criada, como se sabe, por Mário de Andrade. O irônico é o grupo ter assumido o nome de seu criador e que tenha sido demitido um dos poucos regentes no país que não mereceria esta ácida crítica que o escritor fez aos músicos brasileiros em crônica de novembro de 1939: (Sejamos todos musicais: as crônicas na 3a. fase da Revista do Brasil. São Paulo: Alameda, 2013):
[...] por mais valiosos que sejam um Henrique Oswald, um Leopoldo Miguez, um Glauco Velasquez, João Gomes de Araújo, Francisco Braga, Barroso Neto [...], que são os músicos representativos da primeira fase republicana, a obra que então fizeram não correspondia nem ao sentido democrático nem nacional que a República viera definir, com bases mais necessárias. [...] Mas por certo a culpa não cabe inteiramente à República. Caberá mais aos músicos, que vivem no mundo da lua, lidando com sons, ritmos e pautas, que jamais tiveram sentido intelectual. Em geral os músicos pensam um pouco mais tarde que os outros homens...
O alto nível técnico e o engajamento na vida social do trabalho de Martinho Lutero tornavam-no próximo dos ideais do escritor para o Coral.
Em São Paulo temos vivido um desmanche das instituições culturais. A Banda Sinfônica do Estado de São Paulo foi aniquilada há pouco. Já escrevi sobre o desmantelamento da TV Cultura e o escandaloso fim da Camerata Aberta em 2015.
Esses episódios, bem como, na esfera municipal, o escândalo de desvio de verbas no Teatro Municipal de São Paulo, que levou à investigação por corrupção e ao afastamento do maestro John Neschling em setembro de 2016, bem mostram que o modelo das organizações sociais (a que está submetido o Coral Paulistano), com sua lógica privatista, é o da precarização da cultura e do desmantelamento do Estado. As bibliotecas-parque do Rio de Janeiro, administradas por OS, fecharam neste ano.
Nem mesmo o argumento de que são mais econômicas serve para as OS: vejam que os presídios privados no Amazonas, seguindo esse modelo, gastavam mais por preso do que qualquer outra no Brasil ("Custo em cadeia privada no AM é quase o dobro da média nacional"), sem proporcionar melhor segurança, tampouco melhores condições para os detidos.
Por sinal, como lembrei no mês passado, a ONU havia destacado a precariedade desses presídios, que saíam tão caros aos cofres públicos e eram tão lucrativos para a iniciativa privada financiadora de campanhas eleitorais: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2017/01/nigel-rodley-1941-2017-o-direito.html
Contra esse desmantelamento e essa precarização também devemos lutar. Em caso contrário, nem mesmo restará uma canção para ser entoada durante a resistência.


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo


quarta-feira, 25 de março de 2015

Uma voz rara: Gregory Kunde e Otelo, ópera e masterclass

Ouço vários gêneros musicais, e também assisto a (e ouço) este gênero teatral para que foi escrita música de vários estilos ao longo de mais de quatro séculos, a ópera.
Já vi coisas muito absurdas sobre esse gênero, inclusive pronunciadas por músicos. Uma das coisas mais misteriosas do corpo, a voz, é alvo também de muitos equívocos: há quem pense que os cantores de ópera usam microfones e que podem fazer qualquer coisa, assim como um cantor de bolero pode escolher qualquer bolero para cantar. Isso é muito errado.
Os cantores chamados "líricos" têm que desenvolver seu instrumento, que é o próprio corpo, para projetar sons em um teatro de modo que possam ser ouvidos apesar da concorrência com uma orquestra (que pode ser enorme) e um coro. Eles demoram anos estudando canto, preparando seus músculos, sua respiração e sua ressonância para cantar um repertório que, às vezes, está nos limites das possibilidades humanas.
E os cantores não podem cantar "qualquer coisa", mesmo depois dos anos de preparação vocal e musical. Há fronteiras estilísticas, claro, como na música popular: um cantor de flamenco pode soar mal em samba, e vice-versa; simplesmente estão na praia errada, e até mesmo na língua errada, se se tratar de um estilo de outra cultura. Da mesma forma, um cantor ótimo na ópera barroca francesa pode interpretar horrivelmente ópera russa do século XIX.
Há também os limites vocais: o melhor cantor pode parecer um completo pateta se estiver fora de sua tessitura vocal. Se pensarmos só nos homens, há uma classificação vocal básica; do mais agudo ao mais grave, temos o contratenor (que frequenta alturas em que as mulheres cantam; ouçam o dueto final da Coroação de Popea com o contratenor Phillipe Jaroussky e a contralto Marie-Nicole Lemieux); o tenor (o famoso Luciano Pavarotti na primeira ária da Tosca de Puccini); o barítono, voz central (o grande Dietrich Fischer-Dieskau interpretando o Rei Lear na ópera Lear de Aribert Reimann); e a voz mais grave, o baixo (três grandes cantores dessa categoria, Kurt Moll, Samuel Ramey e Ferruccio Furlanetto cantando na penúltima cena de Don Giovanni de Mozart).
Mesmo assim, um tenor não pode cantar todos os papéis escritos para esse tipo de voz; há diversas subcategorias, e um cantor, por mais que estude, não pode mudar sua natureza vocal: se nasceu com a possibilidade de cantar os papéis leves e agudos, não poderá abordar os pesados e mais graves. Se o fizer, destruirá sua própria voz. E uma voz não tem volta.
Quando aparece alguém capaz de aliar agilidade e potência, como Maria Callas foi capaz de fazer, é um fenômeno. Em geral, para manter a saúde vocal, os cantores líricos iniciam suas carreiras cantando papéis mais leves para, com o passar dos anos, se a voz permitir, abordar papéis mais dramáticos.
Lembro disso por causa do tenor estadunidense Gregory Kunde. Ele cantou por décadas papéis leves e agudos - alguns nos limites da voz de tenor, como Arturo de Os Puritanos de Bellini, com dós e rés agudos e um fá que pouquíssimos atingem (a nota estava fora do alcance de Pavarotti, que só pode atingi-la em estúdio e em falsete). Kunde já passou dos sessenta anos. Nessa idade, muitos cantores líricos já se aposentaram ou estão quase sem voz (isso não é raro com os cantores populares). Mesmo Pavarotti era uma sombra de si mesmo aos 60.
Kunde, pelo contrário, não só continua com a voz inteira, como agora canta papéis que lhe eram inatingíveis quando jovem. Um fenômeno, e volta a São Paulo para cantar um dificílimo papel, um dos mais dramáticos da ópera italiana, o Otelo (em italiano, Otello) de Verdi. Em 2013, ele havia cantado no Teatro Municipal de São Paulo o Radamés da ópera Aida, também de Verdi, e eu fui vê-lo por causa da obra e para verificar se a metamorfose vocal havia de fato ocorrido. Foi impressionante.
Eu o vi cantar no último dia 18 de março. A montagem, concebida por Giancarlo del Monaco (filho do famoso tenor italiano, já falecido, Mario del Monaco, que cantou centenas de vezes o Otello de Verdi) é muito equivocada - Sidney Molina bem a descreveu como uma imitação de "Matrix", sem estabelecer "elos estruturais com a música".
Molina, porém, está errado no elogio à regência e à orquestra. No dia que vi, a orquestra parava totalmente de vez em quando; parecia o tempo para virar o disco; ela e o maestro (Neschling, o diretor do teatro, mais à vontade em Richard Strauss do que em Verdi...) pareciam não dominar a música. E a qualidade instrumental era às vezes sofrível ou pior. O final do segundo ato foi talvez o ponto mais baixo. Descubro que algo parecido aconteceu na estreia, a que o crítico da Folha parece ter assistido muito distraidamente; ouçam o desastre a partir de 3'05", especialmente 3'35'', 4'13": https://www.youtube.com/watch?v=O3xz85EfTFU. Kunde e o barítono brasileiro Rodrigo Esteves conseguiram cantar apesar das dificuldades da orquestra.
O si agudo de Gregory Kunde foi ainda mais retumbante na récita do dia 18. Comparem com outra gravação ao vivo, mas de outro nível orquestral - Toscanini rege; cantam Ramón Vinay e Giuseppe Valdengo: https://www.youtube.com/watch?v=hiQ6yTl7SHM.
Como se trata de ópera, nunca é apenas o canto que importa: o ator Gregory Kunde é convincente em cena, como podem ver neste impressionante vídeo que combina trechos de duas óperas baseadas na história de Otelo: a de Rossini (em concerto) e a de Verdi (encenada; a face do tenor está maquiada de preto para se adequar ao personagem, o que não foi feito em São Paulo, visto que não houve preocupação da direção cênica de estabelecer alguma conexão com a história...).
A ópera de Rossini exige muita flexibilidade (vejam, no início, como os outros dois cantores ficam impressionados com o desempenho de Kunde); a de Verdi, potência. São dois tipos de voz diferentes, e, segundo esta entrevista no VoceAllopera, Kunde é o único tenor da história que foi capaz de cantar os dois papéis na mesma temporada.
Certo é que a ópera de Rossini é muito menos encenada do que a de Verdi, por ser-lhe inferior em vários aspectos. Stendhal, bem antes de Verdi escrever sua versão da história, na famosa Vida de Rossini, critica-a nestes termos: "O que salva o Otello de Rossini é a lembrança do de Shakespeare." Isso não o torna fácil de cantar, no entanto: pelo contrário, a música é muito exigente vocalmente, e é o que justifica a ópera, cujo libreto não tem a qualidade teatral do que Arrigo Boito escreveu para Verdi musicar (Joseph Kerman, em A ópera como drama, chega a falar de "completa estultícia da concepção dramática de Rossini" comparando as duas obras).
Apesar da encenação, é um espetáculo que deve ser visto. A ópera de Verdi é uma obra prima fantástica, e que poucos tenores podem enfrentar dignamente. Mario del Monaco (que não é meu favorito, nem de longe), na sua autobiografia, Minha vida, meus sucessos, revelou como ficou inseguro ao interpretá-lo pela primeira vez, pois o papel "estava no limite das possibilidades humanas"; no Guia Fayard das óperas de Verdi, "O papel de Otello exige uma palheta vocal muito diversificada, uma inteligência vocal e dramática fora do comum". Ver um cantor adequado para enfrentar as dificuldades do Mouro é raro.
Quem não puder assistir a Gregory Kunde no dia 27 de março (com o excelente barítono Nelson Martinez, que evitou exageros interpretativos comuns nos intérpretes de Iago, e a soprano Lana Kos, de eloquentes pianíssimos, no papel de Desdemona), talvez possa consolar-se com a masterclass que o tenor dará na Escola Municipal de Música de São Paulo no dia 26 às 14:30h. Parece que ela estará aberta para o público assistir, mas confirmem antes.

P.S.: Esqueci de dizer que o solo do palco foi dividido em três placas que se levantavam ou abaixavam aleatoriamente, ao que parece. Além de não ter ligação com a história, a máquina faz um barulhão às vezes mais audível do que a orquestra.

sábado, 28 de setembro de 2013

Mutilação e cancelamento da música, ou o Teatro Municipal de São Paulo

Em São Paulo, mas não no Teatro São Pedro, que, com seus recursos mais modestos do que a outra instituição que monta ópera nesta cidade, trará ainda neste ano do bicentenário de nascimento de Verdi (e de Wagner, e centenário de Britten, já homenageado) uma das maiores obras-primas do gênero, a última ópera do autor, o engraçadíssimo Falstaff.
Vi a última récita da equivocadíssima montagem de Don Giovanni, ópera de Mozart, no Teatro Municipal de São Paulo. Em um texto de duas páginas, o encenador tenta justificar sua visão, que apresenta o personagem Don Giovanni como Drácula. Também nesse livreto, temos um texto do Pondé, o colunista da Folha de S.Paulo e professor da PUC/SP, de escasso interesse musical, assim como o que fez para a Aida, espetáculo anterior daquele Teatro.
Um dos absurdos da montagem vampiresca de Don Giovanni estava em desdizer a música do compositor: quando Mozart escreveu em "Vedrai carino" uma de suas árias mais sensualmente delicadas, vimos a camponesa-vampira, agora um ser das trevas, morder o pescoço de seu noivo.
O vampirismo forçado poderia ser defendido como uma estratégia pós-moderna de tensão entre a música e a encenação? Creio que não, pois acabou se revelando uma redução absurda daquele drama. A oposição entre Don Giovanni e os demais personagens perdeu-se no processo de vampirização coletiva, e com isso o próprio fio que sustenta a história. E, mais grave ainda, desaparece o sentido da irrupção do sobrenatural na cena do cemitério e, principalmente, na ceia em que o Comendador, como estátua, aparece, e acaba por terminar com a descida do protagonista ao inferno.
Trata-se, pois, de uma montagem que vai contra a música de Mozart, e isso não pode ser perdoado. O maestro colaborou com essa empreitada antimozartiana. A oposição ao compositor aconteceu, de fato, em mais de um sentido: após a entrada do coro, na cena em que Don Giovanni vai para o inferno, foi cortada toda a parte do Leporello (!!!) e, depois, suprimiram-se algumas páginas da partitura ficando só os três versos finais (!!!!) do libreto. Ao que se transformou num solo de Don Giovanni, depois da mutilação operada pelo maestro, emendou-se o "Questo è il fin di chi fa mal". Horror.
Para terem uma ideia, vejam os versos de Lorenzo da Ponte, o libretista. Em vermelho, está o que foi cortado; em preto, o que sobrou:


Donna Elvira, Zerlina, Don Ottavio e Masetto
Ah, dov’è il perfido?
Dov’è l’indegno?
Tutto il mio sdegno
Sfogar io vo’!
Donna Anna
Solo mirandolo
Stretto in catene
Alle mie pene
Calma darò.
Leporello
Più non sperate
Di ritrovarlo,
Più non cercate.
Lontano andò.
Tutti
Cos’è? Favella!
Via presto, sbrigati!

Leporello
Venne un colosso...
Ma se non posso...
Tra fumo e fuoco...
Badate un poco...
L’uomo di sasso...
Fermate il passo...
Giusto là sotto...
Diede il gran botto...
Giusto là il diavolo –
Sel trangugiò.
Tutti
Stelle, che sento!
Leporello
Vero è l’evento!
Donna Elvira
Ah, certo è l’ombra
Che m’incontrò.
Donna Anna, Zerlina, Don Ottavio e Masetto
Ah, certo è l’ombra
Che l’incontrò.
Don Ottavio
Or che tutti, o mio tesoro,
Vendicati siam dal cielo,
Porgi, porgi a me un ristoro,
Non mi far languire ancor.
Donna Anna
Lascia, o caro, un anno ancora
Allo sfogo del mio cor.
Don Ottavio
Al desio di chi m’adora
Ceder deve un fido amor.
Donna Anna
Al desio di chi t’adora
Ceder deve un fido amor.
Donna Elvira
Io men vado in un ritiro
A finir la vita mia!
Zerlina
Noi, Masetto, a casa andiamo!
A cenar in compagnia!
Masetto
Noi, Zerlina, a casa andiamo!
A cenar in compagnia!
Leporello
Ed io vado all’osteria
A trovar padron miglior.
Zerlina, Masetto e Leporello
Resti dunque quel birbon
Con Proserpina e Pluton.
E noi tutti, o buona gente,
Ripetiam allegramente
L’antichissima canzon
.

Tutti
Questo è il fin di chi fa mal;
E de’ perfidi la morte
Alla vita è sempre ugual!


O final de Don Giovanni reúne as outras personagens, que ainda procuram Don Giovanni, até que chega Leporello com as notícias sobrenaturais. Os personagens comentam o que farão da vida depois disso (o que inclui um belo dueto para Anna e Ottavio) e, finalmente, cantam a moral da história, que foi o que sobreviveu da mutilação feita no Teatro Municipal de São Paulo.
Tal cena final é bem século XVIII; uma ópera romântica acabaria, provavelmente, com a descida ao inferno. Stravinsky, em sua mais extensa obra neoclássica, A carreira do libertino (The Rake's Progress), com libreto do Auden, fez o mesmo, a ponto de o próprio compositor ter protestado contra a injusta crítica do jornal Los Angeles Times de que ele teria pegado emprestada "uma página do Don Giovanni" (a reação de Stravinsky está em Themes and Conclusions: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/09/30-dias-de-leituras-stravinsky-conclui.html).
Nem sempre se compreendeu bem esse final: em interpretações românticas de Mozart, ele às vezes era cortado completamente (e não deixando um rabinho de fora, como o que se fez agora em São Paulo). Não se sabe se, em Viena, Mozart o executou, ou se compôs um segundo fim que não chegou até nós (leio a polêmica no Guide des opéras de Mozart publicado pela Fayard); Otto Klemperer conta que Gustav Mahler, no início do século XX, terminava a ópera com a descida ao inferno, mas isso fazia perder a "luz aguda, quase irônica" do final. Na primeira (e notável) gravação de estúdio, que a Naxos relançou, regida por Fritz Busch em 1936, o final já está lá. O que o Teatro Municipal de São Paulo fez seria aceitável há cem anos.
Como Stanley Sadie mostra no volume dedicado a Mozart na série The New Grove, esse final está ligado ao próprio gênero dessa obra, desse dramma giocoso, que continua ligada ao gênero bufo, não obstante a admirável mescla entre e o sério e o cômico: "a comédia subsiste ao lado do drama sério, e ambos se refletem na música. No fim da ópera, os personagens remanescentes deduzem a moral e planejam seu futuro num alegre sexteto em sol maior e, finalmente, em ré maior." (o livro foi publicado pela L&PM em 1988 na tradução de Ricardo Pinheiro Lopes; o trecho está na página 146).
Traição às tensões desta história, ao gênero, e à música do compositor... Após a récita, houve quem aplaudisse, não sei se se tratasse gente que não gostava do compositor ou dessa ópera em particular (e pensasse: quanto menos dessa música, melhor), ou se eram pessoas que simplesmente não conheciam a obra. De qualquer forma, o aplauso (não faço a ressalva para os cantores, destaco principalmente Andrea Rost, a de carreira mais brilhante dos dois elencos, mais uma intérprete de Lucia di Lammermoor que domina as dificuldades do papel de Donna Anna, e Nicola Ulivieri, excelente no papel-título) teve que contar ou com a condescendência ou com a ignorância do público e da crítica. A crítica, principalmente, falhou. Quanto ao público, há sempre gente que está tendo o azar de conhecer a obra justamente nessas montagens, e tem que ver aquilo. O papel da crítica deveria ser o de alertar o público para tais deformações; no entanto, como eu bem descobri, há gente que trabalha com crítica musical em São Paulo e que não conhece o fim de uma das óperas mais montadas e gravadas de toda a história. Pessoas que poderiam denunciar tais equívocos, na verdade, são também sintoma da precariedade musical da cidade e do país.

Coisa totalmente diversa foram as montagens paulistanas de O anel do Nibelungo, de Wagner, por André Heller-Lopes. O anel compõe-se um prólogo, O ouro do reno, mais três óperas, A valquíria, Siegfried e Crepúsculo dos deuses. O Teatro Municipal de São Paulo, com sua precariedade habitual (a gestão de Ira Levin, que trouxe, por exemplo, Jenufa ao Brasil, foi uma exceção), somente consegue montar um desses títulos por ano. O primeiro foi A valquíria, em 2011; ano passado, Crepúsculo dos deuses. Faltam O ouro do reno, programada para 2013, e Siegfried, em 2014.
Na récita que vi em 2011, a orquestra sofreu bastante no primeiro ato. Os cantores, nas duas ocasiões, foram, com exceções muito pontuais, bons ou, pelo menos, dignos. Não me esqueço do impacto do primeiro ato, em que os dois melhores intérpretes daquela montagem, Martin Mühle (voz perfeita para o papel), e Eiko Senda, como os irmãos Siegmund e Sieglinde, depois de toda aquele processo de autodescoberta, finalmente consumam sua paixão um pelo outro.
Em 2012, a grande Eliane Coelho cantou pela primeira vez Brünnhilde; embora o papel pedisse uma voz de outro tipo, ela logrou interpretá-lo com extrema habilidade, excepcional musicalidade, bem como desenvoltura cênica. Gregory Reinhardt, no papel de Hagen, também se destacou.
E as montagens... Gostei delas; é certo que a opção do abrasileiramento nem sempre funcionava bem nessa história tão germânica. Alguns momentos me convenceram inteiramente, como a casa de ex-votos em A valquíria, a cena entre Hagen e Alberich no Crepúsculo. Mais importante do que a beleza visual que André Heller-Lopes atingiu, foi o fato de que sua opção cênica de um Anel brasileiro jamais traiu o lado sobrenatural, mágico, daquela história de deuses, heróis e monstros. Ele soube traduzi-la para símbolos da cultura do Brasil e, assim, manter a tensão entre os diferentes planos dos deuses e dos humanos no libreto de Wagner. E, no plano humano, ele foi provocador (Wagner também era) o suficiente para gerar críticas moralistas: http://euterpe.blog.br/critica/a-malicia-do-desejo-erotico-e-sua-nova-vitima-o-mito
O atual diretor do Teatro Municipal de São Paulo, no entanto, em decisão artisticamente muitíssimo equivocada, decidiu CANCELAR a montagem de O ouro do Reno, que será apresentada em forma de concerto, ou seja, sem a encenação de André Heller-Lopes. A foto que o próprio diretor cênico publicou dos ensaios indicava que a beleza visual das outras montagens seria repetida no espetáculo infelizmente cancelado. São Paulo (e o Rio de Janeiro) continua bem atrás de Manaus, que logrou fazer a primeira montagem brasileira desse ciclo do Wagner.
Infelizmente, repito, porque se tratava de uma concepção original, que só mesmo no Brasil poderia ter sido imaginada, com beleza visual e um bom grau de coerência com a obra do compositor.
Alguns veículos de comunicação noticiaram outros problemas da atual gestão, como possíveis sabotagens, que estão sob investigação, reclamação de cantores nacionais preteridos por estrangeiros e várias outras questões. Para mim, a desistência dessa montagem do Anel, assim como o Don Giovanni mutilado, o principal problema é artístico, e a recente decisão de extinção do Coral Paulistano confirma-o.

Em desastrosa decisão da direção do Teatro Municipal, o Coral Paulistano será unido ao Coral Lírico, em mais uma etapa da destruição da importantíssima obra de Mário de Andrade nas instituições culturais brasileiras; ele o fundou em 1936, e cada vez estamos mais aquém da visão de cultura daquele grande escritor: http://blogs.estadao.com.br/joao-luiz-sampaio/teatro-municipal-vai-unir-coral-lirico-e-coral-paulistano/
A decisão é completamente antimusical. Um coro não tem nada que ver com o outro. O Coral Lírico concentra-se na ópera, e o faz bem. O Coral Paulistano canta principalmente o repertório de câmara, muitas vezes a cappella, que é muito diferente do de ópera e, várias vezes, exige uma abordagem vocal completamente diversa - em geral, menos potência e menos vibrato. Não se canta da mesma forma, por exemplo, as partes para coro do Crepúsculo dos deuses e as Valsas de amor de Brahms (só para pensar em dois compositores contemporâneos e da mesma língua; se eu lembrasse de alguém como Janequin, as diferenças seriam ainda maiores...). Esse Brahms, vi o Paulistano interpretar muito bem sob a regência de Thiago Pinheiro.
E o Paulistano tinha um trabalho com o repertório brasileiro muito significativo. Por exemplo, sob a regência de Mara Campos, vi-o apresentar, entre outras peças, o Moteto em Ré Menor de Gilberto Mendes, a partir do poema "Beba Coca-Cola" de Décio Pignatari, que é bastante difícil de cantar...
Também esse trabalho será perdido com esta gestão que, imitando o desastre de vários anos das autoridades estaduais de São Paulo no campo da cultura, provavelmente passará para a história principalmente pelo que fechou, cancelou e extinguiu.

P.S.: Foi criada uma petição de protesto contra a extinção do Coral Paulistano. Já a assinei: http://www.avaaz.org/po/petition/SALVEM_O_CORAL_PAULISTANO/?cHhvdcb