O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 28 de março de 2023

Desarquivando o Brasil CXCIII: Sobre Stuart Angel Jones e o suposto documento sobre sua morte

Stuart Edgar Angel Jones é um desaparecido político da ditadura militar; sua esposa, Sônia Maria de Moraes Angel Jones, e sua mãe, Zuzu Angel, são mortas políticas. No dia 24 de março de 2023, um suposto documento de militar que contaria as circunstâncias da tortura e do assassinato de Stuart foi anunciado em um leilão, o que gerou espanto e ultraje.
Depois de ter sido retirado do leilão, o jornalista Bolívar Torres escreveu uma matéria para O Globo, "Retirado de leilão, documento que teria confissão de militar sobre tortura a Stuart Angel mobiliza historiadores", publicada em 27 de março, em que constatou que o documento aparentemente coincide com outro, ficcional, feito para o filme de Sérgio Rezende sobre Zuzu.
Ele me consultou a respeito; enviei-lhe este pequeno texto, que era o que podia fazer, pois tive acesso apenas a fotos do documento, que precisa passar por perícia.


Os nomes de Alberto Dias (o alegado preso que teria escrito a Zuzu Angel sobre a morte do desaparecido político Suart Angel Jones) e Marco Aurélio Carvalho (militar que teria assinado o suposto documento de 1976 sobre o assassinato e o desaparecimento forçado do mencionado desaparecido político) não constam do “Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985)”, de 2009, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, tampouco do relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014.
De qualquer forma, a carta conhecida escrita à mão para Zuzu Angel (que também foi vítima da ditadura militar) é de autoria de Alex Polari, preso político que sobreviveu à tortura.
Para a Comissão Nacional da Verdade, dois ex-militares deram depoimentos não identificados sobre o caso de Stuart Angel, o que era permitido pelo inciso I do artigo 4º da lei de criação da CNV, a lei federal nº 12.528/2011.
No entanto, o suposto documento de 1976 parece improvável, pois esse ano era de uma época ainda de muitos desaparecimentos forçados (a ditadura de Geisel difere-se da de Médici, entre outros fatores, por ter intensificado esse tipo de crime de lesa-humanidade). O AI-5 continuava vigente. Levar um documento como esse a um órgão ligado ao Estado, como um cartório, significava correr risco de morte. Por essa razão, em geral essas declarações que denunciavam a repressão política eram entregues a outras entidades, que passaram a fazer campanha pela volta da democracia. Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da Casa da Morte, em Petrópolis, fez a declaração sobre sua prisão e as torturas à OAB. Criméia Alice Schmidt de Almeida, ex-guerrilheira do Araguaia, apresentou uma declaração para a Igreja Católica em São Paulo, diante das ameaças dos militares de que ela poderia sofrer um “acidente”.
Na pesquisa documental, sabemos que o teor de verdade do que um documento diz não significa que ele seja autêntico: documentos autênticos podem perfeitamente conter informações falsas, e o inverso também acontece. Qualquer documento precisa ser checado a partir de suas características materiais, e analisado e interpretado de acordo com sua época e sua possível origem.


Depois disso, em 28 de março, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania publicou uma nota afirmando que "o governo brasileiro foi surpreendido com a denúncia sobre o leilão de um suposto documento assinado por um oficial da Aeronáutica, no qual confessa ter presenciado e participado das diversas violações que resultaram na morte de Stuart Edgar Angel Jones. O militante do MR-8 está desaparecido desde o ano de 1971, quando tinha 25 anos."
O Ministério também fala em "suposto" documento. Vi que alguns veículos, temerariamente, assumiram-no como verdadeiro, embora nem mesmo se saiba sua origem. Ele precisa passar por perícia técnica. 

P.S.: Também o jornalista Rafael Cardoso me ouviu para esta matéria da Agência Brasil, "Família de Stuart Angel vai periciar suposto documento sobre tortura".


sexta-feira, 24 de março de 2023

Os insetos e o corpo do poeta


Rosto esmagado
contra o vidro do caixão;
assim exposto
o poeta.


– Ah, é? Tivemos de fechar às pressas porque o corpo estava atraindo os insetos. Esse amigo de vocês já chegou assim.

Boca aberta
do rosto esmagado
contra o vidro do caixão;
assim disposta
a voz do poeta.

– Não podemos fazer nada. Não temos autorização para mexer no corpo. Vão falar com o responsável.

Insetos libertando-se
da boca aberta
do rosto esmagado
contra o vidro do caixão;
assim reposta
a lírica do poeta.

– Eu só mexo no corpo para colocar no caixão. Depois, não é mais meu departamento. Eu sou terceirizado, vão procurar um funcionário, se acharem. Daqui a uma hora ele vai ser cremado, que diferença faz? Com licença, que chegou novo carregamento.

Outros seres começam a devorar
os insetos libertando-se
da boca aberta
do rosto esmagado
contra o vidro do caixão;
assim proposta
a dialética do poeta.

– Isto não é digno.
– Está um horror.
– Tenho uma chave de fenda.
– E daí?
– Serve para abrir indignidades à força.

Aberto o vidro,
recolocado o travesseiro,
ajusta-se o rosto;
o trabalho do desinfetante
consome os insetos
e a fome dos outros seres;
a boca do poeta liberta-se
de permanecer aberta em vão
ainda após a morte.

– Você sempre leva desinfetante na bolsa?
– Sou artista plástico, esqueceu?

Rosto pacificado,
insetos mortos,
constrangimentos extintos,
há agora quem duvide
que esteja exposto
o corpo do poeta.