O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 28 de novembro de 2010

Justiça de transição: os casos da Argentina e do Brasil


Em setembro, apresentei um trabalho no Congresso Internacional 200 Años de Iberoamérica na Universidade de Santiago de Compostela. Estive em mesa dedicada à justiça de transição, que foi muito bem coordenada pelos historiadores uruguaios Silvia Dutrénit Bielous e Enrique Coraza de los Santos.
O trabalho,"Ditadura Militar na América Latina e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos: (In)justiça de transição no Brasil e na Argentina", como publicado, não representa o estágio atual da pesquisa. Antes dele, eu havia publicado um texto mais curto, e teoricamente um tanto diverno, no Sopro: "Nem justiça nem transição: a lei brasileira de anistia e o Supremo Tribunal Federal". Todavia, aponta para o que estou trabalhando hoje e refere-se a documentos do DEOPS/SP com que outros pesquisadores ainda não trabalharam. Eis o resumo:
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos, por meio tanto
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos quanto da
Corte, apresenta, desde a década de noventa, significativas
decisões sobre o legado autoritário das ditaduras militares
na América Latina das décadas de 1970 e 1980, e sobre a
responsabilidade do Estado e dos agentes públicos a respeito dos
crimes contra os direitos humanos cometidos por esses regimes
políticos autoritários. As decisões da Comissão e da Corte
Interamericana de Direitos Humanos tiveram importante papel
na Argentina para o estabelecimento da justiça de transição.
No entanto, no Brasil, não só não houve responsabilização
pelos crimes da ditadura, como há uma resistência, tanto do
Poder Executivo quanto do Judiciário, contra a fiscalização
internacional nessa matéria. O trabalho tem por objetivo fazer
um estudo comparativo entre os casos do Brasil e da Argentina
no tocante às decisões do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos em matéria de justiça de transição e sua eficácia no
plano interno.

A jurisprudência da Suprema Corte argentina diverge radicalmente do Supremo Tribunal Federal brasileiro no uso das fontes do Direito Internacional dos Direitos Humanos: no Brasil, elas foram ignoradas e a lei de anistia aprovada no governo do General Figueiredo foi mantida.
A dimensão comparativa não está completa, no entanto, tanto no aspecto do tratamento das fontes quanto no contexto histórico-político. No dia da apresentação, acabei dando mais ênfase ao caso brasileiro (o que também ocorre no texto), apesar de ter avançado na comparação, pois havia muitos argentinos na plateia e nenhum pesquisador brasileiro do tema estava nessa mesa. As curiosidades estavam voltadas para o caso do Brasil, que é mal conhecido na Espanha.
Pude confirmar, no Congresso, que os pesquisadores espanhóis, em regra, evitam o Brasil quando se dedicam à América Latina. Uma das razões, claro, é o idioma. A exceção era Elena Martínez Barahona, professora de Ciência Política da Universidade de Salamanca, que apresentou trabalho (escrito com Sebastián Linares Lejarraga) sobre justiça de transição, impunidade e violência em El Salvador e no Brasil (ela deixou o caso brasileiro para minha análise, no entanto).
Constatei também que não havia nenhum português nas mesas que frequentei do Congresso, o que era curioso, tendo em vista a proximidade da Galícia (tanto geográfica quanto linguística) das terras lusitanas.
O texto que escrevi pode ser lido nesta ligação:
http://halshs.archives-ouvertes.fr/docs/00/53/12/73/PDF/AT12_Fernandes.pdf
Uma nota: Tirei a foto acima em julho de 2010, na Praça de Maio em Buenos Aires. Trata-se de acampamento de veteranos da Guerra das Malvinas - também eles não querem ser esquecidos.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Miguel Reale e a democracia social na visão de Médici

Miguel Reale, se vivo fora, teria feito cem anos. Não sou um especialista em nada, muito menos em integralismo, por isso não pude escrever sobre o pensamento desse grande jurista brasileiro nos anos 1930 e 1940.
Outros também não puderam fazê-lo. Enviaram-me notícia de evento universitário a propósito da efeméride: julgaram relevante tratar dele como pai - Sérgio Buarque de Holanda teria adorado ver isso - mas não acharam ninguém para tratar da contribuição de Reale para o integralismo, tampouco para a ditadura militar (tempo em que o jurista e professor do Largo de São Francisco chegou a ser reitor da USP).
Sei, no entanto, que aqueles anos de formação foram determinantes para o Reale maduro: em 1969, na paródia de constituinte encenada às portas fechadas (esfera pública versão burocrático-militar) por Costa e Silva (que desejava substituir a Carta de 1967) com Pedro Aleixo, Gama e Silva e outros "notáveis", Reale propôs a criação da representação corporativa, típica do fascismo. Costa e Silva não aceitou, achando que a proposta era ousada demais.
Aludi a esse episódio no Sopro número 9: http://culturaebarbarie.org/sopro/n9.pdf
Sobre Reale, escrevi há uns anos este pequeno artigo, "A cultura jurídica brasileira e a chibata: Miguel Reale e a história como fonte do Direito": http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=93400515 ou http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/article/view/613
Nele, podem-se ler coisas mais ou menos conhecidas e bastante silenciadas, como alguns dos ataques de Pontes de Miranda à democracia, os elogios de Levi Carneiro a Hitler, e a caracterização que Reale fez de Médici como o criador/pensador da "democracia social" no Brasil.
Refiro-me aos ataques que o grande jurista fez à soberania popular e à possibilidade de instauração de uma assembleia constituinte no Brasil em dois momentos, nos anos 1960, no início da ditadura militar, e nos anos 1980, crepúsculo da ditadura (mas não do poder militar no Brasil, como Jorge Zaverucha bem analisa).
É inolvidável ler a análise realiana de que Médici teria feito o Brasil superar as liberdades dos EUA e os direitos sociais da URSS. Cito a original análise jurídico-política no artigo.
A identidade de pensamento do jurista com o general-estadista-pensador é tamanha que passou um pequeno erro na revisão, e acho que ninguém o notou até hoje: na página 246, a última citação é de Médici, não de Reale. São indiscerníveis em sua análise da democracia.

sábado, 20 de novembro de 2010

Consciência negra, João Cândido e algo como um poema

Neste dia da consciência negra, feriado em algumas partes do país (como no Rio de Janeiro, que foi a primeira ou uma das primeiras cidades a instituí-lo, apesar da oposição do então prefeito Cesar Maia), passei a manhã em um congresso nacional de iniciação científica organizado pelas instituições de ensino superior particulares. Fui acompanhar um bravo orientando, que escreveu este trabalho comigo e foi apresentar um pôster a partir da pesquisa que desenvolvemos sobre a incomunicabilidade dos presos políticos durante a ditadura militar.
Esperava que na instituição houvesse menção ao dia da consciência negra, já que os trabalhos ocorriam em um feriado, mas nada vi a respeito. Resolvi, então, escrever.
Em Cinco lugares da fúria, publiquei um poeminha que é uma espécie de rápida história do Brasil vista pelo prisma da tortura. De fato, estamos em um país socialmente tão autoritário que a democracia política não mudou esse quadro - pelo contrário, tortura-se mais hoje do que na ditadura militar. E os negros estão entre as vítimas preferenciais das forças de segurança, públicas e privadas.
No poema, menciono (seria mesmo necessário fazê-lo) a Revolta da Chibata. Ela continua a perturbar a Marinha brasileira, cuja alma ainda parece nostálgica dos mares oitocentistas.
Nele, tentei homenagear um dos maiores nomes de nossas Forças Armadas, João Cândido, o Almirante Negro cantado por Aldir Blanc e João Bosco (a censura da ditadura militar, porém, impôs a alcunha "navegante negro" no belo samba O mestre-sala dos mares). Vejam Elis Regina cantando a letra original.
Creio que a grandeza não se deve medir pelo número de medalhas ou por titulação e cargos, mas pelo que se fez em prol da dignidade humana. Nesse campo, quantos podem igualar João Cândido, que teve que pagar um preço tão alto por tentar fazer com que a Lei Áurea adentrasse os recintos militares do início do século XX?
Certo poeta carioca afirmou que este poeminha é horrível. De fato, tentei que fosse ao menos terrível.
A pobreza dos recursos deste blogue ou dos recursos mentais deste blogueiro impede que a quebra dos versos longos esteja correta (a estrofação está correta, ao contrário do que ocorre no livro - o editor acabou mudando-a inadvertidamente). Mas o que escrevi é praticamente isto:



NATUREZA-MORTA E RETRATOS CÍVICOS



Ele pintou dois ovos cozidos.
Com isso, representou toda a riqueza de nosso tempo.

Ele fotografou dois ovos cozidos;
eram os olhos do rapaz
com a língua de fora e
sob muitos calçados
alheios.
Com isso, reproduziu as virtudes heroicas de nosso tempo.

Ele xerocou a imagem de dois ovos cozidos;
eram os olhos do rapaz,
um deles frito
para alimento de ninguém,
ou seja, para a justiça, que ordena, acertai na nuca os cem e dez e um covardes ajoelhados, amarrados, ou desacordados, mas antes
deixai que os seus sexos copulem pela última vez com a boca agora humana dos cães;
a hora da água sanitária
fará esquecer os líquidos anteriores,
e, para os eleitores, a taça de tudo
saberá a vinho.

Com isso, imitou o agronegócio de seu tempo.

Ele colou na parede propaganda de ovos recortada de jornais.
O rapaz não os leu,
e não sabia daquele navegante em mar imenso, que,
após duzentos e cinquenta chibatadas dos oficiais
(o prêmio incontável da liberdade),
foi anistiado pelas armas da república, isto é, jogado à cela com a multidão
e, sem comida ou água, mas coberto da cal, branca como os oficiais,
sobreviveu por ingratidão contra a cal,
enquanto os companheiros fuzilados
eram lançados para enterro na boca então humana dos tubarões;
expulso do mar por homens secos,
restando-lhe das ondas carregar no cais cestos com peixes alheios,
não recebeu o prêmio
de não ter descendentes,
nem mesmo
este rapaz, analfabeto por estudar há seis anos na escola estadual Cisne Empalhado, onde negros singram os mares verdes nas poças junto ao limo das paredes. Ele
não lerá isto.
Cumprida a derrota, cumprida a missão.
Com isso, resumiu todo o direito constitucional de nosso tempo.

(Eles andam nus como o ovo após a casca.
Não estimam de cobrir sua vergonha. Não lavram nem criam. A estrela que está por cima de toda Cruz é pequena. Entre uma rede e outra, fazem fogueiras.
Acerca das estrelas, tenho trabalhado tudo o que posso, apesar de uma perna que tenho muito mal, com uma chaga tão grande que parece humana. Mando-lhe como estão situadas as estrelas. Mas o grau ninguém pode saber, que de uma coçadura me fez uma chaga maior do que a minha mão.
Estão nus, não têm fé, lei ou rei. Precisamos quebrar a casca deles. Quando os ferirmos, terão a lei em seu corpo.
A nau se perdeu sem vento forte nem contrário para que tal acontecesse. Séculos depois, ainda somos filhos da deriva.
Com isso, nas Bienais a casca do ovo supera a vanguarda de nosso tempo.)

Ele pegou os dois, esmagou-os na mão, jogou-os na tela;
eram os ovos do rapaz retirados à hemorragia.
O rapaz ainda pôde reconhecer
a imagem que se formava: a bandeira nacional;
a mancha, porém, não era amarela, mas tinha algo do branco e algo do vermelho, porém mais de algo indefinido
e, porque ela não correspondia às cores nacionais,
foi executado em defesa da pátria.

domingo, 14 de novembro de 2010

Antigo Regime e magistratura no Brasil, parte IV: O STF e a ditadura militar

Na edição de novembro de 2010 da Revista Piauí, pode-se ler carta do Ministro do Supremo Tribunal Federal, professor e sócio-cotista do Instituto Brasiliense de Direito Público, ex-Advogado-Geral da União, Gilmar Ferreira Mendes.
Piauí havia publicado duas longas reportagens, muito boas, em agosto e setembro do mesmo ano: Data venia, o Supremo e O Supremo, quosque tandem, matérias de Luiz Maklouf Carvalho. Por algum motivo, que não me ficou claro na carta, o magistrado afirma que o jornalista incorreu em "inconsequente desonestidade", "fraude pura e simples", e que a revista publica "matérias nefastas". No entanto, parecem exemplos de bom jornalismo aos leitores incautos como eu.
É possível que se trata de um lapso de leitura do magistrado: um sinal disso é chamar a Piauí de "revista literária", o que ela nunca foi, apesar de contar com uma que outra matéria de literatura em cada edição.
Em mais recente momento de desentendimento do magistrado com a imprensa (logo virá mais um, com a edição desta semana de Carta Capital), o jornalista Elio Gaspari, em 3 de novembro de 2010, questionou em sua coluna (publicada em vários jornais do país) a elegância de Gilmar Mendes com os colegas e com o Congresso Nacional durante os debates sobre a constitucionalidade da lei Ficha Limpa.
Buscando provar que Gaspari estava errado nessas acusações e em escrever que Gilmar Mendes queria voltar ao proscênio, o magistrado publicou na Folha de S. Paulo, em 14 de novembro, "Gaspari, a ditadura e a Suprema Corte", acusando o jornalista de "teimosia, despreparo e indulgência"; além disso, Gaspari seria "admirador da ditadura e macaqueador dos americanos". Dessa forma, ele não seria capaz de apreciar as conquistas do STF e do Conselho Nacional de Justiça.
No entanto, o magistrado comete uma impropriedade histórica ao comparar o atual STF com o antigo, "O mesmo e velho Supremo" que teria dado habeas corpus contra os dissidentes políticos perseguidos pela ditadura militar.
Achamos pertinente que ele aponte o continuísmo no STF. O diagnóstico poderia ser estendido ao conjunto do Judiciário brasileiro: entre os que apontaram esse fato, está agora Frederico de Almeida, com sua tese de doutorado A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil, orientada por Maria Tereza Aina Sadek, professora da Ciência Política da USP. O trabalho, que parte teoricamente de Bourdieu e do conceito de campo jurídico, pode ser lido aqui: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-08102010-143600/pt-br.php
A seção em que analisa a cultura da homenagem, no direito brasileiro, é brilhante; segue "Trajetórias ocultas e imagens construídas", que poderia ser infinita, mas o autor contenta-se com alguns exemplos marcantes. Os dados sobre o ensino jurídico e as elites são impressionantes: há claramente uma "hierarquia dos diplomas" e uma "produção escolar da nobreza togada".
Não vou comentar sobre a tese aqui (estou acabando de lê-la), mas deve-se logo dizer que se trata de um trabalho importante, e que se entende que tenha sido produzido na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP) e não no Largo de São Francisco.
O trabalho aponta essa continuidade nas elites jurídicas. Entendida nesse sentido, a afirmação do Ministro do STF parece-me irretocável. O problema está na mencionada concessão de habeas corpus. Sob esse aspecto, há uma grande diferença entre a Corte antes e depois do Ato Institucional n. 5, que possibilitou que ela fosse ceifada de Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, bem como de Antônio Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada, que se aposentaram voluntariamente.
O livro de Osvaldo Trigueiro do Vale, O Supremo Tribunal Federal e a instabilidade político-institucional (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976) mantém interesse na análise desse momento, principalmente pelos depoimentos que colheu dos juristas envolvidos. Em pleno governo Geisel, pôde escrever sobre os efeitos do AI-5 e do regime:

No momento o Brasil vive o papel de nação subdesenvolvida e o amontoado de leis inconstitucionais atestam que não descobrimos o caminho da estabilidade político-social e econômica.
Nesse quadro, mais de cinco anos depois de modificada a Constituição de 1967, ficaram reduzidas ainda mais as chances de um desempenho mais firme e deliberante do Supremo Tribunal Federal. [p. 152]

O próprio Ministro Gilmar Mendes reconheceu a gravidade da intervenção da ditadura militar sobre o STF: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=101553&tip=UN
O AI-5 suspendeu o habeas corpus para os crimes políticos; além disso, serviu para moldar um Judiciário subserviente. Sobre isso, escrevi um pouco na minha própria tese de doutorado, A produção legal da ilegalidade: os direitos humanos e a cultura jurídica brasileira.
Um dos casos que estudei foi um exemplo prático de submissão jurisprudencial da Constituição ao decreto-lei, que é uma norma típica das ditaduras no Brasil. No caso, o decreto-lei de Vargas que aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O STF, na representação de inconstitucionalidade n° 803, na prática julgou-o acima da Constituição para atacar a Convenção n°110 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que previa a liberdade sindical, prevista na Carta de 1969 então vigente, mas cerceada pela CLT.
Na minha tese, entendi esse caso, julgado em 1977 (e exemplar da Corte pós-AI-5), como um dos momentos típicos da jurisprudência do STF contrária ao Direito Internacional dos Direitos Humanos; um caso de construção legal da ilegalidade.
Nesse aspecto, o atual Supremo Tribunal Federal continua uma tradição. Lembro agora da questão da possibilidade de responsabilizar os agentes do terror de Estado na época da ditadura militar.
A questão chegou ao STF com o julgamento da ADPF 153, relativa à lei de anistia de 1979. Também nessa decisão, o Direito Internacional dos Direitos Humanos não foi aplicado, e, como argumentei no Sopro 30, tampouco a Constituição de 1988 foi garantida, uma vez que emenda constitucional à Carta anterior, da ditadura, foi considerada um "limite material" para a eficácia da Constituição democrática. Dessa forma, a transição democrática foi negada, em termos jurídicos, pelo STF:


A noção de justiça de transição diz respeito aos procedimentos que têm como fim a apuração e sanção dos abusos contra os direitos humanos ocorridos em um regime político passado. Suas formas são diversas, como já reconheceu a ONU.[15] No Brasil, no entanto, não se pode falar que ela tem realmente ocorrido, apesar das indenizações pagas a perseguidos políticos e a seus familiares (o que seria a “dimensão reparatória” da justiça de transição[16]). A simples reparação não basta para prevenir novas violações de direitos humanos, e a justiça de transição, embora lide com o passado, o faz para preparar o futuro: uma sociedade com respeito à dignidade humana.
A posição do STF, de que a emenda da Constituição da ditadura militar é superior à Constituição da democracia, significa, politicamente, que não houve justiça de transição porque a transição jamais aconteceu: as normas superiores continuam a ser, segundo o Supremo Tribunal Federal, aquelas emanadas pelo velho poder autoritário oriundo do golpe de 1964.

Juridicamente, esse combate contínuo à liberdade dá-se pela produção legal da ilegalidade no campo dos direitos humanos. Nessa relação cínica com a eficácia das leis, no "constitucionalismo vigiado" (expressão usada por Victor Nunes Leal), temos certamente fatores de estabilidade das instituições brasileiras.
Felizmente, continuam existindo pontos de abertura na imprensa e na academia (a tese de Frederico de Almeida é um exemplo) que mostram a possibilidade do questionamento dessa estabilidade e, talvez, de sua necessária mudança.

sábado, 13 de novembro de 2010

Algo como um poema: Schmittität, Bestialität

Poderia introduzir o poema, porém prefiro calar-me. Foi publicado praticamente assim no número 4 da Cacto (São Paulo, jul./dez. 2004), revista de poesia que era editada pelos escritores Eduardo Sterzi e Tarso de Melo.


Schmittität, Bestialität



é soberano quem decreta o genocídio.
nada mais simples do que isto:
quando ele fala soberano,
diz genocídio.

é genocídio quem decreta o soberano.
nenhum prejuízo, nenhum dano:
quando ele cala genocídio,
diz soberano.

e quem não fala soberano ou genocídio?
por que estaria vivo?
se soberano
não fala, cala-o o genocídio.

porém alguém vive? senão o soberano?
nenhum vivente, mas falamos
do genocídio
a imitar a luz passeando pelos crânios

e nesse dia, aceso pelo genocídio,
nos atravessa o aziago brilho
do soberano
que aos ossos chama de seus filhos.

é soberano quem decreta o soberano?
é genocida o genocídio?
porém os ossos sob os gritos
rugem: cresçamos

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Antigo Regime e magistratura no Brasil, parte III: Exoneração e República

No Brasil, juízes, depois de adquirida a vitaliciedade (o que ocorre após dois anos), não podem ser desligados da magistratura, mesmo em caso de crime, segundo o entendimento predominante do que prevê a Constituição.
Ideli Salvatti, quando Senadora, apresentou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 89/2003 para mudar esse quadro, referindo-se também aos membros do Ministério Público. Já escrevi sobre ele aqui. No artigo 3º da PEC, encontramos o cuidado de que as novas regras não se apliquem aos magistrados e membros do Ministério Público já vitalícios na época de sua promulgação.
A PEC foi aprovada no Senado Federal em 15 de julho de 2010. Seguiu para a Câmara dos Deputados, onde recebeu o número 505/2010: http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=483905
O presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o Deputado Federal Eliseu Padilha, elaborou parecer, em 10 de outubro de 2010, que opina pela inconstitucionalidade da PEC. Ele ainda será votado na Comissão.
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) declarou que sua influência foi determinante para o posicionamento de Padilha, e eu tenho certeza disso: http://www.amb.com.br/?secao=mostranoticia&mat_id=21649
O momento forte da argumentação do parecer reproduz a visão da AMB:

[...] a proposta em exame fere limite material implícito imposto ao poder reformador pelo constituinte originário, pois embora não haja menção expressa à vitaliciedade da magistratura como tal, a mesma decorre do sistema adotado pela Constituição, em que deu-se ao Poder Judiciário a necessária independência para o julgamento das lides que lhe são trazidas. Essa independência do magistrado é garantida exatamente pelos princípios da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio (art. 95, I a III – CF).


A Constituição prevê, como limites materiais às emendas constitucionais, ou seja, como previsões que não podem ser alteradas, a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Estes, significativamente, não são mencionados pelo relator: "A proposta de emenda sob exame não é tendente a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, nem a separação dos Poderes."
A exoneração de, por exemplo, magistrados corruptos ameaça a República, como pretende o Deputado – ou ameaça esta República? A pergunta merece ser posta.
Se a resposta é afirmativa, vê-se que malogra um dos direitos fundamentais que a Constituição deseja proteger, e que o parecer esqueceu de mencionar: a igualdade dos cidadãos perante a lei. Se os magistrados não fossem "mais iguais", poderiam ser exonerados a bem do serviço público quando dele se servissem para seus interesses pessoais, e não para os da coisa pública.
Por conseguinte, a ideia de república presente no parecer está esvaziada da moral republicana, que a PEC de Salvatti queria estabelecer.
É interessante comparar esse trâmite legislativo com o que ocorreu recentemente na França. A lei orgânica da magistratura francesa previa, além da aposentadoria compulsória, a exoneração (révocation) do magistrado, com ou sem direito à pensão (a prestação previdenciária), no parágrafo 7º do artigo 45.
Essa lei foi modificada em 22 de julho de 2010, e a expressão "avec ou sans suspension des droits à pension" (com ou sem suspensão dos direitos à pensão) foi suprimida.
O debate no Senado foi ilustrativo: o governo Sarkozy queria manter a possibilidade de suspensão dos direitos previdenciários, que raramente foi aplicada. Os Senadores foram contrários. Nicole Borvo Cohen-Seat argumentou que se tratava de pena desproporcional: se o funcionário público contribuiu para sua aposentadoria, ela não lhe deveria ser tirada. Jean-Pierre Sueur alegou que tal sanção violaria a Convenção Europeia de Direitos Humanos, segundo o entendimento que o Conselho de Estado francês já havia exposto a respeito dos outros funcionários públicos. Nem mesmo para os criminosos comuns havia essa possibilidade de perda da aposentadoria!
No entanto, a pena de exoneração foi mantida. Não havia dúvida nenhuma a respeito, a França continua a ser uma república. O que, portanto, a AMB quer evitar no Brasil?

domingo, 7 de novembro de 2010

Políticas da amnésia, amnésia da política

Os presidentes titular e substituto da Comissão de Altos Estudos do Memórias Reveladas (http://www.an.gov.br/mr/Seguranca/Principal.asp) demitiram-se na semana que acaba. Se algo foi revelado com isso, é que há uma pesada interdição sobre os pretendidos estudos.
Carlos Fico, o substituto, foi o primeiro a deixar o cargo. A carta com as razões para sua atitude pode ser lida aqui:

http://oglobo.globo.com/pais/arquivos/pais_carta.pdf

No dia seguinte, fez o mesmo Jessie Jane Vieira de Sousa, ex-presa política e, como Fico, professora da UFRJ:

http://www.torturanuncamais-rj.org.br/Noticias.asp?Codnoticia=281


A historiadora acusa a cultura de segredo existente no Poder Público. Creio que ela está correta. O Arquivo Nacional não segue a política defendida por nós, pesquisadores, e seguida pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo: a abertura da consulta aos documentos com a assinatura de um termo de compromisso do consulente.
É irônico que a candidatura de uma ex-militante da esquerda clandestina contra a ditadura militar seja invocada para a interdição da memória. Mais irônico, o fato de a própria candidata ter lançado o Memórias Reveladas quando era titular da Casa Civil em 2009.
De fato, o passado da ditadura militar poderia ter gerado um debate importante da eleição de 2010, pelo menos desde que um jornal de São Paulo decidiu divulgar ficha pretensamente oriunda do DOPS da então candidata do PT à presidência (e com isso curiosamente ajudou a campanha oposicionista). Essa ficha foi reproduzida em mensagens pela internet; eu mesmo a recebi e a contestei duas vezes.
Nenhum debate real ocorreu, no entanto. A ficha era falsa, mas o jornal não se incomodou muito com isso, tampouco o candidato do PSDB. Embora também ele tivesse sido perseguido no período, não se interessou em denunciar a manipulação da história. Ao menos nesse aspecto, sua campanha traiu o próprio passado do candidato e - pior - o do país.
E os documentos verdadeiros? É claro que o fato de o documento ser verdadeiro não significa que ele encerre a verdade histórica. Os documentos produzidos pela polícia política representam a visão da repressão, que não deixará de apresentar seus preconceitos e falsidades. É preciso, pois, desmistificar o que esses documentos apresentam.
Essa tarefa é impossibilitada se os documentos continuam trancados em cofres que só prometem riquezas para o esquecimento. A interdição do acesso aos documentos bem mostra o que resta da ditadura. Haveria base jurídica para isso, no direito aparentemente democrático do Brasil de hoje? Nesta ligação, pode-se ver a matéria do jornal O Globo, em que se aponta o argumento mais ou menos legal do Arquivo Nacional:

http://oglobo.globo.com/pais/eleicoes2010/mat/2010/11/03/historiador-se-demite-em-protesto-contra-sigilo-de-acervos-da-ditadura-no-periodo-eleitoral-922934844.asp

Direito à memória versus direito à intimidade? Está na moda, entre constitucionalistas, falar de balanceamento de direitos - o que não é feito no caso: com a interdição dos arquivos, simplesmente o direito à memória não é aplicado nunca.
Lembro-me do famoso "O que é uma nação?", de Ernest Renan (1823-1892). Nele, defende-se o apagamento de fatos "violentos" da história em prol da unidade da nação.

O esquecimento, e eu diria mesmo o erro histórico, é um fator essencial da criação de uma nação, e é assim que o progresso dos estudos históricos é frequentemente para a nação um perigo. A pesquisa histórica, com efeito, traz de novo à luz fatos violentos que se passaram na origem de todas as formações políticas [...]

Renan é coerente e defende, no mesmo texto, algo que Nietzsche chamaria de uma história monumental: uma nação deve basear-se em fatos heroicos de grandes homens. Dessa forma, a perspectiva crítica é anulada, e a glorificação do passado é instrumento para construir um consenso positivo em torno do poder presente.
Esquecer os fatos violentos? A violência, no caso, está no próprio esquecimento, ou melhor, continua no esquecimento, que só pode engendrar a negação da história e da política.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Por Lobato, direito à literatura e a educação dos educadores

Reli hoje A chave do tamanho e Reforma da natureza, livros da obra para crianças de Monteiro Lobato. O primeiro é bem melhor, com sua ficção científica de quase extermínio da humanidade inspirada pela guerra mundial que grassava.
Os dois livros marcam-se pelo cientificismo, que caracterizava a missão civilizatória que Lobato criou para si no Brasil. A postura antiplatônica e empirista de Emília, a boneca humana, é flagrante.
Em A chave do tamanho, Emília quer acabar com a guerra mundial manipulando a chave da guerra. Porém as chaves que controlavam o mundo não tinham legenda e ela, ao resolver testar uma por uma, fica reduzida a um centímetro de altura logo após mexer na primeira. Havia descoberto a chave do tamanho dos humanos (os outros seres vivos nada sofreram) e tinha ficado pequena demais para desfazer o estrago.
Milhões morreram por causa desse experimento de Emília, alguns sufocados pelas próprias roupas, outros de frio, outros em acidentes (todos os aviões em voo caíram, por exemplo).
Morreram também aqueles que não percebiam que as ideias vêm da experiência e teimavam em manter o mesmo pensamento apesar da mudança no mundo. Por exemplo, o Major, a esposa e a cozinheira, presos à antiga "ideia-de-gato", foram devorados por seu gato Manchinha, que não reconheceu os donos em formato reduzido. Emília tentou ensinar-lhe as virtudes do empirismo, mas o Major, retrato militar dos que têm preconceitos contra os intelectuais, manteve-se irredutível, acreditando que a mansidão da antiga ideia-de-gato seria confirmada agora que os humanos pareciam com ratinhos.
Mais ciência: é um antropólogo, Dr. Barnes (nos EUA, que Lobato admirava), que consegue liderar uma comunidade em Pail City adaptada às novas condições da humanidade, agora devotada à carne seca de minhoca.
O livro faz pensar. Mas por que escrevo "por Lobato"? Não por razões nostálgicas, apesar de tê-lo lido abundantemente na infância, período em que devorei até parte da obra adulta (inclusive O presidente negro, que tanta gente não leu até hoje). Faço-o em virtude do presente, que trouxe, mesmo aos EUA, a onda do politicamente correto. Uma onda que pode restringir o direito à literatura, se logra proibir grandes obras.
Um parecer do Conselho Nacional de Educação, ainda não homologado, de que foi relatora a professora e pedagoga Nilma Lino Gomes, sugere que Caçadas de Pedrinho não deva ser selecionado para o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), ou que receba uma nota de advertência a respeito dos estereótipos raciais.
O procedimento iniciou-se com a denúncia de Antônio Gomes Costa Neto à Ouvidoria da Secretaria de Promoção de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Ele desejava evitar o uso de livros e material didático que promovessem o racismo. Embora o seu pedido se restringisse ao âmbito do Distrito Federal, a questão foi levada ao MEC e ao CNE pela Secretaria.
Não acho a nota necessária: ter lido quase todo Lobato não me fez uma criança racista (isso seria possível, pois há mestiços racistas). Não vejo como os trechos sobre a Nastácia podem propiciar uma educação para o racismo - talvez os próprios adultos estejam querendo projetar sua sensibilidade aqui.
Pode-se dizer que a literatura de Lobato é racista? A questão não é simples, mesmo com os estereótipos raciais, que bem expressam a época tratada (já imagino que logo censurarão Castro Alves por retratar mal a África em Vozes d'África). Lobato transcende-os. Lembro agora da famosa história da violeta branca que fere de morte todas as pretensões de um "orgulho branco".
Pode-se lembrar também da Reforma da natureza, que começa com os líderes europeus, meros repesentantes de povos, chamar os representantes da humanidade para chegar a um acordo da paz. Alguém precisaria falar em nome do universal, acima dos particularismos nacionais, pois o universal é a voz da paz (um momento kantiano de Lobato). Quem são os escolhidos para esse papel? Dona Benta e Nastácia: ginecocracia multirracial cosmopolita! Duas senhoras, uma branca e outra negra, é que promovem a paz da humanidade - e ainda deixam quietinhos Hitler e Mussolini. Nada menos do que isso...
Se alguém acha que Lobato menosprezava as mulheres negras, leia a obra!
Eis o parecer do CNE:

http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=6702&Itemid=

Denise Bottmann discute-o aqui: http://naogostodeplagio.blogspot.com/2010/11/breique-do-breique-urgente.html

Só não se discutiu o fato de o parecer não ser exatamente bem escrito; como exemplo de frase engraçada, podemos ler: "Portanto, as ponderações feitas pelo Sr. Antônio Gomes da Costa Neto, conquanto cidadão e pesquisador das relações raciais, devem ser consideradas." Imagino que a professora relatora não pense exatamente que ser cidadão e pesquisador sejam condições que o desqualifiquem. É mais provável que ela, na condição de bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq e professora universitária com pós-doutorado pela Universidade de Coimbra, ignore o significado de conquanto, que é "embora". Quem educa os educadores?
Como o PNBE vai possibilitar o contato com a literatura de muitas crianças que não têm bibilioteca em casa, nem mesmo pais alfabetizados, a escolha das obras é uma questão de prioridade nacional. Merece, por conseguinte, receber melhor reflexão.

Ler a obra! Tarefa também dos professores: aqueles que não leem podem impedir os alunos de entrarem em contato com obras significativas. De fato, a tarefa, às vezes, não é cumprida nem mesmo por quem analisa a obra em questão. Lembro de um exposição de trabalho de um mestrando (não lembro se já era professor) que queria estudar os direitos dos animais na obra de Monteiro Lobato; no entanto, ele via a questão simplesmente no fato de os animais falarem na obra do autor.
O equívoco era manifesto: desde a Antiguidade, encontramos uma literatura que antropomorfiza os animais e faz com que eles falem. Isso não significa biocentrismo nem direito dos animais. Perguntei que obras eram analisadas, mas o pesquisador não soube citar nenhuma e afirmou que se tratava da "obra no geral".
Todavia, a A reforma da natureza foi obviamente feita com propósitos antropocêntricos, Emília é a representante da humanidade (que, aqui, não representa o universal, mas o antropocentrismo...) No livro, os animais não humanos são chamados de anima vile e os humanos, anima nobile. Segue-se, pois, a tradição. Visconde de Sabugosa chega a pensar em criar bois do tamanho de montanhas para o abastecimento de carne!
Mas quem faz o pesquisador pesquisar?
Deve-se lembrar: se nós, educadores e pesquisadores, não nos educarmos nem pesquisarmos, quais serão as condições de efetividade do direito à literatura? Esse direito terá mesmo que se refugiar fora das instituições de ensino e dos ministérios e secretarias de educação e assumir-se como direito insurgente - e logo teremos movimentos do sem-literatura, perseguidos e criminalizados como o MST!

Adendo: Logo após ter escrito isto, Denise Bottmann incluiu este belo texto de Marisa Lajolo e a notícia de que o Ministro Fernando Haddad quer que o parecer seja revisto. De qualquer forma, não se deve deixar o caso morrer! A coisa ainda pode ser homologada, e não sabemos quem será o próximo Ministro da Educação.
http://naogostodeplagio.blogspot.com/2010/11/monteiro-lobato-e-o-parecer-do-cne.html

P.S. de setembro de 2012: A questão está no  Supremo Tribunal Federal, e eu gostaria de voltar a ela, se encontrar tempo. De qualquer forma, aconselho a leitura deste longo texto de Ana Maria Gonçalves, que trata do racismo de Lobato (ela afirma: "Lobato não era quem fizeram que era, e sua declaração de usar a literatura para fazer eugenia nunca deve ser esquecida."); ela não menciona os textos antirracistas do mesmo autor, mas sua argumentação convence-me de que os livros que ela analisa deveriam sair com notas: http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/09/10/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/

Eleições no Brasil e entreouvidos no Rio de Janeiro


No domingo do segundo turno da eleição presidencial, 31 de outubro de 2010, estava em pé em um ônibus indo para a Barra da Tijuca, onde iria votar. Várias pessoas, tomadas pelo clima eleitoral, falavam alto, talvez na esperança de conseguir alguns últimos adeptos.
Sei que vários escritores usam esse tipo de material linguístico. Meus amigos Eduardo Sterzi e Veronica Stigger fazem-no. Alberto Pucheu tem um poema feito de falas ouvidas em ônibus. Quanto a mim, detesto ouvir conversas alheias, mas é muito difícil evitar a indiscrição, principalmente nesta era do telefone celular, em que a evasão de intimidade virou um padrão normativo.
Uma moça de saia longa e com cabelos longos descoloridos, sentada ao lado do motorista, explicou que não tinha votado em Dilma Rousseff: "Ela disse que se ela ganhasse era uma prova que Deus não existia, e eu não gostei disso." e "No primeiro turno votei na Marina." Não entendi quem havia inventado essa besteira e contado para ela. Só ouvi depois que ela havia feito algo com o PSDB cinco anos, o que deve ter surtido algum efeito em suas faculdades cognitivas.
Na minha frente, uma jovem, de cabelo curto e jeans, ainda mais nova, falava ao celular: "Já votou, mãe? Serra, né? Deus te ilumine."
O projeto teocrático para o país tinha ganhado um fôlego com o engajamento de Ratzinger na semana final da campanha, em ligeiro desrespeito ao princípio da não intervenção previsto na Carta da ONU. O Vaticano não integra a ONU, mas esse princípio tem a natureza de direito internacional geral...
Mais atrás, uma senhora falava de um hospital público e do diretor que desviava equipamentos: "Rico honesto, pode até existir." Também se tratava de uma questão de fé.
Votei. Mais tarde, minha cunhada, que havia assistido a missa em uma igreja perto de um condomínio da Barra, contou que o padre, no fim do ofício, deu a notícia de que o PT havia ganho a eleição. Poderia haver dúvida: é de lembrar que, no sábado, Índio da Costa tuitou que pesquisas "internas" haviam dado empate técnico. Uma pessoa muito solitária aplaudiu, e o restante dos fiéis ficou consternado.
Eu estava em um bairro tucano. O mapa da votação no Rio mostra que Serra, no Município do Rio, só ganhou na Zona Sul, no Alto da Boa Vista (a região mais fria) e na região da Barra (em São Conrado, onde está a Rocinha, ele perdeu). Por sinal, a vantagem de Rousseff sobre Serra no Estado do Rio de Janeiro foi suficiente para anular a que ele teve no Estado de São Paulo, o que torna ainda mais ridículo o papo de certo comentarista da tevê/jornal/internet/rádio da Globo (que continua a gozar de seu oligopólio dos meios de comunicação) de que temos um país "dividido".
E se houvesse divisão, e o PT houvesse vencido por apenas cem mil votos, e não mais por mais de doze milhões? Problema nenhum, é a regra do jogo. Entende-se facilmente o inconformismo do comentarista de poucas luzes e muitos flashes: somente os democratas aceitam as divisões e a pluralidade.