O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 27 de maio de 2017

Desarquivando o Brasil CXXXVII: Diretas Já, hoje e nos anos 1960

Enquanto o atual ocupante da cadeira presidencial permanece na parcela não encarcerada do PMDB, direitos humanos são desfeitos, legislação favorável ao crime é aprovada (em especial o incentivo aos crimes ambientais, que são, muitas vezes, os facilitadores do agrobanditismo), a divisa das Diretas Já, rejeitada por tantos em 2016, inclusive da esquerda, ganha mais força neste ano.
O tremendo retrocesso político do presente acaba, pelo que vejo em 2017, por suscitar comparações com épocas mais abertamente autoritárias. Houve mais de um momento, na história do Brasil, de clamor por eleições diretas para a presidência da república (por exemplo, em 1945, apesar do Queremismo...). O golpe de 1964 acabou gerando algum deles, embora a maioria não esperasse que aquelas eleições seriam suspensas, muito menos que a suspensão duraria até 1989.
Como se sabe, o golpe teve natureza civil-militar, mas, ao contrário do que os golpistas civis esperavam, as Forças Armadas não quiseram deixar o poder após derrubarem João Goulart. Carlos Fico bem explica que políticos como Carlos Lacerda esperavam que Goulart fosse afastado do caminho para que eles concorressem com mais chance à presidência nas eleições que ocorreriam em 1965. No entanto, os militares decidiram permanecer no poder e, desta forma, acabaram com as chances de civis ocuparem a presidência. Fizeram-no abolindo as eleições diretas para presidente e vice-presidente por meio do Ato Institucional n. 2, em 1965. Os partidos políticos golpistas, aliás, foram dissolvidos pelos militares, que forçaram o sistema político ao bipartidarismo com o AI-2. O multipartidarismo somente voltou com Figueiredo, no último governo da ditadura militar.
Ademais, golpistas civis que poderiam ameaçar o projeto de poder dos militares foram cassados, como o próprio Lacerda. Devido a esse visível rompimento entre o que se esperava do golpe e o regime que a ele se seguiu, bem como à situação de poder dos militares, é adequado chamar a ditadura de militar, e não de "civil-militar", diferentemente do golpe. Por isso, em 1969, quando o jurista e vice-presidente Pedro Aleixo deveria ter assumido a presidência, com a incapacidade de Costa e Silva, a trinca militar deu novo golpe e assumiu o poder até que os militares, em seus processos internos e opacos à sociedade, escolhessem qual deles tomaria o poder.
O AI-2 foi, portanto, um momento de grandes definições. As eleições indiretas para presidente e vice-presidente da república foram realizadas por um Congresso expurgado de nomes incômodos para o regime e sempre ameaçado de ser fechado ou de sofrer novas cassações, e com um direito eleitoral bem casuístico, cujas regras eram alteradas para dar maioria ao partido de sustentação do regime. Esse quadro significava nada menos que os militares escolheriam o chefe do Executivo e que os políticos apenas aceitariam a escolha prévia, para não dar tanto na vista que o regime era ditatorial.

O ato institucional n. 3 ampliou a cassação coletiva sofrida pelo povo brasileiro, eliminando a eleição direta para governadores e seus vices, bem como para prefeitos de capitais.
Como se tratava de uma ditadura, ao contrário do que sustentam essas teses que afirmam que algo parecido só teria vindo com o AI-5, ou que nunca teríamos tido algo desse tipo, tais decisões drásticas eram tomadas a portas fechadas pela alta cúpula do governo.
A ata correspondente da 34a. sessão do Conselho de Segurança Nacional, ocorrida em 5 de fevereiro de 1966, revela alguns aspectos da discussão travada na alta cúpula ditadura.
Na discussão, o ministro do planejamento, Roberto Campos, defendeu que o ato institucional não previsse um prazo para as eleições indiretas para os Estados e para as prefeituras de capitais, que se pensava estender até 15 de março de 1971.

A razão é que, em se estabelecendo a limitação do tempo, estaríamos dando um caráter de um expediente, ao invés de dar o caráter de experiência. O que se vai fazer, no caso, é a experiência de eleição indireta de Presidente da República, Vice-Presidente e Governadores; e o futuro dirá se essa experiência foi ou não útil.

É interessante ver como aquele tecnocrata pensava a sociedade com essas categorias da ciência experimental. Também no plano metodológico, ele era antidemocrático.


O Secretário do Conselho de Segurança Nacional concordou: "Se limitássemos o prazo, tiraríamos a força dessas disposições". Anos depois, ele, Ernesto Geisel, presidiria o país.
O ato institucional foi editado sem aquela limitação temporal e aquela "experiência" continuou. Em 1982, somente, voltaria a eleição direta para governadores.
Continuaram as cassações. Em 28 de outubro de 1966, Lacerda lançou o manifesto da Frente Ampla, defendendo a realização de eleições livres e diretas. Em novembro, Juscelino Kubitschek aderiu oficialmente à Frente e, João Goulart, em setembro de 1967. Vejam Lacerda afirmando que Jango não era mais o perigo e atacando os militares, que estariam entregando o país a grupos internacionais: https://www.youtube.com/watch?v=2OVZE87Z3Iw.
Como se tratava de uma ditadura, a Frente Ampla foi proibida pelo Ministério da Justiça em 5 de abril de 1968: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/Exilio/Articulacao_da_oposicao. Antes do AI-5...
As manifestações de rua de 1968 tinham a volta das eleições diretas como uma de suas bandeiras.


Com o AI-5, imposto em 13 de dezembro de 1968, a defesa das eleições diretas, que alguns agentes políticos fizeram desde o governo de Castello Branco, tornou-se pretexto para cassação política, o que também pode ser constatado nas discussões secretas do Conselho de Segurança Nacional. Tais cassações, decididas com base nos poderes dos atos institucionais, não podiam ser revertidas pelo Judiciário - muito pelo contrário, esse Poder também foi atingido por elas, ao contrário do que pretendem os juristas que afirmam que os militares respeitaram esse Poder.
Aqui, por sinal, pode-se ver uma lista que fiz de magistrados cassados: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2014/12/desarquivando-o-brasil-xcviii-juizes.html.
Logo acima, vê-se trecho da 45a. sessão do Conselho de Segurança Nacional, em 16 de janeiro de 1969. Com os poderes do AI-5, entre os deputados federais que foram cassados estava Paulo Macarini, do MDB de Santa Catarina. Vejam que seu prontuário elaborado pelo SNI registrava, entre outras ocorrências consideradas subversivas, que era "Defensor das eleições diretas" e que sugeriu uma manifestação em prol das eleições diretas aos parlamentares que participavam do V Congresso Brasileiro das Assembleias Legislativas.
Não contei quantos dos cassados tinham anotações análogas, mas são vários. Protestar contra a cassação da soberania popular tornou-se um pretexto para a cassação.
Já escrevi neste blogue sobre a nomeação dos prefeitos dos Municípios que eram considerados de interesse da segurança nacional. A lei n. 5449, de 4 de junho de 1968, elencou diversos deles, mas outros foram incluídos posteriormente por meio de decisões casuísticas tomadas nas reuniões do Conselho de Segurança Nacional. Em alguns casos, tratava-se de áreas em que o partido de oposição ganhava as eleições... Aluízio Palmar, nos Documentos Revelados, destacou um recorte que mencionava, em 1979, que os Municípios paranaenses que ficavam na faixa de fronteira e, portanto, se enquadravam como de interesse da segurança nacional, haviam resolvido pedir ao General Figueiredo a realização de eleições diretas: https://www.documentosrevelados.com.br/midias/recortes/imprensa-regional/municipios-da-faixa-de-fronteira-pedem-eleicao-para-prefeito-2/
Já se trata, porém, de outra época, sobre a qual talvez escreva aqui, sendo ou não aprovadas eleições diretas no Brasil neste ano em que a soberania popular está sendo tão vilipendiada.
Neste domingo, dia 28 de maio, em Copacabana, haverá apresentações artísticas pelas Diretas Já com, entre outros, Caetano Veloso: http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/05/caetano-veloso-mano-brown--criolo-outros-artistas-se-apresentam-em-ato-por-eleicoes-diretas

Os documentos secretos do Conselho de Segurança Nacional aqui citados estão no Arquivo Nacional e podem ser baixados do Portal Memórias Reveladas: http://base.memoriasreveladas.gov.br/mr/seguranca/Principal.asp

quinta-feira, 18 de maio de 2017

O escritor anuncia

O escritor anuncia na tevê:
inventou o alfabeto.

A humanidade não estava preparada para isso,
mas este é o papel dos grandes artistas,
despreparar a humanidade.

Dizem que o ex-presidente dos EUA vai escrever uma autobiografia com o título “Dias Brancos na Casa”. Vou apresentar um projeto para lançar um livro com o mesmo título assinando com o nome dele. A esquerdalha não vai gostar, a editora reaça topa, ela sabe onde está o dinheiro. Não tem problema sair com nome de outro. Completei trinta mensagens neste mês. Em duas não mencionei meu nome, mas foi por motivos estilísticos.

Nas redes sociais, o escritor anuncia:
inventou o livro,
as vendas on line,
a lista de best-sellers.

Jamais a humanidade
estará à altura dessas notícias,
por isso os escritores criam o analfabetismo.

Lançamos “Dias Brancos na Casa”. Boa parte do público não sabe o que quer dizer pseudônimo e compra o livro, e a minoria que sabe compra por causa do escândalo. Minha literatura realizou a democracia, alcança a todos. Na minha modéstia autoral, permaneço anônimo. Escrevi vinte e oito textos sobre mim neste mês. Não assinei três por razões de suspense.

O escritor decreta
que inventou a sátira,
mas não quem caiu dentro dela.

Novamente reclama da tevê do silêncio absoluto sobre seu livro.
Vocês não sabiam que a escrita
nasceu para registrar operações comerciais?
Venda de carneiros e escravos?

Como é que foram censurar o livro? Gente ignorante em democracia e em literatura, que é feita para todos. A justiça se curvou ao imperialista ianque. O juiz ainda disse que o livro poderia causar um diferendo internacional entre Brasil e Estados Unidos se a editora do ex deles não conseguisse me proibir. Nenhum dos livros que assinei causou tanto escândalo, da próxima vez vou tentar fazer um relatório da vida sexual no Vaticano.

O escritor anuncia na publicidade:
o governo caiu,
meu livro era sobre o governo. Portanto...

A política não estava preparada para ouvir isso,
mas este é o papel dos grandes escritores:
não tolerar nada que os supere.

Consegui a liberação, mas a Justiça revelou que eu era o autor. Mais um escândalo, vai vender mais. Vou processar a Justiça por ter feito isso. Vocês todos no público têm o dever de esquecer que fui eu que escrevi, ouviram?! Sou contra a censura. Estou defendendo o direito ao anonimato neste mundo de tantas vigilâncias concretas e virtuais! E daí? O público não lê críticas. Eu sei que a capital dos Estados Unidos não é New York, e sim outro lugar. Os erros, as redundâncias, a monotonia são do pseudônimo, não são meus. Como assim o livro deixa os bombardeios pueris e até simpáticos? Não me pergunte onde fica o Pentágono! O livro é do pseudônimo, não falo mais disso.

O escritor revela à humanidade
que se alimenta;
para iluminá-la, abre sua cozinha
para programas culinários.

Ele assumiu a junk food,
mas não soube lidar com os ingredientes,
o livro provocou indigestão e desnutrição.

Não, eu sei que é genial. Eu me comparo mais com Fernando Pessoa, que marcou o século XX dizendo que o poeta é um fingidor e criando heterônimos. Eu marquei o século XXI reduzindo o presidente dos Estados Unidos a um mero pseudônimo meu, algo que os poetinhas esquerdistas que me criticam jamais conseguiram fazer. Nunca um escritor levou a literatura a um patamar tão alto. Meu próximo projeto intervirá ainda mais fortemente na geopolítica, que eu transformei num mero anexo do mercado editorial. Não sou de esquerda nem de direita, eu estou no topo.

Em Nova Iorque,
o escritor fará seu último anúncio;
escravos commodities? política junk food? analfabetismo best-seller?
os jornais também não sabem o que virá,
esperamos no salão a próxima obra,
até que se abre a porta, e uma bomba no Oriente Médio
devolve o salão aos elementos primevos.


quarta-feira, 17 de maio de 2017

Consistência, Enzensberger

Tentei algo como uma tradução de um poema de Hans Magnus Enzensberger, do livro Zukunftsmusik, de 1980, republicado na antologia Gedichte 1950-2005. Ele emprega imagens que servem tanto para os minerais quanto para o pensamento; curioso é que a caracterização desse pensamento mineral seja feita principalmente de negativas e, por isso, acabe aludindo à resistência.


Consistência


O pensamento
atrás dos pensamentos.
Um seixo, comum,
puro, duro,
não à venda.

Não se dissolve,
não se põe
em discussão,
é o que é,
não aumenta nem diminui.

Incomum,
não colorido, com veios.
Não novo nem velho.
Não precisa de justificativa,
não exige fé alguma.

Não sabes de onde
o tens, aonde
ele vai, para que
serve. Sem ele
serias pouco.