O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

"Desde quando governar foi algo mais do que comer carne humana?"




Os advogados da União
lograram impedir
que se chamasse o presidente de pedófilo

com várias liminares, e em nenhuma delas
encontrávamos um país.

"Não fui eu que matei, eu não conhecia a mulher, eu nem sabia do meu vizinho que a matou e da filha dele que namorou meu filho, nem da casa minha que ele visitou antes da execução!"

Os advogados da União
tinham se dedicado a impedir
que o presidente a dizer que tentara comer carne humana
não fosse ouvido a dizer que tentara comer carne humana,

eis que havia o risco jurídico de os eleitores do presidente
acreditarem no que ele diz.

"Eu já me preparava para a presidência! Desde quando governar foi algo mais do que comer carne humana? É por isso que não existe fome no país."

Os ministros da União correram para socorrer a campanha do presidente
alegando que as emissoras que não existiam mais
e aquelas que nunca existiram
deixaram de veicular propaganda do presidente,
razão pela qual deveriam ser fechadas
e obrigadas a distribuir a aludida propaganda.

"Eu não matei ninguém, eu só regulamentei o acesso às vias atmosféricas para quem preenchesse os requisitos."

Os ministros da União apressaram-se para auxiliar
os coordenadores da campanha do presidente
que balearam a polícia e jogaram bombas

limpas, honestas, completamente éticas
como todos os ralos da presidência.

"Por que não votam em mim, eu que levei água para salvar aquela gente dos rincões dos grotões daqueles locais de onde nada de bom poderia sair."

Os empresários da União financiaram
a compra de outro povo para o presidente
a ser entregue digitalmente durante os turnos das eleições

e, se necessário, de um fundo falso
em caminhão de carga internacional.

"Nesses merdas só atirando, esperem só eu aprender a destravar a arma, enquanto isso mando chutar, fazer feitiço, sei lá, vou arrebentar essa gente sem família e sem pudor, quero ver quem diz no pau-de-arara que não sou cristão."

Os promotores da União
não viram problema no fato de que o vídeo do atentado
já estava pronto na antevéspera dos tiros
uma vez que esses tristes eventos repetem-se amiúde na cidade.

"A justiça proibiu que digam que o assassino tem fotos e filmes comigo! Porque é mentira! A justiça proibiu também que divulguem as fotos e filmes do assassino comigo! Porque nosso compromisso é com a verdade, mas não com qualquer uma!"

Os médicos da União
receitaram o genocídio
para curar o país da infecção chamada povo

que insistia em respirar
apesar das vedações militares aos pulmões,
órgãos subversivos para a segurança nacional.

"Eu não escondi nada, em cem anos você vai saber quem eu comprei para comer no dia 13 de maio, em cem anos você vai saber quanto custou a maquiagem do pastor e quais são os preços da quimioterapia, a gente está numa democracia, todo mundo tem que ter paciência."

Os juízes da União
proibiram o país
eis que ele causava efeitos psicológicos negativos para o presidente,

criava inverdades e suposições 
de que o país realmente existisse
e não pudesse ser carregado na garupa da moto.

"Eu ando mesmo de jet-ski porque eu já disse que não matei aquela mulher nem fico mostrando minha hemorroida para qualquer um, assim você me ferra, não faz pergunta difícil, no quartel a gente corta a grama, não corta as cabeças, no país é diferente."

Os advogados da União
lograram pedir
que se chamasse o pedófilo de presidente

eis que a presidência
tão pequena
cabia dentro da medida liminar

pequena
ainda menor do que aquelas
que o coração do presidente
desejava depois dos tiros

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Fazer o L com Livros

A cadeia do livro envolve diversos trabalhadores. A ascensão da extrema-direita ao poder no Brasil prejudicou-a bastante, seja diminuindo as compras governamentais, seja arrasando os investimentos em cultura e educação, seja perseguindo os profissionais envolvidos.

Lembrem-se, por exemplo, dos ataques sofridos por Julián Fuks neste ano, que incluíram ameaça de morte (que faz parte do repertório de ação usual da direita no poder), por conta de uma de suas poéticas crônicas no Uol. Elogio o Uol, por sinal, por não ter abandonado o escritor, ao contrário da Deutsche Welle, que, em episódio semelhante sofrido por João Paulo Cuenca em 2020, cedeu às pressões bolsonaristas e rompeu o vínculo com o ficcionista, que depois sofreu assédio judicial.

Livros, já os carreguei, escrevi, revisei, traduzi, organizei, vendi. Um certo tipo de escória começou a falar mal dos trabalhadores de livro por conta de autores que resolveram "fazer o L" com suas obras, ou seja, anunciar o voto em Lula. Faz sentido que se declare voto no Partido dos Trabalhadores com seus instrumentos e/ou produtos de trabalho.

O próprio presidente Lula tem reforçado esta pauta na campanha:

Lembremos também que a extrema-direita brasileira, em seus esforços cognitivos, só tem conseguido identificar a cor da capa dos livros de seus autores preferidos, mas sem lograr decifrar ou lembrar dos títulos das obras. É verdade que nunca defenderam o direito à literatura.

Por essa razão, é interessante que as pessoas envolvidas com a produção de livros posicionem-se. No sábado, 22 de outubro de 2022, estive com Fabio Weintraub para ver uma feira de livros na Biblioteca Mário de Andrade; Cida Moreira apresentou-se no âmbito do evento com um repertório de mais de um século de música brasileira, incluindo modinhas imperiais. Fomos lá também porque a Editora Nós havia chamado para um ato de apoio a Lula do lado de fora da Biblioteca.


Não havia muita gente, de fato; falei com Fuks e Maria Rita Kehl. Fora de lá, no centro de São Paulo, no entanto, vi muito mais gente com adesivos ou bonés ou camisetas do PT do que em qualquer outro dia, afora os atos de campanha. Achei muito bom, pois continua bem vivo o medo de ser agredido ou morto por apoiar a oposição no Brasil. Trata-se do efeito da estratégia Sturmabteilung (a milícia nazi) que a extrema-direita brasileira copiou, na descentralização das funções de assédio e censura, que não precisam necessariamente ser assumidas pelas instituições do Estado pois os militantes do "líder" (traduzo do alemão) assumem-nas, seja com seus telefones celulares, seja com seus fuzis.

Todos os livros que escrevi e publiquei "fazem o L", gesto que significa não exatamente um compromisso com um partido específico ou com o presidente Lula, mas o necessário apoio à democracia no Brasil. Digo isso também das obras que não consegui publicar neste país, como este ensaio de 2009, "Para que servem os direitos humanos?". Gostaria de lembrar deste trecho:

Como sempre, cliquem na imagem para ampliá-la. Trata-se de uma das poucas referências no livro ao Brasil; eu a fiz como exemplo de uma cultura jurídica isolacionista (que me deu uma rasteira na semana passada, aliás) e contrária à dignidade humana que se fecha ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, seja o ignorando, seja distorcendo sua aplicação. No caso, mencionei o papel do Poder Judiciário e do Ministério Público na violação da Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. 

As duas instituições colaboraram ativamente na geração da atual crise no país. Esse tipo de provincianismo jurídico em prol dos crimes de lesa-humanidade foi eleito em 2018, logrou conferir mandatos políticos em 2022, porém deve perder no segundo turno das eleições de 2022.

O meu próximo livro, "Assassinato e ascensão do grande escritor (seguidos de antologia completa)" (nos dois últimos dias de campanha de financiamento coletivo), também "faz o L":


quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Campanha de vinte anos de poesia: Assassinato e ascensão do grande escritor

Em algum momento de 2022, completei vinte anos de estreia em livro. Provavelmente só consegui fazê-lo naquela ocasião, e com este volume, "O palco e o mundo", porque o editor era Vitor Silva Tavares. No Brasil, certamente não teria encontrado ninguém para publicar isto naquela época. Alberto Pimenta, sobre quem eu já tinha escrito, fez a intermediação com o Vitor e a apresentação, que muito me honrou. Eis a capa de Gunilla Lervik, no formato típico da editora &etc, o quadrado:



Em geral, os poetas são afoitos e têm que esconder a estreia depois, porém não tive esse problema: felizmente, só comecei a publicar aos 31 anos. Não me envergonho deste primeiro objeto incômodo (para outros; para mim, é divertido) que publiquei.

Triste que Vitor, que tinha esse tipo de coragem editorial de lançar autores estrangeiros inéditos e obscuros (além disso, como sempre, ele não ficava com nada dos direitos autorais), tenha morrido anos depois e a editora (que era uma extensão dele, como um braço, com que agarrava objetos perdidos e os jogava na cara do mercado literário português) tenha sido fechada.

O aniversário, é claro, não tem realmente importância; mas, como Fabio Weintraub está a completar 20 anos de lançamento do seminal "Novo endereço", tive a ideia de fazermos uma campanha conjunta. Daí saiu a campanha "Vinte : Dois":



Achamos que a efeméride, bem modesta em um ano de centenário da Semana de Arte Moderna e da criação do PCB, e do bicentenário da independência do país (que se consumou poeticamente na tentativa falhada do chefe de Estado de puxar um coro de "imbrochável"), justificou chamar os leitores a participar de uma campanha de financiamento coletivo destas edições especiais: https://benfeitoria.com/projeto/vintedois

A Editora Patuá, que já nos publicou antes, aceitou levar adiante a campanha. Já temos 103 subscritores: muito obrigado a vocês e aos que ajudaram na divulgação! Os livros terão que sair, mesmo que não atinjamos a meta: quem contribuir em muito ajuda a publicação. Ainda faltam oito dias, creio que chegaremos mais perto do que os atuais setenta e nove por cento.

A reedição de "Novo endereço" trará novo aparato crítico (além da apresentação original de Priscila Figueiredo, incluir-se-ão textos de Eduardo Sterzi e Gustavo Silveira Ribeiro) e materiais artísticos produzidos para esta edição (além da foto original de Mário Rui Feliciano, teremos arte de Fernando Vilela, Renato Moriconi e Ronaldo Polito). 

Lembro quando o li pela primeira vez, antes do evento de lançamento em São Paulo, a que não fui, por sinal. Morava no Rio de Janeiro, e foi a única vez em que perdi a estação em que iria descer no trem (Madureira), pois fiquei absorto lendo os poemas, que eram realmente algo novo na poesia brasileira.

Resolvi aproveitar o aniversário da estreia para lançar um livro novo que tenho concebido há, digamos, mais de duas décadas, e a que só agora, creio, tive a capacidade de dar forma: "Assassinato e ascensão do grande escritor (seguidos de antologia completa)". Claro que é a história de um crime; afinal, trata-se de poesia. 

Falando em crimes, Fabio mostrou-me que um imbecil, em alguma rede social de que não me recordo, sentenciou que uma campanha chamada "Vinte : Dois" só poderia ter sido criada por apoiadores do chefe de Estado que está a contemplar impávido a destruição dos biomas brasileiros e a violar abertamente o artigo 231 da Constituição da República, entre muitos outros problemas jurídicos e políticos, que demandam uma enciclopédia da abjeção.

Evidentemente, uma afirmação desse tipo teria que ancorar-se firmemente na ignorância completa do que Fabio e eu fazemos e escrevemos (meu livro sobre bolsonarismo, por sinal, foi publicado em 2019; termina com uma tentativa de fuga). É certo que o modelo de argumentação nas redes sociais (na verdade, a ética das redes) é o uso da própria ignorância como fonte de autoridade ("nunca vi...", "nunca li..." e daí tenta-se provar que o objeto da ignorância do sujeito não existe; não deixa de ser filosoficamente interessante). 

No entanto, eu já tinha publicado este vídeo, que mesmo pessoas com esse estilo mais ou menos suave de analfabetismo podem entender: