O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

"Como a atividade política voltou a se aparentar com os cemitérios"





I

Caído na calçada.
No chão, de frente, a cara.
Sangue. Mancha na máscara.

Caiu perto do bueiro,
que vê nele um espelho.
Como se pode erguê-lo?

Atravessara a rua.
Caiu. Agora sua.
Sozinho não se apruma.

Não sei quem o derruba.
Muitos, agora, a vê-lo.
Porém ninguém o encara.

Longe, tocam os sinos.
Se o derrubou o vírus,
talvez sejam do enterro.

Perto, ouvimos balas.
Agora se percebe:
a culpa foi do verme,

que vive dos caídos
(de todos nós, em suma)
quando o país não se ergue.


II

Um verme montou no país:
"ande, jumento, não reclame;
você nem sabe o que fiz,
quero estar OK em Miami".

O jumento lamenta a carga:
um verme, porém tão pesado.
Fora um país até as patas
aceitarem levar o fardo.

Pedras e grama do caminho
gemem sob o jumento e o verme,
sucumbem ao peso inaudito;
árvores caem, o chão cede

pois cada passo abre uma cova,
na cova mil valas germinam,
cada passo um dia demora
pois os mortos medem o dia.

Fundem-se ossário e calendário
quando o caminho é retrocesso
e os massacres são o pedágio.
O verme montou no jumento

para chegar a seu destino
de se transformar num país.
Já morre o jumento sem tino.
Mas num corpo o verme é feliz.


III

O vírus usa farda,
resultado de mutações
desde ao menos Canudos.
Morreram camponeses
idosos, jovens e crianças.
Só era imune o latifúndio.

O vírus usa farda.
Contamina com bombardeios.
Na ditadura de ontem
devastou mil aldeias.
Hidrelétricas e garimpos
investem vacinas na Suíça.

O vírus usa a farda
pendurada no pau de arara.
Mas não o genocídio,
que anda nu e tranquilo
como os animais, sem pudor,
um eterno recém-nascido.


IV. Arendtiana

Como a atividade política voltou a se aparentar com os cemitérios, o joelho nos pescoços negros tornou-se instituição, e o verme, um herói nacional.

O ser humano que hoje se engaja publicamente na causa do verme perde-se porque sua expressão se venaliza. Os militares e os juízes queriam continuar sendo Estados dentro do Estado e acharam tolamente que o governo dos vermes ser-lhes-ia mais útil do que a república.

O Verme ao país: "amo-o porque você desconhece minha natureza, e esse desconhecimento age na impossibilidade dos acontecimentos. Desejo servi-lo com meus intestinos e possuí-lo integralmente para depurar a terra".

As mentiras da propaganda do verme não querem só a morte, mas acabar com a distinção entre vivos e mortos, cobrindo-os todos sob a mesma putrefação.

Qualquer diálogo com o verme é completamente insensato, como discutir com o vírus se ainda existem pessoas no país, e ele matar todas para provar que estava certo.

O vírus é, na terra do verme, um fim em si mesmo porque contém inteiramente a morte, sem referência a outras armas.

Raras vezes na história um país se identificou tanto com uma doença. Indignado, o verme mandou infectar a história.

O Brasil tinha o impressionante histórico de não extraditar vermes. 


sexta-feira, 10 de julho de 2020

Dez anos do blogue, um cantinho para leituras

Em junho de 2020, dei uma olhada na coluna à direita e me deparei com o fato desolador de que comecei este blogue em 2010, em 10 de julho, com uma nota sobre o poeta e jurista Julián Axat (um belo início, Axat é genial). Dez anos a completar. Por que continuei com isto?
Eu tive de ser convencido por gente muito próxima a iniciar um; eu não cogitava entrar neste exercício de escrita em razão, francamente, da preguiça: se ninguém iria ler, por que se dar ao trabalho de criar uma coisa dessas? O mesmo raciocínio que me levou a adiar a escrita de um romance até 2017 (publiquei-o em 2019).
A premissa do raciocínio não estava errada, claro. Mesmo assim, eu me enganava: não importa realmente que as pessoas não leiam, elas façam o que quiserem; o que importa é se ainda quero escrever algo neste veículo, que é útil para mim: o blogue serve para, na luta com a forma, pensar um pouco e para rascunhar textos. Trata-se um pouco da experiência de pensar com os outros, o exercício de escrever para um auditório potencial (nem precisamos pensar na teoria da retórica para sentir isso). Nisso, pode haver alguma alegria.
O blogue serviu até mesmo de rascunho para textos alheios, como as referências a documentos sigilosos da ditadura que fiz aqui e levei depois para os relatórios das Comissões da Verdade do Estado de São Paulo e da Prefeitura de São Paulo. Muitas vezes, porém, não consigo melhorar o que esbocei aqui, como o provaram Canção de ninar com fuzis e, em menor escala, pois tinha bem mais material inédito, O desvio das gentes. Evidente que, para ficar muito melhor, precisaríamos de outro escritor...
Acho improvável que o blogue sobreviva a mais dez anos, mesmo que, nesse tempo, eu mesmo não desapareça e que, ademais, continue apto para escrita, porque as virtualidades são muito efêmeras. Como o século XXI já é o das calamidades e dos acidentes globais (Virilio ainda será repensado, imagino), nem mesmo vejo como contar que essas coisas não se percam completamente ou não sejam apagadas, ou que alguma alteração no modelo de negócios na internet decrete o fim destes cantinhos para a leitura. O espaço da internet é o da amnésia, ou, melhor, do apagamento. Também o da censura, seja do capital, seja do Estado, que provavelmente encontra um meio muito mais propício na internet do que nas bibliotecas e discotecas físicas.
Um cantinho para... leitura? Sim, apesar da estupidez militante e/ou institucional do meu país; não precisamos nem lembrar desta nova temporada da série violenta e fracassada dos militares no poder, com o espetáculo de sandices que, no entanto, é tão representativo do Brasil. Nem mesmo é possível publicar algo como um Febeapá ("Festival de Besteira que Assola o País"), nos moldes do que Sérgio Porto criou, com três volumes de crônicas assinados como Stanislaw Ponte Preta, sobre o estado de coisas sob a ditadura militar. No bolsonarismo, o caráter enciclopédico de uma tal empreitada exigiria uma equipe numerosa. De 1964 para cá, muita coisa se degradou, até mesmo a instituição que produz generais que não sabem o tamanho do Brasil e da Europa, tampouco onde é traçada a linha do Equador. Isso, lamenta-se, foi o melhor do que a direita e o capital conseguiram produzir neste anão diplomático em que eles transformaram o país. 
Em termos de registro do "Febolsoapá", que exigiria uma biblioteca infinita, minha última contribuição foi a nota sobre o secretário nacional de cultura: "Homofobia ou a porta de saída da cultura, Che Guevara, João Saldanha e Frias, novo secretário de Bolsonaro (Desarquivando o Brasil CLXIX)".
Não sei se este blogue consegue refletir sobre esta nova barbárie, ou se é apenas o reflexo dela. Gostaria de que fosse o primeiro caso. Mas cabe aos leitores julgar, e não os conheço. Quem lerá? Isso é um mistério. Muitas vezes a maior parte das visualizações deste blogue vem dos EUA; talvez nem todas sejam por acidente, pois há brasileiros, muitos, naquele país.
Sempre há alguém que dê uma olhada no que escrevemos, o que traz responsabilidade, embora não imaginemos quem o seja, o que gera surpresas. Tive vários exemplos que mo confirmaram, como o de uma nota que escrevi sobre o recital da obra de um(a) certo(a) autor(a). "Postei" a ligação em certa rede social e a pessoa envolvida apôs um coraçãozinho. Era algo completamente excepcional, ter recebido essa atenção; não foi isso que me espantou, porém, pois em geral os autores só divulgam ou gostam de algo daqui quando trato deles mesmos (não posso pretender que as resenhas que rascunho gerem muito interesse crítico). A revelação para mim, aconteceu depois, quando descobri, em conversa pessoal, que a pessoa não sabia que eu tinha mencionado na nota os poemas apresentados (nem mesmo os recordava, algo realmente notável). Embora a tivesse marcado na rede social, não leu a nota que escrevi (que ainda vale, creio, para documentar aquele ponto da obra).
As redes sociais servem para isso também, fingir leitura; engana-se quem pensa que se limitam a veículos de disseminação de discursos de ódio e notícias falsas.
No entanto, outras pessoas realmente tomaram conhecimento daquela nota que fiz, e a finalidade de divulgar a poesia brasileira foi cumprida, dentro dos limites do alcance do que escrevo. O procedimento de jogar nas ondas garrafas com mensagens, se levar a alguma comunicação, será com terras desconhecidas. Isso me agrada.
Um cantinho; como isto é quase invisível, efêmero e, enfim, pequeno, merece respeito; por essa razão, convenci-me a escrever esta nota, apesar da imodéstia um pouco ridícula de pensar no aniversário de algo que nós mesmos fazemos.
O blogue acabou não tendo realmente um foco temático, seguindo o que desde o início avisei; afinal, ele não espelha meus conhecimentos, e sim minha curiosidade; há coisas sobre música (que só posso escrever na minha condição de ouvinte e, talvez, de tenor de coro). Algumas receberam atenção, como a homenagem póstuma que escrevi ao barítono russo Dmitri Hvorostovsky; claro que foi bastante lida por causa do renome mundial do grande cantor, que tive a sorte de ver ao vivo duas vezes. Há notas sobre literatura, evidentemente; algumas delas estão entre as mais lidas, com destaque para a entrevista que eu e Fabio Weintraub fizemos com Vitor Silva Tavares, o grande editor português, responsável, com Alberto Pimenta, pela minha estreia em livro (O palco e o mundo, claro). Nós a fizemos em 2007, eu a publiquei aqui em 2012. O veículo onde ela saiu originalmente desapareceu, exemplo da efemeridade das coisas virtuais. 
No blogue, claro, estão diversos diversos textos sobre Alberto Pimenta, o maior poeta vivo da língua portuguesa, inclusive o ensaio sobre a inexistência desse autor, publicado pela primeira vez em 2002 em outra revista on line que desapareceu. Resgatei o texto em 2010 para o blogue; em 2004, publiquei-o em versão ampliada na antologia A encomenda do silêncio, ainda a única da poesia de Pimenta publicada no Brasil. Dos vários escritores brasileiros, o texto que escrevi sobre o poeta Zeh Gustavo é o mais consultado.
No campo do direito, há várias notas, sempre sobre aqueles campos ou temas que foram alvo de minha escrita acadêmica: direito urbano, teoria do direito, direito internacional público e justiça de transição e, sempre, direitos humanos, que foi a via que encontrei para entrar no assunto dos direitos dos povos indígenas, a quem o governo Bolsonaro resolveu negar até mesmo a água potável, enquanto o genocídio se acelera com a invasão de vírus, mineradoras e grileiros. 
Sobre o último tema, recordo especialmente a palestra que dei em um seminário, "Memória, Verdade e Justiça: Passado e Presente na América Latina", organizado em contraponto ao convite que a FFLCH/USP fez a a um político que os movimentos indígenas já haviam chamado de genocida, e que deu assessoria na construção da nefasta Usina de Belo Monte: "Desarquivando o Brasil CXXXVIII: Ações anti-indígenas de Delfim Netto". O evento do poderoso personagem tinha muito mais público, evidentemente, apesar da presença de nomes como Amelinha Teles e Adriano Diogo, militantes históricos da esquerda brasileira, no seminário de que participei.
Essas notas de ordem jurídica, não as concebo para o público especializado. Outra recordação, a propósito, da imprevisibilidade do público: fiz com Joana Brasileiro a curadoria de uma exposição sobre documentos da campanha da anistia dos anos 1970. Um(a) professor(a) especialista no tema de justiça de transição ficou muito intrigado(a): como é que eu teria conseguido encontrar aqueles documentos? Euzinho? Bem, essa pessoa seria o público especializado e, como escrevi artigos acadêmicos a partir desses documentos, essa fala me alertou para a possível irrelevância da minha pesquisa; tenho refletido nisso.
Porém, com o público geral, para quem escrevo estas notas, talvez haja, de fato, alguma circulação desses textos, e certamente essas pessoas já notaram que comentei e/ou reproduzi centenas desses documentos, que, em regra, não foram analisados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV): tanta coisa ficou de fora, prefiro me concentrar nas lacunas. Na verdade, o trabalho das comissões da verdade, iniciado tão tardiamente no Brasil, NUNCA foi devidamente concluído; há muito ainda a investigar e descobrir embora o governo federal e os estaduais e municipais não tenham, em regra, criado órgãos para a continuidade das pesquisa. Nessa omissão, muitas vezes violaram recomendações de suas próprias comissões, como é o caso do governo federal. A recomendação 26 do tomo I do relatório da CNV previu, com propriedade, o "Estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar seguimento às ações e recomendações da CNV", que teria, entre outros poderes, o de "monitorar o cumprimento das recomendações da CNV, com acesso ilimitado e poderes para requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do poder público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo, constituindo grupos de trabalho e pesquisa e instalando escritórios nas unidades federadas onde forem necessários". Nada disso foi criado, e Bolsonaro tem violado várias das recomendações do relatório. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", na segunda das recomendações de "medidas de memória e verdade", recomendou a "Criação da Comissão Permanente de Investigação dos Crimes da ditadura militar e suas consequências nas políticas atuais do Estado e na vida social". João Doria não realizou nada a respeito, Alckmin tampouco o fizera.
Boa parte desses textos sobre documentos que encontrei foi inspirada por algum assunto do momento. Provavelmente por essa razão, a maioria do material do blogue que jornalistas copiaram ou em que se inspiraram fortemente tratava de temas da ditadura.
Curiosamente, a nota que mais foi lida, a única com quase quinze mil visualizações (creio que a maior parte das visualizações seja meramente acidental; estimo que pelo menos um décimo desse número leu, porém, o texto) foi uma das que cruzava literatura com justiça de transição: "Desarquivando o Brasil CXXXIII: Raduan Nassar e a ditadura militar". Esse tipo de encontro de áreas é uma das coisas que sempre suscitaram asco em vários ex-colegas na academia (e eles venceram, devo reconhecer), mas continuo persuadido de que é necessário tratar do palco no mundo, e do mundo no palco. Não foi à toa que fui fazer o pós-doutorado em Teoria Literária na Unicamp (com a supervisão de Eduardo Sterzi, um dos maiores poetas brasileiros) para tratar de justiça de transição.
Ler, contudo, é realmente mais importante do que escrever, e um blogue também serve para ler os outros; não exatamente os comentários a meus textos, que não são frequentes, o que deve ser o resultado da necessidade de minha aprovação para que o comentário seja publicado (publico quase todos, inclusive os que me xingam; apago só os que conclamam ao extermínio de minorias e à pratica de chacinas, infelizmente não incomuns, tendo em vista a extrema-direita no poder) e das instabilidades do blogspot. O blogue representa uma oportunidade especial para ler outros; por isso, à direita, está a lista deles, configurada de forma que o último a ser atualizado apareça primeiro. A seleção que fiz apresenta blogues são de natureza diversa: alguns publicam textos com caráter de crônica; outros, de ensaios; alguns são de divulgação científica; há os literários... Esta modalidade de plataforma pode abrigar tudo isso, ela não se restringe a um gênero específico.
Desde 2013, dou-me o trabalho de fazer uma retrospectiva anual, sempre com um tema diferente. Claro que nunca faço algo ensimesmado como uma antologia dos textos do próprio blogue; em 2017, tive a ideia de fazer uma com referências aos textos de outros blogues, apresentados pelos meus breves comentários. Foi divertido fazer e pensar numa ideia de rede desses veículos - que, reconheço, é algo mais potencial do que efetivo, tendo em vista que prevalece, mesmo em autores que se dizem de esquerda (falsamente, claro), a cultura neoliberal de escrever como um "empreendedor", produzindo produtos para o mercado em concorrência com os outros. Gente assim não vai entrar em rede, salvo no espírito de oligopólios... Ou, quem sabe, no de "capital social"...
Algumas das notas deste blogue que pretendiam participar de alguma intervenção talvez tenham efetivamente ajudado na divulgação dos problemas concernentes, como uma das que escrevi sobre o Teatro Oficina e sua luta contra a sanha antiteatro e antiurbanística do grupo S. Santos: "O Teatro Oficina vs. o reino da Devastação: O Rei da Vela de Oswald de Andrade e o Condephaat". Felizmente, a mobilização do Teatro, que encontrou grande respaldo social, encontrou êxito. Não foi o caso de outras, como a de Pinheirinho, Aldeia Maracanã, da campanha contra Belo Monte... No entanto, creio que em todas estive no melhor lado. Pena que minha contribuição não pudesse ser maior do que eu mesmo.
Não sei se me surpreendeu em algum momento que, das séries que fiz aqui, como sobre educação, sobre direito urbano (a última foi em 2019, "Desbloqueando a cidade XII: O direito à cidade e a imaginação jurídica", com dois temas que me interessam provocar no direito, o da imaginação e o da cidade), aquela em que mais perseverei tenha sido a "Desarquivando o Brasil". Este nome foi dado a uma campanha de anos atrás de que participava, entre outros, a historiadora Janaína Teles; mais recentemente, foi o título de uma campanha virtual sobre justiça de transição, coordenada pela jornalista Niara de Oliveira, e a que resolvi aderir. Por causa desse campo, tive de criar a página no blogue sobre justiça de transição, que organiza um pouco os assuntos e indica os documentos em ordem cronológica. A série chegou em 3 de julho ao número 169, com o texto sobre a Secretaria Nacional de Cultura.
Continuo persuadido de que a questão do legado da ditadura é central para a sociedade brasileira. É claro que fracassamos redondamente nessas campanhas, a eleição de Bolsonaros, bolsobíblicos, bolsoliberais, bolsopistolas, bolsocítricos, bolsomotosserras e bolsogenéricos comprova-o. Nesse assunto como em outros, fiz neste blogue e alhures o papel de Cassandra. Lembrem que a primeira crítica ao 00 feita aqui data de 2011: "Sexualidades que se desviam da direita: Bolsonaro e a Medicina Legal". No fim de 2017, falei das consequências para a política e para a esfera pública dos bots, que foram tão importantes para as eleições do ano seguinte: "Filosofia política e robôs na internet: uma nota sobre democracia, notícias falsas, ilusões e políticas grosseiras".
Não estou sozinho, contudo, nessas críticas.
Enfim, é necessário tentar de novo para fracassar melhor... Não há como escapar de Beckett, se lidamos com literatura! E, provavelmente, também com a justiça. 
Lembro de uma carta da época do Nobel de Literatura para Beckett. Em 14 de novembro de 1969, ele escreveu a Stuart Maguiness (que havia indicado sua candidatura à Academia sueca) sobre o prêmio: "Tentei não ganhá-lo & falhei." Em ganhar há também um fracasso, naturalmente. No entanto, o oposto seria melhor? Ele continua: "Não sei se era certo aceitar. Provavelmente não existe certo nesta situação." É mais ou menos o que penso sobre continuar escrevendo, aqui ou alhures: não se devem superestimar fracasso e sucesso que, ademais, nem sabemos no que realmente consistem.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

A poeira é uma lei da rua

Um capítulo do meu romance Gravata lavada, de 2019, em homenagem à elite que, confortável no sofá, crê que a vida na rua é mais cômoda. 













sexta-feira, 3 de julho de 2020

Homofobia ou a porta de saída da cultura, Che Guevara, João Saldanha e Frias, novo secretário de Bolsonaro (Desarquivando o Brasil CLXIX)

Eu havia escrito, no ano passado, uma nota sobre a homofobia como porta de entrada do fascismo; não foi à toa que algumas das notícias falsas usadas com sucesso na campanha eleitoral de 2018 tivessem relação com a homossexualidade, tão mais difundidas quanto mais inverossímeis. Afinal, a inverossimilhança serve para reforçar o estigma na mente do preconceituoso. Com as injúrias homofóbicas, cultivadas também por políticos que fazem do cristianismo uma profissão, não se poderia deixar de esperar uma administração contrária a padrões decentes de dignidade humana. Algo parecido ocorreu com as declarações de campanha sobre mulheres, indígenas e negros.
Esta nota é derivada daquela outra, já que o governo continua e o problema não se resolveu.
O atual ocupante da presidência decidiu cortar o financiamento a filmes com temática LGBT em setembro de 2019, de acordo com Lauro Jardim. A homotransfobia não foi apenas tática de campanha, ela continua como ideologia de governo. J. Bolsonaro teria combinado o mesmo com a breve secretária especial de cultura, Regina Duarte, e com seu sucessor, Mario Frias, que nos revelou: "O patrão quer uma linha estética. E é essa linha estética que será privilegiada."
Essa afirmação, o Uol Notícias e Bruno Cavalcanti, no Observatório do Teatro, associaram à censura da temática LGBT. A ideia de que o governo federal deveria se curvar ao gosto de uma só pessoa é, por si só, abjeta e contrária à ideia de república. Que esse gosto se resuma a perseguição a minorias reitera a indignidade do governo, senão sua contrariedade ao direito, bem como sua hostilidade ao mundo da cultura.
Frias ainda não tomou posse, no momento em que escrevo; vejam o expediente do Diário Oficial do dia 2 de julho, com o indefectível erro de crase na última linha (repetido dezenas de vezes nesse dia) que cai tão bem nesta administração:


Frias há tempos tem dedicado suas redes à propaganda do governo, mas não o faz de forma realmente articulada; ao contrário do que se poderia esperar de um Secretário de Cultura, ou de um aspirante a esse cargo, ele nem mesmo escreveu um ensaio sobre a política cultural deste governo ou de qualquer outro. Por alguma razão que me escapa, ele parece ser mais eloquente com memes:


O absurdo de imaginar que o socialismo estivesse a atacar o Brasil, despautério multiplicado mil vezes pela fantasia de que o tal "President" estivesse a se sacrificar para defender a pátria brasileira (escrita com Z, claro), não parece prefigurar muita sensatez para a eventual gestão do futuro secretário. Momentos de infantilidade política como esse, que povoam as manifestações de Frias, chegam a colidir, noto aqui, com seu passado.
Relembro entrevista que o ator concedeu à revista Sui Generis, que surgiu no fim do século passado para cobrir temáticas ligadas aos homossexuais, com mais ênfase nos gays. Em 1999, o número com Cássia Eller na capa, além da matéria com a cantora, tinha outra, longa, com Mario Frias, com o singular título  "Sou espada, quer dizer, punhal!". O texto era de Heloiza Gomes com fotos do ator, algumas sem camisa, tiradas por Cecília Junqueira. Não vou reproduzi-las.
O curioso título reproduzia uma das falas do ator, que afirmou achar preconceito "uó", mas que "espada corta dos dois lados", então ele era "punhal", pois era "hetero assumido" [sic]; explicou ainda que era "cantado por homem para cacete. A bicharada me ama. E eu amo as bichas".
Outro ponto estranho para um ator: a entrevista não primou por análises da arte dramática, nem mesmo da sexualidade. Ele reclamou da barriga dos 28 anos, fez votos de ter cara de 33 aos 40 anos, e explicou que lia "bastante". Qual era seu livro de cabeceira? Che Guevara:


A homofobia de Che Guevara, ao menos, não era inteiramente compartilhada pelo jovem ator. 
A publicação citada era uma breve coletânea de pensamentos organizada por Emir Sader, e não exatamente um livro do revolucionário. Frias explicou ainda na entrevista que votou em Collor e em Fernando Henrique Cardoso duas vezes (sem saber, no entanto, se este era um bom presidente). 
Infelizmente, nada do que ele afirmou na entrevista de 1999 lograva erguer-se até o senso comum. Talvez somente uma pessoa ignorante da política, como ele mesmo se declarava, poderia combinar o amor por Che Guevara com opiniões como fazer campanha política era coisa para caras "feios, gordos e escrotos"... Guevara, um sex-symbol da revolução, provavelmente entrou como ícone jovem, uma figura de homem bonito e rebelde, como um James Dean. Ele foi consumido assim no século passado pela indústria cultural. 
Outro ponto inquietante da entrevista era a ideia de que a "revolução não se exporta". Ela teria que ser melhor explicada, imagino, levando não só em conta a biografia deste argentino que combateu em Cuba e foi executado lutando na Bolívia lutando em guerrilha, mas tendo em vista os escritos do autor; em Guerra de Guerrillas, por exemplo, temos a questão da solidariedade internacional e do exemplo de Cuba para os outros povos; e outros escritos, onde o internacionalismo aparece de forma clara, como "Mensagem aos Povos do Mundo, Através da Tricontinental" e "Criar dois, três... inúmeros Vietnams é a palavra de ordem", de 1967, que cito na tradução de Juan Martinez de la Cruz:
E é preciso desenvolver um verdadeiro internacionalismo proletário, com exército proletários internacionais, onde a bandeira sob a qual se luta se torne na causa sagrada da redenção da humanidade, de uma maneira tal que morrer sob as insígnias do Vietnam, da Venezuela, da Guatemala, do Laos, da Guiné, da Colômbia, da Bolívia, do Brasil, para não citar mais que os teatros atuais da luta armada, seja igualmente glorioso e desejável para um americano, um asiático, um africano ou até mesmo um europeu.
O texto foi recolhido em Revolução Cubana, publicado pelas Edições Populares. A formulação faz lembrar a do direito cosmopolita kantiano, porém sob bases materialistas e com a ação revolucionária no lugar dos direitos humanos. Poucos anos depois, a guerrilha urbana seria derrotada no Brasil. A rural, no Araguaia, com militantes do PCdoB, seria descoberta pela ditadura antes mesmo de começar: sua luta foi de defesa, e entre eles estão vários dos desaparecidos políticos dessa época.
Talvez o jovem Mario Frias não fosse, de fato, a pessoa que tivesse a visão mais esclarecida sobre o que aconteceu no mundo e no Brasil durante as décadas de 1960 e 1970. Deveríamos ter esperado tanto dele? Talvez não, embora tivéssemos toda a razão em esperar que as décadas que se passaram lhe tivessem trazido um melhor entendimento da história. Afinal, os atores existem na sociedade, cabe-lhes expressar, potencialmente, todas as visões de mundo existentes e até mesmo as que não foram formuladas ainda, porém se materializam diante da plateia. É uma profissão que consiste em dar sentido ao humano e, por vezes, ao não humano e, nisso, imagino que ela exija quase tanto quanto a do escritor, que deve inventar esses sentidos no texto.
Respeito muito os a(u)tores; obviamente, eles têm que ler, sentir e experimentar muito para poderem realizar com dignidade seu trabalho.
Teria a compreensão histórica de Frias se desenvolvido às vésperas de completar cinco décadas de vida? Receito que talvez não, ou não completamente. No campo do "preconceito uó", tememos que tenha piorado, em razão de sua adesão à "linha estética" do chefe. Em outros temas, é provável que também tenha regredido. Vejam a resposta do ator a esta consideração justa de Marcelo Courrege:



O antigo leitor de Che Guevara está, em radical negacionismo histórico, tentando desmentir o histórico de João Saldanha no Partido Comunista Brasileiro, o que é absurdo. Não vou falar de Bebeto de Freitas, que foi contrário ao boicote das Olimpíadas de Moscou, mas do antigo comunista.
Neste relatório do SNI sobre a "Festa do 63o. aniversário do PCB", na verdade uma série de atos, um dos personagens foi, evidentemente, João Saldanha.


Ele se apresentava como militante, por sinal. Não se tratava de segredo descoberto pelo Serviço Nacional de Informações.


Evidentemente, quando, na volta das eleições diretas para prefeito das capitais, João Saldanha foi o vice da chapa encabeçada por Marcelo Cerqueira, seu nome foi uma escolha do PCB; agora, um documento do Centro de Informações da Aeronáutica:


Trata-se do ano, 1985, em que ele o PCB voltara à legalidade; seu programa pudera ser registrado novamente, depois de o Supremo Tribunal Federal tê-lo cassado em 1947. O SNI deu-se o trabalho de fazer um relatório com estes documentos públicos do Partido para fichar todos os signatários:


João Saldanha, claro, estava entre seus (re)fundadores:


Saldanha, porém, estava entre os militantes comunistas desde os anos 1940. Ele havia ingressado no PCB em julho de 1945, segundo esta informação do SNI de 1970, ano da Copa do Mundo de futebol masculino em que a seleção do Brasil, cujo time fora formado por Saldanha, chegou ao tricampeonato.


A vitória no futebol em 1970 foi usada politicamente pela ditadura militar, como se sabe. 
Está esgotada, infelizmente, a biografia João Saldanha: Uma Vida em Jogo, de André Iki Siqueira. Nela se conta que sua demissão da Copa de 1970 teve relação com a militância política do treinador de futebol, o que incluía a denúncia internacional das torturas e das prisões políticas. João considerava o ditador Médici "o maior assassino da história do Brasil", lembra o biógrafo, autor também de documentário.
Estivera vivo Saldanha, é possível que estivesse a denunciar o governo a que tanto quer pertencer seu sobrinho-neto, algo muito pior do que um time de pernas de pau.


Nota: Os documentos reproduzidos foram consultados no acervo do Arquivo Nacional, mais especificamente nos Fundos do SNI e do CISA.