O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 7 de julho de 2013

"Porto Alegre acabou", dizia Eduardo Sterzi

Um incêndio destruiu o Mercado Público de Porto Alegre, que não cheguei a conhecer quando estive na cidade: https://twitter.com/lucasrohan/status/353677163100266496/photo/1
O plano de combate ao incêndio do local estava vencido há seis anos (http://www.sul21.com.br/jornal/2013/07/prefeitura-de-porto-alegre-admite-ppci-do-mercado-publico-estava-vencido-ha-6-anos/?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter), e os poderes públicos, em ilícita omissão, sabiam-no. Embora houvesse água para efeitos ornamentais da Coca-Copa (https://fbcdn-sphotos-e-a.akamaihd.net/hphotos-ak-prn1/1011862_496645060408706_1766757933_n.jpg), os hidrantes não tinham pressão suficienta para combater o fogo (https://twitter.com/FuteboldaGaucha/status/353668778955001856/photo/1) e as mangueiras estavam com furos que levaram a esta situação tragicômica: https://twitter.com/andreasmuller/status/353691960231485440/photo/1
Quando Eduardo Sterzi mostrou-me pela primeira vez "Casa de detenção", o poema ainda não havia sido publicado em Aleijão (Rio de Janeiro: 7 letras, p. 19), provavelmente o melhor livro de poesia brasileira contemporânea publicado em 2009, não obstante esse ano ter sido rico em obras  interessantes.
Para quem não tem o livro à mão, o poema pode ser lido integralmente no número 5 da publicação Rastros da Cultura e Barbárie: http://issuu.com/culturabarbarie/docs/rastros5
Eu não havia gostado dele, mas por culpa minha: não havia entendido por que o poeta havia desistido de assaltar aquela cidade. Agora, que Porto Alegre realizou o que o poema antevia, o urbanismo como "casa de detenção", entendo a pergunta acesa no meio do poema:
Como escapar ao cárcere
do nome?
Sterzi isola estes dois versos, que têm um recuo destacado (assim como os versos solitários que abrem e fecham o poema) entre dois parágrafos de prosa. Não se pode perceber o efeito na diagramação que lhe deu o Rastros, que acho bem inferior à do livro.
A epígrafe usa a letra de Nei Lisboa, subvertendo-a, porém. A canção diz "Eu tenho os olhos doidos, doidos, já vi/ Meus olhos doidos, doidos, são doidos por ti", mas Sterzi seleciona um trecho que  acaba por introduzir a negatividade deste poema: "Há tempos que eu já desisti/ dos planos daquele assalto."
Então lemos o primeiro verso: "Porto Alegre acabou:". O assalto ainda poderia salvar a cidade, mas o poeta desistiu de tomá-la. Os dois parágrafos em prosa, com frases curtas para realizar sintaticamente a bela imagem do "Fogo fluente de uma cela a outra (de resto, incomunicáveis).", apresentam as razões da degradação ambiental, em que o meio é tanto o natural quanto o socialmente construído: aquela cidade acabou "No ponto morto dos dias, das festas de família. Na tosse compartida, na asfixia. No óxido das grades." Nesta sociedade erodida, as "fomes vermelhas" estão "agora canceladas".
O "inexprimido" é "exprimível", mas o poeta desiste do "retrato" da cidade (pintando-o, porém) porque "Todo retrato é autorretrato, e toda tatuagem. Todo escrito é registro de gasto, e é desgaste."
Neste poema de renúncia a elaborar uma imagem de Porto Alegre, Sterzi consegue, paradoxalmente, representar esta cidade que renunciou ao urbano. Hoje, essa renúncia ocorre em nome da Copa-Coca, que gerou remoções forçadas e horríveis monumentos como o tatu-bola, felizmente já derrubado, e o chafariz para banho gratuito nos passantes incautos (http://www.youtube.com/watch?v=IRZU41MaleM), uma "bizarrice", conforme informou a jornalista Suzana Dornelles, a quem agradeço pelas informações: https://twitter.com/sudornelles/status/354028327188705280
No lúcido poema de Eduardo Sterzi já estava o fogo, bem como o crime e "a memória do desastre" que gera filhos: "Acolhe a ratazana, em véspera de crias."
O poema termina com o verso "Nasço velho deste abraço.", dado no ou pelo "espaço abandonado". Vemos, então, que o cárcere não está apenas no "alegre", e sim também neste "porto", que inspira lições de partida.
De qualquer forma, nesta poesia, a questão vai muito além da cidade natal. Em Aleijão predomina o sentimento de exílio e de mal-estar no país (que "não presta": http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/06/1964-e-voz-do-autor-eduardo-sterzi-e.html), um afeto que, nesta poesia, é próprio do desejo: "É outra cidade, outro/ o desejo cão que late/ a noite inteira no pátio." ("Cão", p. 133).

P.S.: Esqueci de incluir a ligação para a leitura que Eduardo Sterzi fez, na USP, de poema de Francisco Alvim, em que se destaca, segundo Sterzi, o "passado como destruição": "Pouso Alegre acabou..." http://www.youtube.com/watch?v=asJkah5zM2c

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