O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 24 de março de 2018

Desarquivando o Brasil CXLII: Dia Internacional do Direito à Verdade e nova campanha #DesarquivandoBR


Começa hoje e vai até primeiro de abril a campanha "Contra a intervenção militar, pelo direito à verdade: Mobilização #DesarquivandoBR 2018", que envolve blogagem coletiva e dois momentos de tuitaço: 28 de março, aniversário de cinquenta anos do assassinato do estudante Édson Luís no Rio de Janeiro, e o primeiro de abril, aniversário do golpe de 1964. A campanha pede também #JustiçaParaMarielle.

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Em 24 de março, temos o Dia Internacional do Direito à Verdade em relação às Violações Graves de Direitos Humanos e à Dignidade das Vítimas, instituído pela Organização das Nações Unidas por resolução aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 21 de dezembro de 2010.
A Organização o fez em memória de Dom Romero, Arcebispo de El Salvador, assassinado, em razão de seu engajamento nos direitos humanos, pelo exército desse país enquanto celebrava missa. Ele foi mencionado expressamente na justificativa da resolução:
Reconociendo en particular la importante y valiosa labor de Monseñor Óscar Arnulfo Romero, de El Salvador, quien se consagró activamente a la promoción y protección de los derechos humanos en su país, labor que fue reconocida internacionalmente a través de sus mensajes, en los que denunció violaciones de los derechos humanos de las poblaciones más vulnerables,
Reconociendo los valores de Monseñor Romero y su dedicación al servicio de la humanidad, en el contexto de conflictos armados, como humanista consagrado a la defensa de los derechos humanos, la protección de vidas humanas y la promoción de la dignidad del ser humano, sus llamamientos constantes al diálogo y su oposición a toda forma de violencia para evitar el enfrentamiento armado, que en definitiva le costaron la vida el 24 de marzo de 1980, [...]
A resolução decorreu de iniciativa do Conselho de Direitos Humanos, que recomendou a criação desse Dia em 17 de junho de 2010.
Na primeira mensagem do Secretário-Geral da ONU (Ban Ki-Moon na época) sobre o 24 de março, que ocorreu em 2011, salientou-se que o direito à verdade
[...] ha quedado consagrado expresamente en la Convención Internacional para la protección de todas las personas contra las desapariciones forzadas, que entró en vigor en diciembre de 2010. También reconocen ese derecho otros instrumentos internacionales, así como leyes nacionales, la jurisprudencia y las resoluciones de órganos intergubernamentales.
A ONU incentivou os Estados comemorarem o Dia; na mensagem de 2018, convidou "a observar de manera apropiada el Día Internacional".
No Brasil, esse Dia foi incorporado ao calendário nacional somente neste ano, graças a projeto da deputada Luiza Erundina (Psol-SP), o Projeto de Lei nº 4.903, de 2012, da Câmara, que foi renumerado para PLC 55/2014 no Senado. Note-se que Erundina o propôs no primeiro ano de funcionamento da Comissão Nacional da Verdade, ele só foi aprovado na Câmara no último ano, e a CNV extinguiu-se sem poder comemorá-lo, pois ele só foi aprovado em 14 de dezembro  de 2017 pelo Senado Federal, depois de pareceres favoráveis.
Curiosamente, o parecer do Senador Donizeti Nogueira, da Comissão de Educação, Cultura e Esporte, de 8 de julho de 2015, refere-se à CNV como se ela estivesse ainda funcionando; esse engano parece-me sinal de que o órgão para o prosseguimento do trabalho da Comissão precisa ser criado.
Sancionado neste ano por Temer, o projeto tornou-se a Lei nº 13.605, de 9 de janeiro de 2018.
Ela propôs neste ano a instituição do Prêmio "Direito à Verdade sobre graves violações aos direitos humanos e da dignidade das vítimas", pela Câmara dos Deputados, mas esse projeto de resolução da Câmara, PRC 304/2018, ainda não foi aprovado.
Ocorreu neste 24 de março de 2018, na PUC-SP, um ato público para celebração do Dia Internacional do Direito à Verdade com a deputada. Erundina e Daniel Cara fizeram publicar na Carta Capital artigo "Celebrar o direito à verdade é caminhar rumo à justiça" no dia anterior, que relaciona as graves violências da ditadura militar com as de hoje, faz referência ao assassinato de Marielle Franco e de Anderson Pedro Gomes:
Nesse sentido, é inaceitável o desconhecimento de violências ainda obscuras cometidas pela ditadura civil-militar que submeteu o país entre 1964 e 1985. É incomensurável a dor das famílias que desconhecem o paradeiro de seus entes queridos ou precisam conviver com o sofrimento e traumas delas e deles.
É também inaceitável não obtermos respostas, quando conseguimos formular tantas das perguntas: o que o Brasil faz diante do fato de que há 5 mil homicídios de mulheres e 500 mil estupros por ano, segundo dados da OMS e do IPEA? Quais são as políticas públicas empreendidas para enfrentar a inaceitável realidade de que a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras – segundo o Atlas da Violência de 2017? Como o Brasil vai enfrentar o fato de que, a cada 25 horas, é assassinada uma pessoa LGBT? Por que o Brasil continua, a 518 anos, cometendo violências contra os povos indígenas?
Tentar responder a essas questões do passado e do presente parece-me uma forma de tentar "observar de maneira apropriada o Dia Internacional" no Brasil, embora Temer (que, obviamente, ignorou o Dia) e asseclas caminhem em outro sentido. Lembremos do Gal. Villas Bôas, a afirmar, em 19 de fevereiro de 2018, que os militares precisam, no Rio de Janeiro sob intervenção, de "garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade", o que gerou mobilização para a criação de uma Comissão Popular da Verdade no Rio.
O decreto de intervenção pareceu inconstitucional para o Ministério Público Federal. Cito esta passagem da Nota Técnica 1, de 20 de fevereiro de 2018;
Assim, os signatários dessa nota técnica não a podem concluir sem manifestar sua perplexidade com as declarações atribuídas ao Comandante do Exército, no sentido de que aos militares deveria ser dada “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”, e ao Ministro da Justiça, o qual, em entrevista ao jornal Correio Brasiliense, fez uso da expressão “guerra”. Guerra se declara ao inimigo externo. No âmbito interno, o Estado não tem amigos ou inimigos. Combate o crime dentro dos marcos constitucionais e legais que lhe são impostos.
A concepção de "inimigo interno" decorre da doutrina de segurança nacional, que as Forças Armadas cultivam desde antes da ditadura, e nela são enquadrados, tradicionalmente, os movimentos sociais, os povos indígenas, as populações das periferias. É evidentemente inconstitucional e contrária à soberania popular, mas aquelas Forças continuam a operar em sentido diverso do ordenamento jurídico vigente, amparadas pelo Judiciário, que parecem nunca ter perdido a nostalgia do dia 13 de dezembro de 1968. Por esta razão, os espúrios elementos de continuidade da ditadura, participamos desta campanha #DesarquivandoBr.

domingo, 18 de março de 2018

Marielle Franco e a memória das execuções em Cecília Meireles e Ricardo Aleixo

Notei que a execução da vereadora do Município do Rio de Janeiro, Marielle Franco, do Psol, no dia 14 de março de 2018, suscitou para vários a lembrança desta poeta que é sempre necessária, Cecília Meireles. Vi diversas pessoas que lembraram de passagens do Romanceiro da Inconfidência sobre execuções políticas (enquanto a direita mais raivosa fingia serenidade ao pretender que o assassinato da militante e membro do Legislativo nada tinha de político).
Muitos lembravam destes versos:
Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem não presta fica vivo:
quem é bom mandam matar.
Vi alguns citando-os no twitter, porém o mesmo ocorreu no facebook. Esses que homenageavam Marielle Franco entre os justos assassinados escolhiam um trecho do "Romance V ou Da Destruição de Ouro Podre", do Romanceiro da Inconfidência, de 1953. Embora no centro do livro esteja a execução política de Tiradentes, neste poema, além da destruição pelo fogo do arraial de Ouro Podre ordenada por Dom Pedro de Almeida, temos a execução, com esquartejamento, de Felipe dos Santos. Trata-se de episódio anterior à Inconfidência, que a autora, com seu senso histórico, escolheu contar no início do livro.
Cecília Meireles escrevia, em geral, a partir do prisma da memória, e muito do que fez tinha como efeito honrar os mortos: os seus e os de todos, como os Inconfidentes e Gandhi. Dessa forma, ela se aproximava da matéria social na poesia.
Muitos vezes a memória escapa, e recusa-se a entregar uma imagem definida. A musicista Cecília Meireles chegou a criar quase canções sem palavras usando apenas, paradoxalmente, palavras, empregando ritmos e formas audivelmente encantatórias que mais sugerem do que revelam, e nisso encontram sua maior eloquência. Um poema que me toca desde a infância é "Ária", do Retrato natural, livro de 1949. Ela tece vários motivos a partir de "Na noite profunda" e "Na profunda noite".
Quem nos vai recordar
na noite profunda?
Pensamento tão gasto,
amor sem milagre
na profunda noite.
Os amigos se extinguem.
Nessa noite de solidão imensa, ela finalmente pede: "Na noite profunda,/ deixa para sempre,/ deixa agonizar/ solitário meu rosto,/ na noite profunda,/ na profunda noite/ que a memória levar."
A memória se vai com seu rosto, sua identidade, nessa noite profunda em que os amigos foram perdidos; como a memória é uma construção coletiva, a extinção dos amigos equivale à agonia do rosto, que será levado. O ritmo destes versos, de cinco e de seis sílabas, e a rima deixada para o fim (o significativo duo agonizar/levar) fazem-nos de fato pensar em música (o título é muito apropriado), que termina de forma quieta.
Para tratar de uma chacina cuja memória querem apagar, Ricardo Aleixo, curiosamente encontrou uma forma bem parecida no poema "Na noite calunga do bairro Cabula" de Impossível como nunca ter tido um rosto (Belo Horizonte, 2015). Perguntei ao poeta, que me disse que não conhecia o poema de Cecília. O ouvido dele chegou a um resultado semelhante ao dela, o que é significativo.
Morri quantas vezes
na noite mais longa?
Na noite imóvel, a
mais longa e espessa,
morri quantas vezes
na noite calunga?
Além das variações em torno da noite, o número de sílabas dos versos é parecido. Diferentemente de "Ária", a memória aqui nomeia um acontecimento específico: "morri quantas vezes// na noite terrível,/ na noite calunga// do bairro Cabula?"
Trata-se da chacina que vitimou 12 pessoas em 2015 naquele bairro de Salvador, e que recebeu este comentário do governador Rui Costa, do PT, nesta absurda comparação: "É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol". A justiça baiana absolveu em tempo recorde os policiais militares acusados, em julho daquele mesmo ano. O Ministério Público Federal pediu a federalização do caso, alegando que a justiça baiana não apresenta condições de julgá-lo, mas até hoje o STJ não decidiu.
As vítimas eram negras, e a identidade étnica parece-me ser posta por Aleixo desde a qualificação "calunga" dada à noite. Por essa razão, o poema tenta fazer uma virada de esperança, revertendo o significado da cor da noite: "[...] e meu nome/ é aquele que não morre// sem fazer da noite/ não mais a silente// parceira da morte/ mas a mãe que pare// filhos cor da noite/ e zela por eles", o que é muito bom, e exemplifica o esforço militante de ressignificação da imagens ligadas ao preto. O livro parte da premissa de que é "impossível" "nunca ter tido um rosto", e a face negra, sua identidade, não será dissolvida, em gesto oposto ao do fim do poema de Cecília Meireles, onde vemos um eu em dissolução; ele afirma que "Sou muitos", "[...] sou tantos// que um dia eu faço/ a vida viver.
No final, há uma rima entre "ser" e "viver", o que poderia evocar de novo "Ária"; no entanto, ele se diferencia também por abandonar as variações em torno da noite.
Creio que esse gesto que aponta para insurgência, fundada na identidade negra, deveria mesmo abandonar aquele motivo inicial. Contudo, sempre achei esse final menos convincente, por não apresentar a complexidade do drama anterior, ou não resolvê-la formalmente.
No entanto... No último evento de que Marielle Franco participou, na Casa das Pretas, ela fez questão de lembrar do caráter coletivo de sua luta e do mandato ("é a gente que está morrendo, é nosso povo que está morrendo, e então a gente tem que lidar para avançar"), e por isso evocou mulheres negras como Angela Davis, Lélia Gonzalez, e aquelas que a precederam na Câmara: dez anos antes dela, Jurema Batista e, dez anos antes dessa antiga vereadora, Benedita da Silva.
Comentou, nesse ponto: "a gente não pode esperar mais dez anos, ou achar que estarei ali dez anos". Infelizmente, tinha razão não porque seria eleita para outros cargos, mas porque morreria naquela mesma noite.
Sua morte multiplicou a força daquela ação pautada pelo coletivo, e ela tornou-se tantos, como no poema de Aleixo: seu assassinato gerou mais impacto na internet do que o impeachment: "3,573 milhões de tuítes" que, "Nas 42 horas seguintes, mobilizaram 400 mil usuários do Twitter em 54 países e 34 idiomas. Mas os três nós que amarraram essa rede global têm muito em comum: são mulheres, cariocas, periféricas e negras." (leiam a matéria "Marielle bate impeachment no twitter", de José Roberto de Toledo e Kellen Moraes para a Piauí). Além da própria Marielle, as duas mulheres cujos tweets ficaram no centro da repercussão foram a jovem Milena Martins e a cantora Elza Soares.
Enquanto essas vozes de mulheres negras repercutiam mundialmente (note-se que talvez o melhor perfil da vereadora negra, bissexual e periférica tenha sido o de Fernanda Odilla para a BBC, enquanto certo jornal do Rio minimizava sem sucesso a morte), o que fazia a direita? Calava-se fugindo de seus deveres públicos, ou calava-se porque sua opinião é conhecida demais, tentava calar via Itamaraty a repercussão mundial do crime, e também perdia a gramática e a lógica, ou partia para a mais abjeta difamação, tentando assassinar a memória de Marielle.
Nem uma vaga lembrança da poesia poderia passar por essa gente.

P.S.: Contou Mariana Gomes Caetano que, no mesmo dia do crime, a vereadora havia proposto um projeto de lei instituindo a Medalha Edson Luís, estudante assassinado pela ditadura no Rio de Janeiro em março de 1968 (outra execução), cinquenta anos antes da morte de Marielle Franco. Espero que o partido leve o projeto adiante, e crie uma homenagem para ela também.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Desarquivando o Brasil CXLI: A luta das mulheres contra a ditadura no Brasil, e os relatórios das comissões da verdade

O 8 de Março em 2018 foi muito interessante, enorme na Espanha, com várias ações no Brasil, o que me estimulou a escrever esta breve nota.
As mulheres tiveram uma presença muito forte na luta contra a ditadura, seja nos partidos e movimentos clandestinos, militaristas ou não, seja nos movimentos populares e na campanha contra a anistia, que surgiu a partir do Movimento Feminino pela Anistia. As mulheres das periferias retomaram as ruas nos anos 1970 por creches, luz, escolas, água e, depois delas, vieram os outros movimentos.
Essas histórias são contadas no essencial Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios (São Paulo: Alameda, 2017), de Maria Amélia de Almeida Teles (a Amelinha), reedição muito ampliada de livro que saiu pela Brasiliense em 1993.
O livro inclui as novas descobertas do processo de justiça de transição no Brasil, do qual a própria autora tem participado ativamente:
Os militares, de início, subestimaram a capacidade das mulheres, mas, ao vê-las atuando na luta, inclusive com o uso de armas, tiveram reações de ódio e repúdio. Isso porque as militantes políticas daquela época romperam com preconceitos e barreiras machistas. Tiveram até que enfrentar a própria organização política de esquerda em que atuavam. A esquerda também tinha preconceito e as discriminava. Assim, as militantes tiveram que subverter a ordem do estado ditatorial e a ordem interna de suas organizações políticas. Eram duas vezes subversivas. A ditadura as via como uma ameaça, daí se justificava a censura aos temas sobre mulheres [...]
Não obstante toda essa importância da luta feminina, ignorada por certas pessoas que, de forma misógina, apagam as lutas das mulheres e pretendem que o feminismo no Brasil nasceu na década de 2010, a esmagadora maioria dos relatórios das comissões da verdade não se preocupou em destacar a dimensão de gênero na justiça de transição. O que é estranho, e talvez revele a permanência desses problemas.
Mais estranho ainda quando lembramos que a própria Comissão Nacional da Verdade, no volume I de seu relatório, incluiu um capítulo, o décimo, sobre "Violência sexual, violência de gênero e violência contra crianças e adolescentes".
O capítulo expõe a questão de forma bem clara:
A violência sexual, exercida ou permitida por agentes de Estado, constitui tortura. Por transgredir preceitos inerentes à condição humana, ao afrontar a noção de que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, a normativa e a jurisprudência internacionais consideram que a violência sexual representa grave violação de direitos humanos e integra a categoria de “crimes contra a humanidade”. No cumprimento de seu mandato, ao buscar promover o esclarecimento circunstanciado de casos de tortura ocorridos durante a ditadura militar, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) pôde constatar que a violência sexual constituiu prática disseminada do período, com registros que coincidem com as primeiras prisões, logo após o golpe de Estado.
O relatório ainda explica a questão no âmbito do Direito Internacional, que o considera crime de lesa-humanidade, que vai exatamente no sentido oposto dos juristas brasileiros que defendem que o estupro é um crime político, anistiável e anistiado (mencionei-os em outra nota):
27. No processo de reconhecimento da violência contra as mulheres como violação aos direitos humanos, a Conferência de Viena, realizada em 1993, desempenhou papel importante. Foi por intermédio  da Plataforma de Ação de Viena que os Estados tornaram explícita a ideia de que a violência contra a mulher é uma violação aos direitos humanos e que os direitos das mulheres constituem direitos humanos. A Declaração sobre a eliminação da violência contra as mulheres, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, não deixa dúvidas sobre o entendimento da comunidade internacional. Diz seu artigo 1o:
Para os fins da presente Declaração, a expressão “violência contra as mulheres” significa qualquer ato de violência baseado no gênero do qual resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada.
28. Entendimento similar foi confirmado pelo sistema regional ao qual o Brasil está submetido. Em junho de 1994, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, adotada em Belém (PA), passou a considerar violência contra a mulher “qualquer ato ou conduta baseado no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Além da opressão física e psicológica, isso inclui também a violência sexual, “perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra”. Embora sem efeito vinculante, a Plataforma de Ação de Pequim, resultado da IV  Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em 1995, na China, representou novo compromisso da comunidade internacional com ações capazes de garantir o respeito a esses direitos.
As comissões da verdade brasileiras que não abordaram o tema não cumpriram realmente seu mandado, uma vez que os direitos das mulheres, devemos relembrar, são direitos humanos, e as comissões existem para apurar as violações a esses direitos. Nessa imensa lacuna, devemos incluir a Comissão da Verdade da UNE e a da CUT, que ignoraram a perspectiva de gênero.
Faço uma breve menção a algumas das comissões que se preocuparam em cumprir seu mandado em relação às mulheres.

I. O relatório da Comissão da Verdade do Estado da Paraíba dedicou um capítulo para as mulheres, o nono, "Ditadura e gênero". Além de textos sobre casos emblemáticos de mulheres que sofreram perseguição política e sobre a participação feminina no movimento de anistia, o capítulo traz listas das 16 audiências públicas e 20 oitivas realizadas com as mulheres na Paraíba, das alunas presas no congresso da UNE em Ibiúna, das estudantes da UFPB e da URNE (Universidade Regional do Nordeste) "punidas em vista das suas atividades políticas em protesto à ditadura militar", e de um levantamento parcial das mulheres que fizeram pedido de anistia política (a Comissão somente teve acesso aos nomes das que fizeram o pedido "por meio do gabinete do deputado Zenóbio Toscano", a pesquisa ficou incompleta).

II. O relatório da Comissão da Verdade em Minas Gerais dedicou uma subseção no item 3.6 à "violência por gênero", com alguns relatos e este gráfico sobre tortura:


Em relação aos povos indígenas, a Comissão não logrou obter depoimentos: "Por fim, um tema que normalmente fica relegado ao esquecimento, o da violência de gênero, foi percebido muito mais por meio dos silêncios que dos relatos. [...] Quando a equipe da Covemg tentou abordar esse assunto, apesar de um incômodo “natural” ao tratar de assunto tão delicado com pessoas praticamente estranhas, o que se percebeu foi o silenciamento, a negação ou a passagem para outro tema ao dizer que não se sabia nada sobre o assunto."
Os dados sobre tortura, porém, talvez não correspondam à média nacional. Cito o capítulo "Verdade e gênero" da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva":
Segundo o Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), dos 436 casos de morte e desaparecimento tratados no documento, 11% são mulheres. Já na região do Araguaia, dos 70 guerrilheiros desaparecidos, 12 eram mulheres, ou seja, 17%. De acordo com o Estado Maior do Exército no ano de 1970, havia mais de 500 militantes guerrilheiros aprisionados em quartéis, sendo que no Rio de Janeiro, 26% eram mulheres. Estes números não são nada desprezíveis se comparados com os atuais. Por exemplo, os resultados do pleito de 2014, revelam que somente 10% de mulheres foram eleitas para o Congresso Nacional, reservando ao Brasil o posto de país mais desigual da América do Sul em representação feminina no Legislativo. Apesar da reeleição da presidenta Dilma Rousseff - militante na luta de resistência à ditadura - e da legislação eleitoral brasileira, desde 2009, obrigar que ao menos 30% das candidaturas sejam femininas, os partidos políticos continuam assumindo uma posição sexista sem oferecer verbas ou espaço para uma disputa em condição de igualdade. Muitas são “mulheres-laranja”, indicadas somente para cumprir a cota prevista em lei, sem que lhes sejam oferecidas as mesmas condições [...]
A situação não melhorou. Atualmente, o Brasil ocupa a lamentável 152a. posição mundial em participação feminina na política segundo a pesquisa “Estatísticas de gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil”, que foi divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

III. O relatório da Comissão da Verdade do Estado do Paraná - Teresa Urban, além de uma breve menção à violência sexual contra as mulheres do povo Xetá, um dos povos indígenas que sofreu genocídio durante a ditadura, dedica uma seção à "resistência feminina" no capítulo 5, sobre as graves violações de direitos humanos no campo:

A resistência e guerrilha têm sido associadas à masculinidade, como se “ser forte” fosse exclusividade masculina, ou forma de provar que se “é homem” (PRIORI, 2012). A participação direta de mulheres em lutas violentas geralmente é esquecida, dificilmente reconhecida. Entretanto, apesar disso, as mulheres sempre estiveram envolvidas em guerras e guerrilhas. Participaram de lutas camponesas, desde os movimentos de resistência armada, às ocupações de terra, à organização dos sindicatos.
Neste relatório, destaca-se o papel de três mulheres que, de diferentes formas, foram citadas ou relataram sua experiência.

Elas são Laurentina Antonia Dornelles, Clarissa Mertz e Clari Izabel Fávero, e seus casos são relatados.

IV. A Comissão da Verdade do Rio descobriu a importância do tema na prática, durante a oitiva dos depoimentos:
Para a Comissão da Verdade do Rio, a importância do tema surgiu após reunir uma série de depoimentos reveladores de aspectos peculiares da violência sofrida por mulheres na ditadura militar. Este capítulo, portanto, não existiria se não fosse pela coragem das mulheres que, em depoimentos públicos e privados, mostraram como a diferença de gênero balizou a perseguição e a violência por elas sofrida naquele período. O conjunto dos depoimentos evidencia como a violência de Estado  foi estruturada, durante o regime militar, a partir das convenções sociais acerca dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres, os quais diferenciam, hierarquizam e discriminam as pessoas, suas obrigações, oportunidades e liberdades.
O capítulo 10, "Mulheres na luta contra a ditadura: o terror do Estado e a violência sexual", inclui a questão da violência obstétrica: "Os depoimentos revelam que muitas mulheres estavam grávidas na ocasião da prisão. E, ao saberem disso, os agentes da repressão não amenizavam a violência contra elas, ao contrário, a intensificavam. Rosalina Santa Cruz conta que soube da sua gravidez em meio a uma sessão de tortura."
A lembrar que a Comissão do Estado do Rio de Janeiro, assim como a de São Paulo, foi das poucas a tratar de outra questão de gênero, as de orientação sexual e de identidade de gênero.

V. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" partiu da tipificação dos "crimes sexuais, cometidos no contexto de conflitos armados ou regimes de exceção" como crimes de lesa-humanidade, o que está previsto no Estatuto de Roma, e tentou explicar o significado dos silêncios em audiências;
Durante as audiências públicas realizadas pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, muitas mulheres tiveram espaço para narrar suas experiências de militância durante a ditadura militar brasileira. Entretanto, poucas relataram, à época, sobre as violências sexuais a que foram submetidas. Alguns motivos foram elencados por elas próprias para justificar tal silêncio:
(i) em um primeiro momento, as mulheres que saíram das prisões estavam mais empenhadas em denunciar as mortes e desaparecimentos de que foram testemunhas do que em relatar as violências sofridas por elas;
(ii) o medo de que não acreditassem em sua palavra e de magoar ou ser julgada pela família e amigos;
(iii) não se sentirem fortalecidas e com garantias para denunciar os torturadores e ter os crimes apurados;
(iii) serem responsabilizadas/culpabilizadas por terem sido estupradas, já que a violência contra a mulher é legitimada, em grande medida, a partir do discurso de “crime passional” produto de uma suposta “necessidade irrefreável e incontrolável de sexo inerente aos homens”.
A dificuldade de relatar este tipo de violência é ainda muito mais forte nos testemunhos dados pelos homens que não reconhecem a tortura aplicada em seus corpos nus ou o “empalamento” (técnica de suplicio que consiste na introdução de cassetete ou objetos semelhantes no ânus da pessoa) como uma violência de cunho sexual.
Essas razões de silêncio persistem até hoje, para os crimes sexuais cometidos na atualidade.
O capítulo "Verdade e gênero", além de relatar diversos casos e explicar os métodos de tortura da repressão, não deixa de analisar o machismo da esquerda:
Em alguns casos, a luta pelos direitos das mulheres foi considerada irreconciliável com a orientação dos partidos políticos que decidiram expulsar suas militantes feministas. Suas ideias e demandas eram julgadas como um “desvio pequeno burguês” e potencialmente perigoso, já que poderiam dividir a classe trabalhadora. Estes foram os casos de Amelinha Teles e Crimeia Almeida, pelo PcdoB e de Marise Egger, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB).
A CNV, no importante capítulo 10 de seu relatório, tratou também da violência contra crianças e as violações de direitos humanos contra membros das famílias dos seus opositores. A essa questão, a Comissão "Rubens Paiva" dedicou uma série de audiências públicas que resultaram em um livro, Infância roubada, sobre que já escrevi mais de uma vez neste blogue e que pode ser lido nesta ligação: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20800_arquivo.pdf (há uma "versão digital" naquele portal, mas ela não tem a introdução do livro).
Nesse impressionante livro, que a atual legislatura da Alesp não quis reimprimir, aparecem mais relatos de violência sexual, violência obstétrica, tortura de crianças, entre outros crimes da ditadura militar.
Amelinha Teles escreveu a introdução desse livro, que foi recolhida na mencionada nova edição de Breve história do feminismo no Brasil. Termino citando-a:
Se ainda prevalece a ideia de que a palavra das mulheres não é crível nos dias de hoje, o que dizer naqueles anos de chumbo quando mulher era assunto proibido e considerado “subversivo”. A revista Realidade, de janeiro de 1967, n. 10, teve sua edição especial dedicada à situação das mulheres apreendida pela censura. O jornal Movimento, n. 45, foi totalmente censurado, por realizar uma edição voltada para “O Trabalho da Mulher no Brasil”. São exemplos mostrando que o fato de falar sobre as mulheres, revelando dados de sua realidade na família, no trabalho, na educação e na sociedade causava muita preocupação às autoridades militares que eram extremamente misóginas. Tanto é que é um dos ditadores (General Figueiredo, 1978-1985) chegou a dizer em público que: “... mulher e cavalo a gente só conhece quando monta”.
Os idiotas, nós os conhecemos quando relincham. Que as mulheres cada vez mais falem contra os discursos misóginos, que continuam a infestar a política brasileira e pretendem, novamente, desonrar a cadeira presidencial.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Um concurso literário babélico?

A Revista 451 divulgou na internet que um prêmio nela anunciado, "International Babel Book Award", estrangeiro mas dedicado à língua portuguesa neste ano, estava sendo alvo de suspeitas dos meios editoriais e literários. O Globo noticiou as suspeitas e acrescentou que a organização do prêmio não havia respondido às dúvidas da redação.
Fui dar uma olhada e notei que este prêmio (http://babelbookaward.com/#the-top-menu) tem um curador fantasma; sua foto é de outrem:



O alegado intelectual, de que não há menção na Kunstuniversität Linz, aparece com a foto de um jornalista russo.
O Babel já teria sido auferido por dois escritores, segundo o portal do prêmio. No entanto, não achei nenhuma referência a Ilse Aichinger, que já morreu, tê-lo ganhado.
Também me parece estranho o fato de que a notícia de que Hasan Azizul Huq em 2017 teria ganho esse prêmio só apareceu na Wikipedia anglófona (se alguém achar alhures...), e inserida por um usuário anônimo em fevereiro deste ano:

 


Curiosamente, o IP do usuário é de São Paulo, dos Jardins:


O verbete em português somente foi criado depois dessas alterações em inglês, feitas no Brasil.
Também singular é que a página na língua de Hasan Azizul Huq não menciona o tal Babel Award, apesar de ela, aparentemente, ser bastante completa: https://bn.wikipedia.org/wiki/হাসান_আজিজুল_হক
Claro que tudo pode não passar de informações desencontradas de um prêmio novo, embora com tantos recursos (promete 200 mil euros). Apesar disso, compreendo que as pessoas desconfiem da situação, tendo em vista que a literatura brasileira entrou em fase de "fake news", até com obras assinadas por autodeclarados pseudônimos. De qualquer forma, será interessante acompanhar o caso e verificar os esclarecimentos.


Atualização em 25 de março de 2018: Parece que o prêmio com foto falsa de curador (que nega qualquer vínculo com a coisa), nunca dantes fato recebido por ninguém e completamente desconhecido por seus mencionados patrocinadores, surpreendentemente, não existe, como afirma Paulo Werneck.