O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Desarquivando o Brasil CXLI: A luta das mulheres contra a ditadura no Brasil, e os relatórios das comissões da verdade

O 8 de Março em 2018 foi muito interessante, enorme na Espanha, com várias ações no Brasil, o que me estimulou a escrever esta breve nota.
As mulheres tiveram uma presença muito forte na luta contra a ditadura, seja nos partidos e movimentos clandestinos, militaristas ou não, seja nos movimentos populares e na campanha contra a anistia, que surgiu a partir do Movimento Feminino pela Anistia. As mulheres das periferias retomaram as ruas nos anos 1970 por creches, luz, escolas, água e, depois delas, vieram os outros movimentos.
Essas histórias são contadas no essencial Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios (São Paulo: Alameda, 2017), de Maria Amélia de Almeida Teles (a Amelinha), reedição muito ampliada de livro que saiu pela Brasiliense em 1993.
O livro inclui as novas descobertas do processo de justiça de transição no Brasil, do qual a própria autora tem participado ativamente:
Os militares, de início, subestimaram a capacidade das mulheres, mas, ao vê-las atuando na luta, inclusive com o uso de armas, tiveram reações de ódio e repúdio. Isso porque as militantes políticas daquela época romperam com preconceitos e barreiras machistas. Tiveram até que enfrentar a própria organização política de esquerda em que atuavam. A esquerda também tinha preconceito e as discriminava. Assim, as militantes tiveram que subverter a ordem do estado ditatorial e a ordem interna de suas organizações políticas. Eram duas vezes subversivas. A ditadura as via como uma ameaça, daí se justificava a censura aos temas sobre mulheres [...]
Não obstante toda essa importância da luta feminina, ignorada por certas pessoas que, de forma misógina, apagam as lutas das mulheres e pretendem que o feminismo no Brasil nasceu na década de 2010, a esmagadora maioria dos relatórios das comissões da verdade não se preocupou em destacar a dimensão de gênero na justiça de transição. O que é estranho, e talvez revele a permanência desses problemas.
Mais estranho ainda quando lembramos que a própria Comissão Nacional da Verdade, no volume I de seu relatório, incluiu um capítulo, o décimo, sobre "Violência sexual, violência de gênero e violência contra crianças e adolescentes".
O capítulo expõe a questão de forma bem clara:
A violência sexual, exercida ou permitida por agentes de Estado, constitui tortura. Por transgredir preceitos inerentes à condição humana, ao afrontar a noção de que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, a normativa e a jurisprudência internacionais consideram que a violência sexual representa grave violação de direitos humanos e integra a categoria de “crimes contra a humanidade”. No cumprimento de seu mandato, ao buscar promover o esclarecimento circunstanciado de casos de tortura ocorridos durante a ditadura militar, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) pôde constatar que a violência sexual constituiu prática disseminada do período, com registros que coincidem com as primeiras prisões, logo após o golpe de Estado.
O relatório ainda explica a questão no âmbito do Direito Internacional, que o considera crime de lesa-humanidade, que vai exatamente no sentido oposto dos juristas brasileiros que defendem que o estupro é um crime político, anistiável e anistiado (mencionei-os em outra nota):
27. No processo de reconhecimento da violência contra as mulheres como violação aos direitos humanos, a Conferência de Viena, realizada em 1993, desempenhou papel importante. Foi por intermédio  da Plataforma de Ação de Viena que os Estados tornaram explícita a ideia de que a violência contra a mulher é uma violação aos direitos humanos e que os direitos das mulheres constituem direitos humanos. A Declaração sobre a eliminação da violência contra as mulheres, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, não deixa dúvidas sobre o entendimento da comunidade internacional. Diz seu artigo 1o:
Para os fins da presente Declaração, a expressão “violência contra as mulheres” significa qualquer ato de violência baseado no gênero do qual resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, que ocorra, quer na vida pública, quer na vida privada.
28. Entendimento similar foi confirmado pelo sistema regional ao qual o Brasil está submetido. Em junho de 1994, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, adotada em Belém (PA), passou a considerar violência contra a mulher “qualquer ato ou conduta baseado no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Além da opressão física e psicológica, isso inclui também a violência sexual, “perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra”. Embora sem efeito vinculante, a Plataforma de Ação de Pequim, resultado da IV  Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em 1995, na China, representou novo compromisso da comunidade internacional com ações capazes de garantir o respeito a esses direitos.
As comissões da verdade brasileiras que não abordaram o tema não cumpriram realmente seu mandado, uma vez que os direitos das mulheres, devemos relembrar, são direitos humanos, e as comissões existem para apurar as violações a esses direitos. Nessa imensa lacuna, devemos incluir a Comissão da Verdade da UNE e a da CUT, que ignoraram a perspectiva de gênero.
Faço uma breve menção a algumas das comissões que se preocuparam em cumprir seu mandado em relação às mulheres.

I. O relatório da Comissão da Verdade do Estado da Paraíba dedicou um capítulo para as mulheres, o nono, "Ditadura e gênero". Além de textos sobre casos emblemáticos de mulheres que sofreram perseguição política e sobre a participação feminina no movimento de anistia, o capítulo traz listas das 16 audiências públicas e 20 oitivas realizadas com as mulheres na Paraíba, das alunas presas no congresso da UNE em Ibiúna, das estudantes da UFPB e da URNE (Universidade Regional do Nordeste) "punidas em vista das suas atividades políticas em protesto à ditadura militar", e de um levantamento parcial das mulheres que fizeram pedido de anistia política (a Comissão somente teve acesso aos nomes das que fizeram o pedido "por meio do gabinete do deputado Zenóbio Toscano", a pesquisa ficou incompleta).

II. O relatório da Comissão da Verdade em Minas Gerais dedicou uma subseção no item 3.6 à "violência por gênero", com alguns relatos e este gráfico sobre tortura:


Em relação aos povos indígenas, a Comissão não logrou obter depoimentos: "Por fim, um tema que normalmente fica relegado ao esquecimento, o da violência de gênero, foi percebido muito mais por meio dos silêncios que dos relatos. [...] Quando a equipe da Covemg tentou abordar esse assunto, apesar de um incômodo “natural” ao tratar de assunto tão delicado com pessoas praticamente estranhas, o que se percebeu foi o silenciamento, a negação ou a passagem para outro tema ao dizer que não se sabia nada sobre o assunto."
Os dados sobre tortura, porém, talvez não correspondam à média nacional. Cito o capítulo "Verdade e gênero" da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva":
Segundo o Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), dos 436 casos de morte e desaparecimento tratados no documento, 11% são mulheres. Já na região do Araguaia, dos 70 guerrilheiros desaparecidos, 12 eram mulheres, ou seja, 17%. De acordo com o Estado Maior do Exército no ano de 1970, havia mais de 500 militantes guerrilheiros aprisionados em quartéis, sendo que no Rio de Janeiro, 26% eram mulheres. Estes números não são nada desprezíveis se comparados com os atuais. Por exemplo, os resultados do pleito de 2014, revelam que somente 10% de mulheres foram eleitas para o Congresso Nacional, reservando ao Brasil o posto de país mais desigual da América do Sul em representação feminina no Legislativo. Apesar da reeleição da presidenta Dilma Rousseff - militante na luta de resistência à ditadura - e da legislação eleitoral brasileira, desde 2009, obrigar que ao menos 30% das candidaturas sejam femininas, os partidos políticos continuam assumindo uma posição sexista sem oferecer verbas ou espaço para uma disputa em condição de igualdade. Muitas são “mulheres-laranja”, indicadas somente para cumprir a cota prevista em lei, sem que lhes sejam oferecidas as mesmas condições [...]
A situação não melhorou. Atualmente, o Brasil ocupa a lamentável 152a. posição mundial em participação feminina na política segundo a pesquisa “Estatísticas de gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil”, que foi divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

III. O relatório da Comissão da Verdade do Estado do Paraná - Teresa Urban, além de uma breve menção à violência sexual contra as mulheres do povo Xetá, um dos povos indígenas que sofreu genocídio durante a ditadura, dedica uma seção à "resistência feminina" no capítulo 5, sobre as graves violações de direitos humanos no campo:

A resistência e guerrilha têm sido associadas à masculinidade, como se “ser forte” fosse exclusividade masculina, ou forma de provar que se “é homem” (PRIORI, 2012). A participação direta de mulheres em lutas violentas geralmente é esquecida, dificilmente reconhecida. Entretanto, apesar disso, as mulheres sempre estiveram envolvidas em guerras e guerrilhas. Participaram de lutas camponesas, desde os movimentos de resistência armada, às ocupações de terra, à organização dos sindicatos.
Neste relatório, destaca-se o papel de três mulheres que, de diferentes formas, foram citadas ou relataram sua experiência.

Elas são Laurentina Antonia Dornelles, Clarissa Mertz e Clari Izabel Fávero, e seus casos são relatados.

IV. A Comissão da Verdade do Rio descobriu a importância do tema na prática, durante a oitiva dos depoimentos:
Para a Comissão da Verdade do Rio, a importância do tema surgiu após reunir uma série de depoimentos reveladores de aspectos peculiares da violência sofrida por mulheres na ditadura militar. Este capítulo, portanto, não existiria se não fosse pela coragem das mulheres que, em depoimentos públicos e privados, mostraram como a diferença de gênero balizou a perseguição e a violência por elas sofrida naquele período. O conjunto dos depoimentos evidencia como a violência de Estado  foi estruturada, durante o regime militar, a partir das convenções sociais acerca dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres, os quais diferenciam, hierarquizam e discriminam as pessoas, suas obrigações, oportunidades e liberdades.
O capítulo 10, "Mulheres na luta contra a ditadura: o terror do Estado e a violência sexual", inclui a questão da violência obstétrica: "Os depoimentos revelam que muitas mulheres estavam grávidas na ocasião da prisão. E, ao saberem disso, os agentes da repressão não amenizavam a violência contra elas, ao contrário, a intensificavam. Rosalina Santa Cruz conta que soube da sua gravidez em meio a uma sessão de tortura."
A lembrar que a Comissão do Estado do Rio de Janeiro, assim como a de São Paulo, foi das poucas a tratar de outra questão de gênero, as de orientação sexual e de identidade de gênero.

V. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" partiu da tipificação dos "crimes sexuais, cometidos no contexto de conflitos armados ou regimes de exceção" como crimes de lesa-humanidade, o que está previsto no Estatuto de Roma, e tentou explicar o significado dos silêncios em audiências;
Durante as audiências públicas realizadas pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, muitas mulheres tiveram espaço para narrar suas experiências de militância durante a ditadura militar brasileira. Entretanto, poucas relataram, à época, sobre as violências sexuais a que foram submetidas. Alguns motivos foram elencados por elas próprias para justificar tal silêncio:
(i) em um primeiro momento, as mulheres que saíram das prisões estavam mais empenhadas em denunciar as mortes e desaparecimentos de que foram testemunhas do que em relatar as violências sofridas por elas;
(ii) o medo de que não acreditassem em sua palavra e de magoar ou ser julgada pela família e amigos;
(iii) não se sentirem fortalecidas e com garantias para denunciar os torturadores e ter os crimes apurados;
(iii) serem responsabilizadas/culpabilizadas por terem sido estupradas, já que a violência contra a mulher é legitimada, em grande medida, a partir do discurso de “crime passional” produto de uma suposta “necessidade irrefreável e incontrolável de sexo inerente aos homens”.
A dificuldade de relatar este tipo de violência é ainda muito mais forte nos testemunhos dados pelos homens que não reconhecem a tortura aplicada em seus corpos nus ou o “empalamento” (técnica de suplicio que consiste na introdução de cassetete ou objetos semelhantes no ânus da pessoa) como uma violência de cunho sexual.
Essas razões de silêncio persistem até hoje, para os crimes sexuais cometidos na atualidade.
O capítulo "Verdade e gênero", além de relatar diversos casos e explicar os métodos de tortura da repressão, não deixa de analisar o machismo da esquerda:
Em alguns casos, a luta pelos direitos das mulheres foi considerada irreconciliável com a orientação dos partidos políticos que decidiram expulsar suas militantes feministas. Suas ideias e demandas eram julgadas como um “desvio pequeno burguês” e potencialmente perigoso, já que poderiam dividir a classe trabalhadora. Estes foram os casos de Amelinha Teles e Crimeia Almeida, pelo PcdoB e de Marise Egger, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB).
A CNV, no importante capítulo 10 de seu relatório, tratou também da violência contra crianças e as violações de direitos humanos contra membros das famílias dos seus opositores. A essa questão, a Comissão "Rubens Paiva" dedicou uma série de audiências públicas que resultaram em um livro, Infância roubada, sobre que já escrevi mais de uma vez neste blogue e que pode ser lido nesta ligação: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20800_arquivo.pdf (há uma "versão digital" naquele portal, mas ela não tem a introdução do livro).
Nesse impressionante livro, que a atual legislatura da Alesp não quis reimprimir, aparecem mais relatos de violência sexual, violência obstétrica, tortura de crianças, entre outros crimes da ditadura militar.
Amelinha Teles escreveu a introdução desse livro, que foi recolhida na mencionada nova edição de Breve história do feminismo no Brasil. Termino citando-a:
Se ainda prevalece a ideia de que a palavra das mulheres não é crível nos dias de hoje, o que dizer naqueles anos de chumbo quando mulher era assunto proibido e considerado “subversivo”. A revista Realidade, de janeiro de 1967, n. 10, teve sua edição especial dedicada à situação das mulheres apreendida pela censura. O jornal Movimento, n. 45, foi totalmente censurado, por realizar uma edição voltada para “O Trabalho da Mulher no Brasil”. São exemplos mostrando que o fato de falar sobre as mulheres, revelando dados de sua realidade na família, no trabalho, na educação e na sociedade causava muita preocupação às autoridades militares que eram extremamente misóginas. Tanto é que é um dos ditadores (General Figueiredo, 1978-1985) chegou a dizer em público que: “... mulher e cavalo a gente só conhece quando monta”.
Os idiotas, nós os conhecemos quando relincham. Que as mulheres cada vez mais falem contra os discursos misóginos, que continuam a infestar a política brasileira e pretendem, novamente, desonrar a cadeira presidencial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário