O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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sexta-feira, 30 de setembro de 2022

13 discos vermelhos em busca de companhia



Comecei a participar dos #13DiscosVermelhos no twitter, mas interrompi quando começou o último debate dos candidatos à presidência da república. Nele, Jair Bolsonaro, embora reforçado por um auxiliar contrário à lei de cotas e favorável a fechar hospitais, e pelo auxiliar aparentemente vestido para festa junina, pareceu mais fraco do que nunca e fugiu do confronto com Lula.
Assisti ao pobre espetáculo, que acabou de madrugada. Cheguei a escrever, antes disso, que tinha escolhido a Floresta do Amazonas, odiada pelos bolsonaristas (refiro-me ao objeto da inspiração, claro, mas é possível que a música também não seja apreciada), para ficar em cima da pilha de discos por motivos óbvios. A permanência da floresta (embora alguns sustentem que se trata de um bioma já irremediavelmente condenado) é uma das questões que será decidida dia 2 de outubro, uma vez que o governo do candidato à reeleição foi e continua a ser, por motivos que me escapam, uma época alvissareira para o crime ambiental.
Começo, porém, da base: o disco dedicado a Alberto Ginastera, lá embaixo, foi escolhido não só por causa do gênio deste compositor (só escolhi música boa para a pilha, claro; por sinal, o time musical que apoia Lula é muito superior ao grupo que faz arminha), mas também porque foi censurado por uma das ditaduras militares da Argentina por causa da ópera Bomarzo. O disco que tenho da ópera não é vermelho, mas como o compositor vetou a execução de toda sua obra nessa época em reação à censura, achei que poderia começar deste da Orquestra de Lancy-Genève regida por Roberto Sawicki, que ainda toca o violino solo. Ditadura, censura, essas palavras me evocaram algo do presente brasileiro.
Por causa da Argentina, lembrei de Maria Callas, que odiou Buenos Aires quando lá cantou (1949) porque, segundo contou em carta ao marido, a cidade estava cheia de fascistas. De fato, ela não voltou mais àquele país de cujo clima ela também não gostou. O disco (selo Divina) com o que restou gravado da presença da artista na Argentina não é vermelho, por isso peguei este com gravações ao vivo no México, da mesma fase da carreira, com uma voz realmente incomparável. Fica bem na pilha porque é Callas e porque, de fato, não se deve gostar do fascismo.
Como não devemos gostar desses peculiares regimes políticos europeus do século XX, resolvi incluir compositores proibidos pelos nazistas, e um deles morto em campo de concentração (Schulhoff), por marxismo e/ou modernismo e/ou em razão do antissemitismo. Entram Kurt Weill e Ernst Toch (que se exilaram) e o Berg, que morreu de doença antes de ter toda sua obra banida. Em Lulu, por sinal, a ópera que escolhi para a pilha (completada por Friedrich Cerha décadas depois, pois Alban Berg morreu antes de terminar a orquestração do último ato), a crise do capitalismo e a quebra da bolsa de Nova Iorque estão bem no centro da história. Esta gravação, regida por Jeffrey Tate, parece-me muito bem cantada, a começar por Patricia Wise no difícil papel-título, passando por Peter Straka que logra atender à tessitura do Alwa, pela encarnação que Brigitte Fassbaender nos oferece com a lésbica Condessa Geschwitz e pelo veterano Hans Hotter como Schigolch. O disco da Ebony Band,regida por Werner Herbers, inclui o "oratório-jazz" de Schulhoff, "H.M.S. Royal Oak", com texto de Otto Rombach, que conta um episódio real: uma revolta de marinheiros por causa das más condições de trabalho e da proibição de ouvir jazz, um ritmo negro (que também seria proibido pelos nazistas). A revolta vence. Os fãs do atual ocupante da presidência também têm problemas com a negritude. A revolta vencerá.
O disco das trovadoras (trobairitz), na voz de Montserrat Figueras e o grupo Hespèrion XX (quando acabou o milênio passado, Jordi Savall atualizou o nome para Hespèrion XXI), entrou para lembrar das mulheres autoras, contra a misoginia que continua no poder: Condesa de Provenza Garsenda e grande Condesa de Dia. Quase toda essa música foi perdida, mas alguns poemas ficaram e foram cantados com melodia de outros músicos. Parece-me que os fãs do atual ocupante da presidência, fiéis ao ídolo, incomodam-se com esses assuntos e o protagonismo feminino.
Escolhi este disco do grupo da Quixabeira de Lagoa da Camisa, além da vibrante cultura dos trabalhadores rurais, por causa do canto no verso "Essa terra é minha" em "Eu não sou daqui". Por algum motivo, podemos desconfiar que os partidários do atual ocupante da presidência não gostam muito desses trabalhadores, e a escassa simpatia diminui ainda mais quando veem que eles se organizam. No entanto, por alguma razão, esses partidários não veem problemas nas reivindicações de terra se feitas por grileiros.
Taiguara, que era comunista, entrou por causa da censura que sofreu (creio que foi o compositor brasileiro mais censurado da época) e o obrigou a deixar o país. Este era o único disco com lombada vermelha dele que tenho e cobre as músicas anteriores a seus embates mais sérios com a censura, a época em que era conhecido principalmente como cantor romântico. Já está lá, porém, a emblemática "Hoje"
Esta apresentação ao vivo de Elis Regina em 1977 foi lançada originalmente pela gravadora Velas, anos depois da morte da grande cantora. Lembro que eu o ouvi pela primeira vez em um supermercado (esse tipo de estabelecimento vendia discos no século passado) e fiquei paralisado pela voz em "Travessia", de Milton Nascimento. O disco começa e termina com canções contra a ditadura: "Como nossos pais", de Belchior, e "Cartomante", de Ivan Lins (que era o dono da Velas, aliás) e Vitor Martins. Esta, na intepretação de Elis, foi muito relembrada neste fim de mandato de J. Bolsonaro: "Cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei de paus, cai, não fica nada!"
O show "Direitos humanos no Banquete dos Mendigos" reuniu grandes nomes no MAM, Rio de Janeiro, em 1973. Tratava-se da comemoração dos 25 anos da Declaração Universal em um tempo, no Brasil, hostil à dignidade humana. Neste terceiro disco, o único vermelho, temos Milton Nascimento, Jards Macalé, Pedro dos Santos, Dominguinhos e Gal Costa. O poeta Ivan Junqueira fez uma leitura no fim dos artigos desta Declaração das Nações Unidas, texto não amado pelos partidários do atual ocupante da presidência. Tampouco esta organização internacional costuma despertar elogios dessas pessoas.
Da GaL, que foi fotografada fazendo o L várias vezes em 2022 e sempre foi de esquerda, escolhi ainda o "Estratosférica ao vivo", disco duplo recente que combina repertório novo e canções mais antigas, como esta pérola da época da ditadura, "Como 2 e 2", de Caetano Veloso (um ex-cirista que agora faz o L). Estes baianos não são nada apreciados pelos bolsominions, que ficaram muito irritados quando Gal alegremente dançou enquanto seu público demonstrava espontaneamente afetos em relação a J. Bolsonaro.
Em "Munduê", Diogo Nogueira (que honra em vários sentidos o nome do pai, o grande João Nogueira, e também faz o L) acentuou as raízes negras de sua música com os jongueiros do Quilombo de São José da Serra. Bolsonaristas também não gostam desse tipo de repertório (mesmo no belo timbre deste cantor) e até mostram-se capazes de votar em políticos que pesam gente em arrobas.
Esta gravação de "Floresta do Amazonas" foi o último disco gravado de Bidu Sayão, que estava aposentada, mas aceitou retornar aos estúdios a pedido do compositor, Villa-Lobos, que morreria pouco depois e fez nesse momento sua última gravação. É claro que os bolsonaristas não gostam desse tema, e provavelmente também não desta música. Há até gente da música clássica que votou 17 em 2018, mas foi por muita falta, além de consciência política, de consciência de classe.
A maioria do que selecionei foi música vocal. Deixo, então, para comentar por último um item puramente instrumental destes músicos brasileiros. O flautista Francisco Luz e o violonista Fabrício Ribeiro gravaram este disco de música de câmara, "Na solidão em busca de companhia", com música de Villa-Lobos, Radamés Gnattali, Edino Krieger e outros. Escolhi-o por causa da faixa título, de Harry Crowl (um de meus compositores favoritos de hoje), que remete a um poema de Auden. Sei que muita gente não gosta dos poemas de inspiração religiosa desse autor, mas creio que é possível apreciar a simplicidade deste exemplo lírico, e este verso, presente em dois tercetos, é essencialmente antibolsonarista: "Men of their neighbours become sensible".

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Uma ópera que se tornou ópera: Don Juán segundo Mozart e segundo Schulhoff (30 dias de ópera: Dia 27)

A lenda de Don Juán originou diversas obras musicais, como o balé de Gluck e o poema sinfônico de Richard Strauss. Sua versão literária mais antiga é de Tirso de Molina, a peça El Burlador de Sevilla y convidado de piedra, que faz o protagonista definir-se nestes termos:
Sevilla a voces me llama
el Burlador, y el mayor
gusto que en mí puede haber
es burlar una mujer
y dejalla sin honor. 
O apelo da história do sedutor nobre e assassino que é arrastado ao Inferno pela estátua do pai de uma das nobres que ele tentou estuprar chegou ao gênero operístico. Leio em ensaio de Jeremy Gray que somente em 1787, ano de estreia da ópera de Mozart, outras três foram compostas sobre a mesma história, e Lorenzo Da Ponte teria fortemente se inspirado no libreto que Giovanni Bertati meses antes escreveu para Gazzaniga, e até mesmo o compositor austríaco teria encontrado alguns rumos a seguir na música do italiano, eis que há similaridades. Por sinal, o tenor que cantou o primeiro Don Ottavio na ópera de Mozart interpretou Don Giovanni na de Gazzaniga.
O Don Giovanni, de Mozart e do libretista Lorenzo da Ponte, é uma obra-prima tão impressionante,  a "ópera das óperas" para alguns, que arrastou para o subterrâneo suas predecessoras. Ela tem tudo; o céu, nesta oração feita por Donna Elvira, Donna Anna e Don Ottavio antes de entrarem disfarçados no baile oferecido por Don Giovanni: https://www.youtube.com/watch?v=kNS_7TjsxMU; o inferno: https://www.youtube.com/watch?v=7cb1QmTkOAI;  o povo, no noivado de Zerlina e Masetto: https://youtu.be/i7Teu60nNYc?t=2202; os nobres, aqui Donna Anna lamentando sobre o corpo de seu pai, o Comendador, com seu noivo, Don Ottavio: https://youtu.be/i7Teu60nNYc?t=903; situações bem humanas, como a surra que Masetto leva de Don Giovanni à noite: https://youtu.be/Hnd5ULYG2no?t=6260; o sobrenatural, como a voz fantasmagórica da estátua do Comendador respondendo a Leporello e Don Giovanni: https://youtu.be/XINUIzWriMQ?t=138;  o cômico, na lista das bem mais de mil mulheres conquistadas que Leporello apresenta a Donna Elvira, a traída e abandonada esposa de Don Giovanni: https://youtu.be/dUW_lFGXti4?t=1798; o trágico no apelo de Donna Anna para que seu noivo a vingue: https://youtu.be/dUW_lFGXti4?t=3377. Tudo, magnificamente expresso em música. Como retomar o assunto depois?
Nesses casos, o melhor é fazer algo muito diferente. A única ópera de Erwin Schulhoff, Flammen ("Chamas") parte de outra fonte literária, a peça Don Juan de Karel Josef Benes, que lhe foi sugerida por Max Brod. Benes elaborou o libreto e Brod traduziu-o para o alemão, leio no ensaio de Josef Bek para a gravação de estúdio regida por John Mauceri para a coleção Entartete Musik da extinta gravadora London ("Música degenerada", dedicada a obras proibidas pelos nazistas; uma nota: lembro que, quando as políticas nazistas da secretaria de cultura de Bolsonaro foram desveladas no início de 2020, houve gente que dissesse, muito absurdamente, que só a música popular era considerada degenerada pelos alemães; fiquei muito chocado com essa posição, de um negacionismo histórico antissemita e/ou antissocialista e/ou antimodernista, que atinge Schönberg, Krenek, Eisler, Alban Berg e tantos outros músicos).
Flammen estreou em 1932 em Brno; o compositor nunca mais a veria, pois a montagem alemã foi impedida pelo nazismo, que mais tarde mataria o compositor, assassinado no campo de concentração de Wülzburg.
Ela dialoga, com estilos musical e teatral muito diferentes, com a obra de Mozart. Don Giovanni existe em um clima onírico. Ao contrário do que acontece na ópera de Mozart, ele consuma sexualmente suas conquistas. Em outra notável diferença, não há muito humor aqui. Nunca a vi, talvez nunca tenha sido montada no Brasil.
A ópera começa com as vozes das Sombras, que são femininas e estão presentes em quase todas as cenas. As referências pertencem à gravação de 1994, regida por Mauceri, com Kurt Westi e Iris Vermillion nos papéís de Don Juán e La Morte. Jane Eaglen canta a Mulher, a Freira, Margarethe e Donna Anna.
Don Juán faz sexo com uma mulher que pede para ser ferida e ter o sangue bebido; as Sombras repetem "sangue" ("Blut"): https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=661. Ele, no entanto, quer finalmente conhecer a morte; entendiam-no as diversas mulheres que se lhe oferecem: https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=1056. Chega uma freira para perguntar se ele se arrepende dos pecados, mas ela ri quando ele pergunta sobre a alma: https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=1238. Ele se depara com demônios; com estátuas de nobres e de ancestrais. A personagem La Morte aparece, mas ainda não fala. Está com outra mulher, que pressente nele pensamentos ruins. Ele a deixa. Ele se relaciona com Margarethe; mas La Morte chega, apaga a luz do dia e a assassina: https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=3450; Juán não consegue proteger sua amada, pois não é possível matar a morte. Ele vai para a praia e dirige-se às ondas. No ato seguinte, baile de máscaras de carnaval: https://www.youtube.com/watch?v=MY71PqF6R-Q. Ele está com Donna Anna, que teme a reação do marido: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=685. Ele tenta raptá-la, mas ela resiste e o marido, o Comendador, chega e o desafia. Arlequim chama todos para verem o duelo. Don Juán mata-o, claro, e passa a dançar tango: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=944. Donna Anna suicida-se com a espada dele, afirmando que ela pertence a quem realmente ama e que, embora vivo, ele é a própria imagem da morte: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=1310. Na cena seguinte, ele está diante do corpo dela no caixão e lamenta. Ele tenta agarrar alguma das Sombras que dançam em torno; não tem êxito; La Morte aparece, ele a chama de noiva e cobre o cadáver de Anna, dizendo que ela não mais os atrapalhará, agora não passa de uma sombra como as outras. Ela se declara a Juán: (https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=2589), que lhe rasga o véu. Ele é o único homem que consegue ver a nudez da Morte e não recuar. No entanto, eles não podem ficar juntos: ele não se unirá à dança da morte pois foi condenado a viver para sempre. Don Juán resigna-se a continuar a sua vida de sedução: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=3001. Quando as chamas do amor e da morte se reunirão, pergunta La Morte no final.
Flammen passa-me a impressão de um poema sobre a proximidade e a incompatibilidade entre a morte e o desejo. Ficou como uma obra isolada, pois seu compositor, em razão do totalitarismo, da Guerra Mundial e do genocídio, não pôde voltar a escrever para o palco e foi morto anos depois, e a própria carreira desta singular obra-prima foi interrompida, ao contrário da ópera de Mozart, que jamais deixou de ser apresentada.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro (A Judia, de Halévy, e Em busca do tempo perdido, de Proust)
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme (La serva padrona, de Pergolesi, por Carla Camuratti)
Dia 26: Uma ópera que se tornou música (O Anjo de fogo, de Prokofiev)
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

sábado, 13 de outubro de 2012

Dançando diante do terror: 70 anos da morte de Schulhoff

Em agosto de 2012, fez setenta anos que o compositor tcheco Erwin Schulhoff (1894-1942) morreu, provavelmente de tuberculose, como prisioneiro dos alemães, no campo de concentração de Wülzburg. Uma das formas de assassinato nos campos de concentração era a carência ou a ausência de cuidados médicos. Ele ainda escrevia música no campo, e sua oitava sinfonia ficou inacabada.
Schulhoff nasceu em Praga; filho de família de comerciantes, revelou um talento precoce para a música, tendo sido logo elogiado por ninguém menos do que Dvorák. Mais tarde, chegou a estudar com Max Reger e Debussy (com quem não teve boas relações, por sinal).
A I Guerra Mundial, em que lutou, trouxe-lhe a consciência política e levou-o para a vanguarda e para a esquerda. De compositor tributário de um romantismo tardio, foi influenciado pela Segunda Escola de Viena (embora criticasse o elemento rítmico na música de Schönberg - o que Boulez, por exemplo, também faria poucas décadas depois), pelo dadaísmo, o jazz e o neoclassicisimo. Ele encarnou muitos aspectos dessa década. Mais tarde, no início dos anos 1930, converter-se-ia ao comunismo, o que também mudou sua linguagem musical, que ficou mais próxima do realismo socialista.
Chegou a naturalizar-se cidadão soviético, o que o salvou quando a Tchecoslováquia foi invadida pela Alemanha - era cidadão de Estado que havia pactuado com os alemães. A invasão alemã na URSS, no entanto, selou seu destino: ele não tinha conseguido emigrar para o seu novo país: tivera a invasão acontecido meses depois, ou a burocracia soviética tivesse sido menos lenta, a história teria sido outra: ele já havia mandado suas partituras por mala diplomática. Preso em 1941, foi mandado para um campo de concentração de Wülzburg,e não para o de Terezín, campo para que foram conduzidos outros músicos judeus (como Viktor Ullmann, Ilse Weber, Gideon Klein), pois aquele era o destino dos cidadãos soviéticos aprisionados. Sobreviveu pouco tempo ao terror nazista.
Nesta ligação, pode-se ler uma biografia do músico: http://orelfoundation.org/index.php/composers/article/erwin_schulhoff/ Nesta outra, uma lista das obras e uma discografia: http://claude.torres1.perso.sfr.fr/Schulhoff/index.html
No portal Musicologie, além de uma biografia com excertos de críticas da época, bibliografia ativa e passiva, e a lista das obras, há seis exemplos sonoros no fim da página: http://www.musicologie.org/Biographies/s/schulhoff_erwin.html
Este trabalho universitário da violinista e professora Eka Gogichashvili, embora se concentre na Sonata para Violino e Piano n. 2 (importante peça da música de câmara do século XX, que recebeu bela gravação no discoImpressões de infância", de Gidon Kremer e Oleg Maisenberg), fornece uma panorama musical e biográfico de Schulhoff bastante útil, e boa parte das fontes citadas não está mais em catálogo: http://etd.lsu.edu/docs/available/etd-1111103-195959/unrestricted/Gogichashvili_thesis.pdf
Nunca poderá ser devidamente avaliado o que se perdeu com o horror nazista,com as possibilidades de vidas e de mundos novos destruídas irremediavelmente. A música foi um só um dos campos dessas perdas. Penso em Gideon Klein, morto aos 26 anos. Em Hans Krása. Em Pavel Haas. Viktor Ullmann e sua obra-prima, escrita no campo de concentração de Terezín, O imperador de Atlantis, que satirizava o ditador alemão. E penso em Schulhoff.
Não me lembro mais como o conheci - mas foi no século XXI. Eu tinha poucos discos da série Entartete Musik, que a Decca criou na década de 1990 para lançar ou relançar música banida pelo nazi-fascismo. Os nazistas haviam feito uma exposição de arte "degenerada" ("entartete", daí o nome da coleção) para incluir tudo que tivesse influência de arte não europeia (como o jazz), autores esquerdistas, judeus etc. A Decca gravou obras de Schulhoff, mas eu não as vi na época. Creio que foi um disco de Gidon Kremer e sua Kremerata, para a antiga Teldec, que me chamou a atenção para o compositor.
Diversas faces adotou sua música: um romantismo tardio, que, após a I Guerra, cedeu espaço para o dadaísmo e para o jazz. A conversão ao comunismo fez com que o realismo socialista adentrasse sua música, nem sempre com bons resultados. Ele chegou a musicar o Manifesto Comunista - infelizmente, nunca ouvi esse oratório, de que há pelo menos uma gravação. A revista Grammophone julgou-o desigual, com marchas militares "desagradáveis", "fascistas", e um final "chato", que não estaria à altura das palavras do Manifesto. É possível que a crítica seja correta e ele tenha pisado a garganta de seu canto, como fez Maiakóvsky; nunca ouvi nada de bom que seguisse o oficialismo soviético.
[Nota: o disco não está mais disponível, mas a gravação do oratório está no YouTube; vocês podem julgar por si mesmos, apesar de a execução não ser exemplar: http://www.youtube.com/watch?v=dAujsDBZByA]
Como vários desses compositores que tiveram suas trajetórias interrompidas pelo nazismo, suas obras sofreram certo esquecimento - e as vanguardas que vieram após a II Guerra não tiveram interesse nesses compositores. No entanto, temos hoje em disco grande parte da sua obra. Alguns grandes nomes de hoje, como os violinistas Gidon Kremer, Daniel Hope e também Renaud Capuçon, o violoncelista Gautier Capuçon, a meio-soprano Magdalena Kozená, entre outros, gravaram-no.

Aconselho ouvi-lo. No trabalho de Gogichashvili, a autora ressalta como o jazz é usado para criar harmonias estranhas à música clássica ocidental, como o Dada está presente no elemento rítmico, mas também o barroco e o romantismo. No entanto, a escrita é tão segura que a música não perde coerência, testemunha-o esta gravação da exultante partitura:
https://www.youtube.com/watch?v=qwSw11HjmNw&feature=related
https://www.youtube.com/watch?v=SH7XJC8_1Vg&feature=relmfu

É possível ouvi-lo até mesmo sem som. Uma de suas peças dadaístas, 5 Pittoresken, de 1919, dedicada ao pintor dadaísta e antiburguês Georg Grosz, inclui um movimento todo feito de pausas, escrito décadas antes de uma tentativa semelhante de John Cage. Diferentemente deste último compositor, o ritmo de Schulhoff, como geralmente ocorre, é complicadíssimo; vejam este início da música:

Além das pausas, há notações não musicais, como sinais de exclamação, o que torna esta peça, de fato, um evento, apesar da falta de som. Esta interpretação é muito interessante:
 https://www.youtube.com/watch?v=3c5lRRaW4Jw

Ela sugere a mudez e o espanto da civilização diante desse futuro, imaginado como catástrofe. Grosz havia sido preso logo depois da I Guerra Mundial por sua participação na marxista Liga Espartaquista. Diferentemente de Cage, este silêncio é político, bem como o uso do ragtime e do maxixe nos outros movimentos das Pittoresken. Segundo Gottfried Eberle, nas notas do disco duplo que Margarete Babinsky gravou em 2008 do piano solo de Schulhoff, ele foi o primeiro compositor alemão (mas, na verdade, ele era tcheco!) a adotar uma forma de dança dos EUA.

Um exemplo marcante de seu estilo jazzístico é o oratório H.M.S. Royal Oak, de 1930, com libreto de Otto Rombach. Ele conta a história verídica de uma revolta ocorrida no navio britânico que fornece o título da peça. A rebelião foi causada por uma proibição de jazz a bordo! A Jazzrevolte der Matrosen (revolta-jazz dos marinheiros) é vitoriosa no fim, que explicitamente ataca o racismo. A luta por essa linguagem musical, considerada perniciosa pela direita por sua origem africana, era uma bandeira política contra a crescente onda do fascismo na Europa.
O navio foi o primeiro da marinha britânica a ser afundado pelos nazistas, já em outubro de 1939. 
A Ebony Band gravou a obra com a Cappella Amsterdam em um disco muito interessante que inclui peças de Weill e Toch. Não encontro na internet o oratório-jazz, mas temos a sonata que escreveu para saxofone e piano, a Hot-Sonate: http://www.youtube.com/watch?v=xEINXjjcsNw&feature=related 
Um dos trabalhos mais populares de Schulhoff, a Hot-Sonate é encontrada também como concerto para saxofone e orquestra, numa orquestração feita por Detlef Bensmann.
Bach estilizou as danças de seu tempo, Schulhoff fez o mesmo com as de sua época, incluindo o tango. Também a música brasileira recebeu esta leitura no Orinoco, de 1934. A gravação é da Ebony Band Amsterdam, regida por Werner Herbers, do segundo disco, desse grupo, dedicado apenas a Schulhoff:
 http://www.youtube.com/watch?v=H5uPJ5-ri1w&feature=related

As peças que mais gosto de Shulhoff são as de câmara, pois encontro nelas, em geral, mais ironia e surpresa. No entanto, aprecio muito sua única ópera, Flammen, ou "chamas", que pode ser ouvida integralmente nestas ligações:
Trata-se da gravação, feita em 1993 e 1994, da série Entartete Musik; como a maior parte dos discos dessa coleção, ela não foi relançada. John Mauceri é o maestro, com a orquestra Deutsches-Sinbfonie de Berlim e o RIAS-Kammerchor Berlin.
O tema da ópera foi-lhe sugerido por ninguém menos do que Max Brod, que lhe mostrou a peça em verso Don Juan do escritor tcheco Karel Josef Benes, que foi o próprio autor do libreto, traduzido por Brod para o alemão.
O libreto tem antes o caráter de um poema do que de um drama teatral tradicional, em razão de caráter estático e simbólico. Em comparação, o libreto de Pelléas et Mélisande é realista demais... A música de Schulhoff é capaz de criar os estranhos climas de cada cena, que oscilam entre o delírio, o sonho e o sexo, as ruas, os salões e o mundo das sombras.
Em Flammen, temos a encenação do amor impossível de La Morte por Don Juan. La Morte é capaz de matar mulheres seduzidas por ele, mas não o consegue matar, apesar de ele também desejá-la. Como em Don Giovanni de Mozart, na penúltima cena da ópera aparece a estátua do Comendador (que também em Schulhoff foi assassinado por Don Juan), mas ela o condena a viver eternamente. Deseperado, ele tenta suicidar-se, mas o tiro tem outro efeito, rejuvenesce-o. Antes, Dona Anna (que, nesta ópera, é esposa e não filha do Comendador), havia se suicidado, após o assassinato do marido, dizendo ao sedutor que ele era a própria imagem da morte.
A música de Schulhoff conserva toda sua variedade nesta ópera. Na terceira cena, por exemplo, enquanto uma freira e Don Juan fazem sexo, La Morte vai para o órgão e toca um Gloria, que se transforma num foxtrote
No final, indaga La Morte, sem resposta, "Chamas do amor e da morte, quando finalmente se unirão?" No disco, ela é muito bem interpretada pela meio-soprano Iris Vermillion; os outros personagens femininos (La Morte e as mulheres que Don Juan seduz têm a mesma voz) foram enregues a Jane Eaglen, aqui bem dentro dos seus limites vocais, antes de cantar Brünnhilde e Isolde no Metropolitan Opera House e em outros teatros. O protagonista é o tenor Kurt Westi, que soa adequado.

Antes de terminar esta breve nota, lembro que Schulhoff foi descrito como um pianista excepcional, atento aos compositores contemporâneos como Berg, Schönberg e Webern. No entanto, ele escreveu com fluência para outros instrumentos, como a flauta (um caso é o Concerto Doppio para flauta e piano, de estilo neoclássico), para violino e para quartetos de cordas. Mais do que os quartetos, no entanto, indico o Sexteto de Cordas, de 1924, dedicado a Poulenc, mas que lembra (devido aos momentos sem tonalidade definida) que ele foi contemporâneo, embora não seguidor, da Segunda Escola de Viena. Há um disco duplo da Kremerata dedicado a Chostakovich e a Schulhoff com esse intenso Sexteto, bem como o Duo para violino e violoncelo e os Estudos de Jazz para piano.
Kremer não gravou, pelo que eu saiba, a Sonata para violino solo, no entanto Daniel Hope o fez duas vezes: no disco "Forbidden Music", com peças de Gideon Klein e Hans Krása (e um Kaddish) interpretadas Philip Dukes e Paul Watkins, e no disco "Terezín", da meio-soprano Anne Sofie von Otter, que canta com o barítono Christian Gerhaher canções compostas nesse campo de concentração.
A gravação de Ivan Ženatý é mais difícil de achar em disco, porém está na internet: https://www.youtube.com/watch?v=IZO7rjJJH-8&feature=relmfu

Nessa peça, sente-se a imensa vitalidade da música de Schulhoff.  Benjamin Ivry ressalta essa qualidade, sustentando que não é adequado lembrar de um compositor pela forma como ele morreu - e é o que se faz geralmente com nomes como Ullmann, classificados como músicos do Holocausto: http://forward.com/articles/14601/defined-by-quality-/
No entanto, não se pode reduzir a obra desse músico à alegria. Sua vocação para a derrisão era notável. Um exemplo foi a Symphonia Germanica, de 1919, mas estreada postumamente pela Ebony Band Amsterdam; ela satiriza crualmente o hino alemão e o heroísmo germânico revela-se o delírio de um bêbado: "und wir alle, Deutsche Männer/ sterben so gerne, ach, den Heldentod".
E Schulhoff era perfeitamente capaz de expressar a revolta, a loucura e a morte, como se vê no Sexteto e em Flammen. É notável que ele o tenha feito sem perder o sentido da dança.

Para terminar dentro desse sentido, ouço o próprio compositor tocando seu Shimmy-Jazz, de 1928: