O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Ópera e natureza: "Lohengrin" de Sciarrino (30 dias de ópera: Dia 16)

Não tinha ideia do que escolher para este dia: o tópico ópera e natureza poderia significar uma obra com personagens que fossem animais não humanos, como A raposinha esperta, de Janacek (ou a Platée, de Rameau)? Ou bastaria que os personagens louvassem a natureza, como o Fausto com seu famoso solo "Nature immense" em A danação de Fausto de Berlioz? Ou o Xerxes (Serse) de Händel, que traz logo no início uma ária de admiração por uma árvore, cantada pelo próprio imperador persa, a célebre "Ombra mai fu"?
Deveria privilegiar a natureza íntima, como na confissão da vestal Julia em La Vestale, de Spontini, de que se apaixonou apesar dos votos de castidade: "basta uma lei para vencer a natureza?"; ou, em comparação entre o íntimo e o ambiente, deveria escolher uma agitação de sentimentos que rivaliza com a dos elementos, caso do Idomeneo de Mozart na sua célebre ária, "Fuor del mar", em que o mar dentro do peito é mais funesto do que o da natureza?
Poderia também comentar a pretensão de que certas escalas musicais seriam naturais, e que, portanto, certas escritas feririam a própria arte musical, de acordo com a crítica reacionária a obras como Wozzeck de Alban Berg?
Ou pensar a respeito da brilhante noção de que o canto operístico não seria natural, ao contrário daquelas formas de emissão vocal que dependem de microfone e de afinadores eletrônicos (estas coisas que nascem nas cascas de árvores, como os líquens) para conseguirem ser ouvidas e na nota correta?? Ou, melhor ainda, que necessitam de uma gravação prévia para uma apresentação "ao vivo", que não passará de dublagem de alguma própria voz alheia?
Tendo em mente essas diversas possibilidades, que estão muito longe de esgotar este tópico, cheguei a pensar no São Francisco de Assis de Messiaen, ópera em que os pássaros de Messiaen (que, como se sabe, gravava e transcrevia o canto desses animais) estão bem abrigados, tendo em vista a biografia do santo católico que ele escolheu para retratar em música. Porém, no segundo ato, comenta-se que os pássaros se calam para ouvir seu sermão.
Gosto bastante dessa ópera, que jamais vi (conseguirei um dia? não convém desesperar), mesmo ela tendo um tempo dramático que faz o Parsifal do Wagner, que é também longa, parecer um thriller. Mas não a achei muito respeitosa com os pássaros, ao contrário desta ópera de Wagner, em que o protagonista mata um deles no primeiro ato para ser repreendido logo em seguida: entre os cavaleiros do Graal, os animais são sagrados, não podem ser abatidos. O compositor, por influência de Nietzsche, já havia adotado o vegetarianismo e o defendeu em sua última ópera.
Nesse momento, a orquestra toca um Leitmotif do Lohengrin do mesmo compositor, ópera escrita décadas antes (e recentemente enxovalhada pelo atual governo federal brasileiro, de políticas nazistas), que retrata a história do filho do Parsifal. Lohengrin chega em cena levado por um cisne que, na verdade, é o irmão da jovem que ele veio defender. Ortrud, a feiticeira, fez com que ele perdesse a forma humana.
A curiosa história, que vem dos mitos germânicos, conta um caso de amor infeliz: Elsa é salva por Lohengrin, o nobre desconhecido, que faz a noiva jurar que não poderia perguntar-lhe o nome. Por instigação de Ortrud, ela lhe dirige a indagação na noite de núpcias (depois da famosa Marcha nupcial) e, entre outros incidentes, ele acaba por revelar publicamente o próprio nome e ir embora (os cavaleiros do Graal precisavam ocultar sua identidade para manter sua proteção).
Laforgue, nas Moralidades lendárias, escreveu um "Lohengrin, filho de Parsifal", de 1887, que configura uma sátira dessa história. E é este Laforgue que serviu de inspiração para outra ópera, o Lohengrin de Salvatore Sciarrino, obra escrita entre 1982 e 1984. O próprio compositor elaborou o libreto. Ela já foi montada em São Paulo durante o Festival Música Nova em 2008, mas não pude vê-la; segundo a crítica de Arthur Nestrovski, a apresentação valeu por todo o Festival.
A obra tem uma duração inferior a uma hora e emprega instrumentistas e recursos eletroacústicos. Uma só cantora interpreta, grita, sussurra as linhas de Lohengrin, Elsa (uma Vestal) e do Grande Sacerdote. A emissão vocal é muito diferente do canto operístico italiano até a primeira metade do século XX; veja-se, por exemplo, nos chamados a Elsa sussurrados, salivados e tossidos na cena III. Tais sonoridades precisam de amplificação.
Lohengrin não quer consumar o casamento com Elsa. Ela insiste, mas ele reclama que os quadris dela são magros. O travesseiro, branco, converte-se em um cisne (Sciarrino, claro, segue o argumento de Laforgue, muito diferente do de Wagner) e o noivo vai embora.
Não há linearidade na exposição dos fatos: depois de partir, temos a terceira cena, em que Elsa espera pelo cavaleiro, como em Laforgue pede um espelho enquanto espera, e Lohengrin chega cavalgando um cisne. Tanto em Wagner quanto na história do poeta francês esses acontecimentos são anteriores à noite nupcial e à partida do cavaleiro do Graal. Sciarrino inverte-os, o que pode sugerir uma recordação, ou um pesadelo recorrente. Ouvimos então o canto do cisne, entoado por vozes masculinas, e, no epílogo, revela-se que Elsa está em um hospital. Nesse momento final, ela canta algo como uma tranquila canção, "Campagne delle belle domeniche", que sinto que acaba soando, em contraste com os tumultos em voz alta ou murmurados de antes, como a confirmação da loucura da personagem.
Em Laforgue, a história tem um clima de alucinação. Com Sciarrino, trata-se de uma "ação cênica invisível" que se passa na mente de Elsa. Carlo Carratelli (na tese "L’integrazione dell’estesico nel poietico nella poetica musicale post-strutturalista. Il caso di Salvatore Sciarrino, una “composizione dell’ascolto”") compara este Lohengrin a Erwartung, de Schönberg, outro exemplo de monodrama com uma mulher provavelmente enlouquecida, e ressalta como este final no hospital, bem como a inversão dos acontecimentos, aumenta a ambiguidade da história. Nesses dois aspectos, Sciarrino afasta-se de Laforgue e cria seu próprio mundo, ainda mais alucinado.
Para esta minha pequena nota, interessa o que o cisne veio fazer ali. Na ópera de Wagner, a forma de animal é um efeito da magia pagã e, no final, a forma humana é restaurada com o triunfo do cristianismo. O paganismo é derrotado, e a natureza também?
Em Sciarrino, o cisne aparece como alucinação-metamorfose do travesseiro que permite a fuga do noivo, quando ele rejeita Elsa. Na terceira cena, com a anunciação do aparecimento de Lohengrin (nada disso é para ser figurado em cena, segundo o compositor), ouve-se o canto não do cavaleiro, mas de um personagem que não canta na ópera de Wagner em momento algum: o cisne, em que o cavaleiro está montado.
O desconcertante canto, cujo exemplo sonoro indiquei acima, é entoado por vozes masculinas, com uma única linha "Vuoi tu vestirti del mio Essere smarrito?" ("Você quer se vestir do meu Ser desaparecido?"). Em seguida, ocorre o epílogo, com a transformação do local em instituição hospitalar.
Todos os outros personagens eram entoados por uma única voz, a da cantora, e a deste outro ser vivo é representada por um trio de vozes masculinas, ressaltando na sonoridade a diferença desta fala, que transporta a ação para fora do cenário da alucinação, se considerarmos que a internação hospitalar é o local "real" desta Elsa.
Para mim, nesta intervenção do único personagem animal não humano, que se revela uma voz coletiva, metamorfoseia o cenário e revela a loucura do humano, poderíamos ver uma alegoria da natureza no Antropoceno. A loucura do Antropoceno em querer fazer desaparecer os outros seres e pretender que se possa, mesmo assim, dormir tranquilamente, que se possa repousar a cabeça sobre tanta extinção.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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