Quando imaginei este tópico, em contraponto ao relativo a estreias, pensei em Dmitri Hvorostovsky. Porém eu consegui vê-lo antes de ele anunciar que estava doente, e ele seguiu cantando ainda por mais algum tempo, até que o câncer o impediu por completo. Vi sua despedida na internet, mas não é a mesma coisa do que estar na presença do artista.
Do artista ou do professor, pois a dimensão performática da sala de aula em sua importância no processo de aprendizagem. Li há pouco notícia em certa revista semanal sobre a liberação de ensino a distância pelo ministro A.W., permitindo no Direito até 40% da carga horária, e a matéria era bem franca ao explicar que a grande questão aí é baratear custos para as empresas privadas (professores e outros empregados, instalações, equipamentos são "custos"), e não a melhora do ensino, lamentável segundo as últimas avaliações.
Resolvi então escolher a passagem pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro da despedida de Leonie Rysanek. Ela decidira deixar os palcos aos 70 anos para, segundo declarava aos jornais, não precisar mais se preocupar, quando levantasse de manhã, com o timbre da voz... De fato, esse tipo de cantor precisa estar muito bem para conseguir interpretar o exigente repertório e se torna refém, mais do que em outros gêneros, de suas condições vocais.
Rysanek era uma estrela desde os anos 1950 (ela estreara em 1949), principalmente em ópera, e na ópera alemã em papéis dramáticos. De seus papéis italianos, o que mais gosto ainda é Lady Macbeth em Macbeth, de Verdi, que ela gravou com o regente Leinsdorf e o barítono Leonard Warren. Apesar do registro grave menos potente e da menor agilidade, ela não passa vergonha diante de Maria Callas e, a seu modo, consegue bem sugerir a loucura na famosa Cena do Sonambulismo.
Apesar de sua afinação não ser muito precisa, tinha uma voz impressionante para os papéis de jovem soprano dramático, onde achou seu nicho sem ser eclipsada por Birgit Nilsson, que se dedicou aos papéis ainda mais pesados e neles reinou inconteste (sem encontrar sucessora comparável até hoje) depois que Astrid Varnay migrou para os papéis de meio-soprano. Enquanto Nilsson era uma Brünnhilde, Rysanek interpretava Sieglinde. Nilsson era uma impressionante Elektra de Richard Strauss, e Rysanek encarnava a irmã, Chrysothemis. Felizes os que puderam ver as duas juntas.
No papel de Sieglinde, de que ela se apoderou, a dimensão criativa dos grandes intérpretes manifestou-se até no grito: quando seu irmão gêmeo e apaixonado consegue retirar a espada que o pai de ambos, o deus Wotan (encarnado como Wälse; não vou contar aqui a história da ópera A Valquíria, de Wagner, que inclui deuses, incesto, contratualismo, opressão e revolta da mulher na sociedade patriarcal), Rysanek, em alguma apresentação nos anos 1950, deu um grito de júbilo, não escrito na partitura. Ela achou que levaria uma bronca, mas Wieland Wagner, o encenador e neto do compositor, gostou bastante, e depois muitas cantoras copiaram. Pode-se ouvir este excitante momento no fim do primeiro ato (o grito ocorre depois de um breve solo do tenor, "Siegmund heiss ich", aqui cantado por James King, aos 2'43'', com a regência de Karl Böhm em Bayreuth em 1964; aqui, em 1958, com Jon Vickers, cuja voz quebra no agudo final, e Hans Knappertsbusch numa regência lenta, ela grita um pouco depois, provavelmente o momento de retirada da espada ocorreu um pouco mais tarde).
Com o tempo, ela migrou para os papéis menos agudos, que podem ser cantados também por meio-sopranos, o que não significa que sejam fáceis; ela cantava a Elsa em Lohengrin; mais velha, tornou-se uma Ortrud; vejam este tour de force no Metropolitan, a evocação dos deuses pagãos contra o mundo cristão que apagava as antigas tradições. Em Elektra, de Richard Strauss e do libretista Hugo von Hofmannsthal, seu papel habitual era o da irmã da protagonista; quando Karl Böhm fez o filme da ópera, Birgit Nilsson estava indisponível, o que fez o maestro pedir para Rysanek gravar sua única Elektra; ela se saiu muito bem apesar da regência lentíssima. Mais adiante, ela passou a cantar o papel da mãe, Klytämnestra, que seria impossível nos anos 1950 e indesejável na década seguinte, por falta de graves: trata-se de uma parte para contraltos ou meio-sopranos.
Depois de quase meio século de carreira, ela não tinha mais nada a provar. Reproduzo o currículo divulgado no libreto das apresentações no Rio de Janeiro, em 1996, que não dá conta, evidentemente, de sua trajetória, com o dos sopranos Marilyn Zschau e Eva-Maria Bundschuh.
A ópera, que estreou em 1909 (no Brasil, em 1923, no Rio de Janeiro), tem uma escrita muito pesada para as vozes femininas, que a dominam, especialmente o soprano que canta Elektra. Depois de entrar, ela não sai mais do palco nesta ópera de um só ato. De tão dramático, trata-se de um dos papéis com fama de destruir vozes. As dissonâncias desta música eram chocantes o suficiente para a época, e são especialmente marcantes no papel da mãe. A partitura é muito difícil também para a orquestra, por isso me alegrei ao vê-la sob a direção musical de uma das promessas da regência brasileira, Eduardo Strausser, no Teatro Municipal de São Paulo em 2016.
Foi o papel da mãe que ela escolheu para a despedida. Apesar de aparecer no palco somente em uma cena, ele é muito marcante. A personagem quer ver a filha ovelha negra por causa de pesadelos que anda tendo; Elektra decodifica os maus sonhos e dizem que eles exigem o sacrifício de um animal... que é uma mulher... que não é mais virgem... a qualquer hora do dia e da noite... um homem a abaterá... um estrangeiro, porém do palácio... O libreto de Hofmannsthal interrompe aí a gradação e faz a filha perguntar sobre o irmão, e Klytämnestra mente. Elektra não se deixa enganar e revela, seja o futuro, seja o seu desejo, que ela mesma, a rainha, deve ser sacrificada! E por seu próprio filho, Orest, vingando o assassinato, cometido por ela e seu amante Ägisth, do pai, Agamemnon! Só depois disso a alegria será possível novamente na cidade. A mãe apavora-se, mas chegam as aias que lhe transmitem um segredo que a faz rir de maneira maníaca. Ela sai gargalhando enlouquecidamente; Chrysothemis chega e o revela: "Orest ist tot" (Orestes morreu). Não foi bem isso o que realmente ocorreu, no entanto...
Estas imagens de 1995 no Colón, pena que em má qualidade, são desta produção, e mostram a saída de cena da personagem: https://www.youtube.com/watch?v=KD6a8pcrE08
A orquestra soa violentamente na entrada da orquestra. Quando Rysanek entrou, lembro bem porque fiquei surpreso, o registro de peito estava bem presente na palavra "Warum" ("por que"), quando ela indaga por que os deuses a oprimem; de fato, a cantora conquistara a voz desse papel. A encenação era genial, passava-se num hospício. Lembro que era uma concepção nova até para a cantora veterana, que a apreciou, segundo a entrevista que deu, acho que ao Globo, pois os personagens da ópera eram loucos mesmo...
A produção, com a cabeça gigante de Agamemnon, veio do Teatro Colón, de Buenos Aires, inclusive com os técnicos. Roberto Oswald fez a direção cênica, a iluminação e os cenários, com assistência, na direção, de Aníbal Lápiz, responsável também pelos figurinos. Foi uma das coisas mais bonitas que já vi no teatro. Era muito impressionante quando Orest se revelava: acompanhantes retiravam a capa que vestia, via-se então que ele estava com uma camisa de força!
O regente Gabor Ötvös arrancou da Orquestra do Municipal do Rio de Janeiro os fortíssimos da partitura, mas eles não intimidaram nem um pouco Rysanek, que encobriu até Marilyn Zschau, a Elektra. O poder daquela voz, sempre aliado ao momento dramático, era impressionante, mesmo às vésperas da aposentadoria. Nem imagino o impacto que ela causava ao vivo quarenta anos antes.
Um ano depois, em 1997, ela morreria de câncer. Ignoro se ela já sabia da doença e por isso decidira se despedir. Ela deixou os palcos triunfante como Klytämnestra sai da cena, com a diferença de que a personagem se enganava em relação ao triunfo.
30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário