O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Uma montagem inesperada assistida: "Tannhäuser", de Wagner, segundo Herzog (30 dias de ópera: Dia 2)

Há tantos motivos para o inesperado, mas cada vez mais se o espera em ópera. Imaginem encenar a tragédia de Otelo no espaço sideral? Já foi feito, até mesmo em São Paulo. Imaginem uma Carmen que não morra no final? Já montaram assim. Um Tristão cocainômano; claro, por que não? Fausto como físico nuclear? Evidente, bem século XIX. Um Nabuco brincando com bolsa de beisebol, que previsível. Così fan tutte em que os dois casais são gays? Era óbvio, Mozart e Da Ponte não podiam nos enganar para sempre.
Com o afastamento de boa parte do público em relação à música contemporânea, e os problemas de se manter uma bilheteria, a inovação em ópera tem caído, em vários lugares, mais sobre a encenação do que sobre a música, o que tem gerado, em certos teatros, uma predominância do encenador sobre os cantores e os outros músicos, inclusive sobre o maestro, ao ponto de o diretor cênico impondo mudanças na partitura. O repertório convencional com uma encenação divergente, eis a nova convenção.
O que poderia ser uma montagem inesperada, então? Dependendo do local no Brasil, simplesmente qualquer produção de ópera seria algo inaudito - não em razão do caráter convencional ou não da encenação ou da música, e sim das condições sociais presentes.
Eu não imaginava o que escolher até, que voltando da última récita de La Bohème, lembrei de uma das encenações mais bonitas, em vários sentidos, que vi: uma produção estrangeira da ópera Tannhäuser, de Richard Wagner, pelo diretor Werner Herzog no Rio de Janeiro.
Trata-se de uma das lendas germânicas tanto apreciadas por Wagner, que escreveu tanto o libreto quanto a música, como costumava fazer. Certamente influenciou-o também Heinrich Heine, embora o compositor antissemita não o tenha confessado.
Depois de uma célebre abertura, que varia de acordo com as duas versões da ópera (a primeira, de Dresde, local da estreia, em 1845; a segunda, de Paris, de 1861, em que o prelúdio conduz à Bacanal; em Paris a ópera foi vaiada, para o constrangimento de Baudelaire), Tannhäuser começa a ópera no reino de Vênus, a deusa se apaixonara por ele. Mas ele sente saudade da vida que levava entre os outros cantores, e deixa a deusa invocando o nome de Maria, mãe de Jesus. Os trovadores encontram-no e levam-no ao torneio, que será assistido por Elisabeth, que o ama. Ela, depois de uma longa ausência, saúda o salão do concurso de canto, conversa com Tannhäuser, curiosa por saber onde ele andava (ele não conta de Vênus, porém). Entram os convidados. No torneio, ele canta em louvor ao amor carnal e a Vênus, o que escandaliza a todos os presentes, que decidem, movidos por pura compaixão cristã, assassiná-lo naquele momento. são impedidos por Elisabeth (ela grita "Haltet ein", "parem", e "Zurück", "para trás", corajosamente enfrentando os assassinos por Cristo). Para expiar o pecado, nosso trovador aceita partir com os peregrinos para pedir perdão ao Papa. Quando os peregrinos voltam (seu sublime coro é um dos trechos mais conhecidos do repertório operístico), ele não aparece. Elisabeth reza e se retira. Wolfram ainda fica e canta para a estrela vespertina, e aparece Tannhäuser, irreconhecível. O tenor acaba contando, em longa e vocalmente difícil narrativa, que o Papa lhe negou a graça, sabendo que ele andara com a Deusa, e que ele só seria perdoado quando seu bastão voltasse a florescer... Desesperado, ele chama por Vênus, ela retorna, mas Wolfram impede a retomada do idílio com a Deusa invocando Elisabeth... Vênus retira-se. A amada cristã morreu, claro, seu cortejo fúnebre passa. Tannhäuser também falece, invocando a "santa Elisabeth". Passam peregrinos anunciando o milagre do florescimento do bastão papal e ouvimos de novo aquele coro sublime, presente desde a abertura da ópera que, assim, fecha o círculo.
Embora esta ópera ainda deva bastante a formatos tradicionais, e tenha uma duração mais comum (por isso, uma boa introdução à arte deste compositor), ninguém mais, mesmo na versão original de Dresde, poderia ter composto esta música. Baudelaire, no seu "Richard Wagner e Tannhäuser em Paris", reconhecendo as raízes do compositor, percebeu essa singularidade após um concerto com obras do compositor: "No que experimentei, entrava sem dúvida muito do que Weber e Beethoven já me havia feito conhecer, mas também qualquer coisa de novo que eu não era capaz de definir, e essa incapacidade me provocava uma cólera e uma curiosidade misturadas a uma bizarra delícia." Tais sensações levaram-no a explorar a obra de Wagner e a descobrir que "sem poesia, a música do Wagner ainda seria uma obra poética, pois dotada de todas as qualidades que constituem um poema bem feito"; essas qualidades estão na forma como todos os elementos estão concatenados; antes dessa passagem, o grande poeta cita os quartetos de seu próprio soneto das "Correspondências", e afirma que nenhum outro música é capaz de pintar tão bem o espaço e a profundidade, materiais e espirituais. Baudelaire reconheceu em Wagner um ideal poético.
Entende-se por que a ópera pareceu estranha na época em que foi composta, salvo para artistas como Baudelaire e Liszt. No século XX, uma montagem de Otto Klemperer na ópera em Berlim, em 1933, comemorando os 50 anos da morte do compositor e colocando trabalhadores no palco, foi atacada pelos nazistas. Sua filha Lotte, leio na biografia escrita por Eva Weissweiler (Otto Klemperer: Ein deutsch-jüdisches Künstlerleben), sentiu-se judia nessa ocasião, diante das manifestações antissemitas contra seu pai e aquela montagem considerada antialemã. Na verdade, era antifascista. O maestro teve de deixar o país em abril de 1933.
No século XXI, contudo, o que haveria de inesperado em montá-la? Werner Herzog havia estreado sua visão desta obra de Wagner em 1997, em Sevilha, no Teatro de la Maestranza. Ele havia filmado Fitzcarraldo no Brasil, e sua dedicação à ópera, que inclui O Guarani de Carlos Gomes, estava presente também em seu cinema.
O inesperado, portanto, era que o Teatro Municipal do Rio de Janeiro recebesse a montagem que, da Espanha, tinha viajado para a Itália, a Bélgica e os Estados Unidos.


O curioso era que o Teatro que originalmente faria a estreia mundial dessa montagem era o Teatro Municipal de São Paulo, contou Irineu Franco Perpétuo. Sevilha o fez e, em 2001, foi o Municipal do Rio de Janeiro que a recebeu com os cenários de Maestranza. A versão escolhida foi a de Dresde, pois, como Herzog explicou para o crítico, "Na versão mais nova [a de Paris], a música é mais avançada, mais modernizada, mas não é tão coerente e unificada quanto a que se verá aqui." De fato, há uma incongruência estilística que só teria sido resolvida se Wagner tivesse tido tempo de reescrever a ópera, o que não aconteceu. No entanto, os trechos mais novos são muito interessantes e fortalecem o papel da Deusa.
Foi apenas a quinta vez que aquele teatro montara esta ópera, e a primeira ocasião que ele era ouvida toda em alemão no Rio de Janeiro. Em 1914 e em 1921, o idioma fora o italiano; em 1945 e 1953, os solistas cantaram em alemão, mas o coro do Teatro, em italiano. Era também a primeira vez que havia solistas brasileiros interpretando esta ópera naquele Teatro, na época presidido por Dalal Achcar.
Depois da devastação do Estado do Rio de Janeiro operada por Sérgio Cabral e Pezão, e com o atual governo "mandar um míssil naquele local e explodir aquelas pessoas" de W. Witzel, uma produção como a de Werner Herzog seria ainda mais improvável.
Este Tannhäuser era infestado pelo vento. O tempo todo ele estava em cena, fazia as vestes dos personagens permanecerem em movimento. O crítico descreveu bem na Folha de S.Paulo ("Herzog reforça estatismo de 'Tannhäuser'", 27 de junho de 2001) a concepção de Herzog:
Praticamente não há cenário; Vênus, encarnação do amor carnal, veste o mais vivo dos vermelhos, enquanto Elisabeth e os menestréis, representando o amor idealizado, trajam o mais imaculado dos brancos.
No fundo, 28 ventiladores, invisíveis e sem som (para não atrapalhar a música), produzem um vento constante, a fazer farfalhar o tempo todo a seda ligeiríssima dos despojados figurinos. O "Tannhäuser" de Herzog é uma ópera da imaterialidade.
A montagem foi lançada em DVD, e não deveria ser necessário dizer que funciona muito melhor ao vivo. O vídeo não capta toda a poesia e nuanças de luz de um espetáculo que, no teatro, chega a emocionar.
Ele destacou o soprano Cheryl Studer que, de fato, tinha sofrido uma crise vocal no fim dos anos 1990, mas havia retomado a carreira. No fim dos anos 1980 e início da década seguinte, parecia que ela estava em todos os lançamentos de ópera, cantando os papéis mais diversos: Lucia di Lammermoor e Salome, Odabella e a Condessa de Almaviva, a Traviata e Senta, Kaiserin e Konstanze, Semiramide e Elza von Brabant, Hanna Glawari e Sieglinde, Marguerite e a Rainha da Noite, entre outras conjunções inesperadas. A DG, que lançou boa parte desses discos, estimulava a comparação do repertório de Studer (que ainda cantava canções de câmara, sinfonias, oratórios) com o ecletismo vocal de Lili Lehmann e de Maria Callas. Certamente ela entrou em crise por essa razão e a gravadora a deixou, embora tivesse voltado a cantar bem depois.


No Rio de Janeiro, ela foi excelente, com a aliança entre potência e a doçura do timbre que faziam dela a própria voz de Elisabeth, o personagem que cantou na ocasião, e havia gravado em disco com a regência de Sinopoli, embora com um tenor não adequado ao papel título. Ainda lembro da expressão no rosto e de suas mãos na frase "Sei mir gegrüsst" perto do fim de sua ária de entrada.
Perpétuo destacou a ela e ao Tannhäuser do segundo elenco, o tenor Heikki Siukola, com uma voz de grande potência e firmeza, um verdadeiro tenor dramático, que não parecia estar próximo de completar sessenta anos. Eu vi os dois elencos. O crítico também destacou a novidade de haver cantores brasileiros capazes de cantar Wagner e nomeou Lício Bruno, que cantou Wolfram, e Céline Imbert, a Vênus. Ele não mencionou Laura de Souza, a Elisabeth do segundo elenco, que tinha a potência necessária para o papel (e um vibrato mais controlado do que o de sua colega brasileira), e também o alemão (ela cantou muito na Alemanha), embora não a excepcionalidade do timbre de Studer.
Dezoito anos depois, não lembro bem da regência de Karl Martin. Uma das duas récitas em que estive presente foi dedicada à memória de  um violinista da orquestra que acabara de morrer, se não me engano, e creio que isso afetou o ânimo dos colegas, que não tocaram tão bem quanto na outra a que assisti.
Fernando Portari cantou muito bem a canção de Walter, um personagem para tenor lírico, no torneio. O jovem Paulo Szot, o Biterolf, ainda não era a grande estrela em que se tornou; há dois anos, eu o vi cantar a romança do Wolfram no Teatro São Pedro.
A montagem realmente seguia o que Werner Herzog pensava sobre a obra, conforme declarou ao Jornal do Brasil: "Não há qualquer tipo de ação em Tannhäuser, é apenas a história de almas atormentadas. É um drama espiritual. Eu tentei encenar almas em comoção”. Não li a autobiografia do compositor, mas segundo as citações no Guide des opéras de Wagner, organizado por Michel Pazdro e editado pela Fayard, trata-se de algo bem próximo do que Wagner pensava sobre a obra, um "percurso psicológico".
O que me chamou a atenção era o fato de que, apesar da diferença cromática entre os cristãos e o mundo pagão da deusa Vênus, nos dois reinos o vento estava presente, mostrando que o conflito se dava entre duas ordens de espiritualidade diversas, e não exatamente entre o corpo e o espírito.
Enquanto escrevia isto, pensei em outra possibilidade: a de o espírito soprar, indiferente à dualidade Paganismo/Cristianismo, Vênus/Maria, e se importar realmente com a natureza e com o florescimento.
Mais um fator para tornar uma montagem desse tipo ainda mais improvável no Brasil de hoje, que devasta as florestas, polui as águas, assassina indígenas e concede a condenados por fraude em mapeamento ambiental o ministério do meio ambiente.
Talvez uma montagem antifascista de Tannhäuser incomodasse bastante nos dias de hoje. Ela seria bem inesperada, no entanto.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida
Dia 3: Uma estreia assistida
Dia 4: A primeira ópera assistida
Dia 5: O primeiro disco de ópera
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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