O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

30 dias de ópera: um desafio político

Em 2011, resolvi participar de um desafio de trinta dias sobre livros, que vi pela primeira vez no blogue de Niara de Oliveira. Eu acabei tendo coragem de participar, modificando-o um pouco e lhe dando o título "30 dias de leituras: Um desafio e o direito à literatura".
Em 2017, a partir de uma lista que vi dezenas de pessoas respondendo, e, várias delas com visível desinteresse em relação a esse gênero musical, o que me irritou, propus para mim um "30 dias de canções: um desafio em tempos de fim da canção?" a partir de uma lista em inglês, que transformei segundo meus interesses artísticos.
Agora, no fim de 2019, resolvi imaginar este, sobre ópera. Trata-se de um gênero que vejo/ouço desde a adolescência. Curiosamente, em 2017 ingressei em um Coro, a Associação Coral da Cidade de São Paulo, que é uma organização não governamental, que produziu uma ópera em 2018, a Carmen, de Bizet, e duas em 2019, A flauta mágica, de Mozart, e La Bohème de Puccini, cujas últimas récitas ocorrerão em 7 e 8 de dezembro, todas com a regência de Luciano Camargo e a direção cênica de Rodolfo Vázquez.
Essas produções, apesar do meu papel modesto, me fizeram ver um pouco o gênero por dentro e, em consequência, me admirar como elas possam dar certo, apesar de tantas oportunidades para o fracasso: a orquestra, os solistas, o coro, a regência, a direção cênica, o figurino, o balé, o cenário, em todos esses campos podem ocorrer desastres. É, de fato, um trabalho coletivo, apesar do star system que também nele se faz presente. Por isso, a ópera emociona tanto, quando o milagre da conjunção de tantos elementos artísticos opera-se.
Como nos outros dois desafios, eu me posiciono antes de tudo como espectador, e talvez o que eu venha a escrever tenha algum interesse como sinal do que parte do público pensa. Talvez possa até mesmo ser esclarecedor para uma ou outra pessoa, tendo em vista que este gênero musical/teatral, apesar de secular, não é tão conhecido. Colegas falaram de gente do público saindo, perplexa, porque não encontraram os microfones que os cantores usariam...
Os cantores, tanto os solistas quanto os do coro, cantaram sem microfone algum, o que normalmente ocorre em ópera. Isso choca quem não conhece música, sei disso. Imaginem pessoas que ignoram a tal ponto as possibilidades do corpo humano, que desconhecem que uma voz treinada pode ser ouvida, mesma com orquestra e coro, sem amplificação artificial?? Pessoas que acham que não havia música vocal antes da invenção do microfone? Vê-se nesse ponto como as commodities da indústria de entretenimento, consumidas nos meios de massa, são também máquinas de ignorância.
Esse desconhecimento básico do que é a voz humana, propiciado pela música comercial, ocorre com outros. Imaginem sítios de "open culture", por exemplo, que veem apresentações de cantatas de Bach e acham que se trata de ópera, na ignorância completa da dimensão teatral do gênero??? Johann Sebastian Bach, por sinal, jamais compôs uma ópera sequer.
Outro fator que me levou a criar este desafio é que, em tempos de obscurantismo, fazer arte pode ser um desafio político. É verdade que há países, como o Irã, em que o gênero é proibido; as limitações às liberdades artísticas e de expressão chegam a tal ponto. Porém o que me importa é que a imaginação artística mobilizada pela ópera pode sugerir novos mundos, seja na música, seja no teatro. E que ela incomode, por exemplo, a direita e os fascistas, seja pelos nazistas na década de 1930 perseguindo e conseguindo fechar a Ópera Kroll, dirigida pelo grande Otto Klemperer, e que fazia montagens de obras de vanguarda de Hindemith, Schoenberg, Kurt Weill e Brecht entre outros. Ou que escandalize hoje os equivalentes atuais daquelas espécies políticas, como aqueles que falaram de "genocídio branco" porque, no Metropolitan Opera House, em Nova Iorque, em uma comédia de Donizetti, La fille du régiment, os papéis principais foram assumidos por uma cantora negra sul-africana, Pretty Yende, e por um tenor latino, mexicano, Javier Camarena. Os dois fizeram um sucesso tremendo neste ano, e isso incomodou muito os racistas.
A flauta mágica, de Mozart, foi um exemplo de ópera política em sua época, com sua agenda iluminista e contrária ao Antigo Regime. Por essa razão, fazia sentido encená-la atualmente, como fez o maestro Luciano Camargo em agosto deste ano em São Paulo, com ligeiras mudanças no texto e a sagração de Pamina, a protagonista feminina, no final.
Imaginei este desafio "30 dias de ópera" com uma abertura e um fim, uma primeira seção com tópicos de experiência pessoal com o gênero; uma segunda, com elementos do gênero; uma terceira, sobre temas específicos, algo mais semântico; uma quarta com transformações de ópera seja em outras obras artísticas, seja em fatos históricos. Será divertido se outras pessoas quiserem criar desafios congêneres.


Primeiro dia: A ópera de hoje
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida
Dia 3: Uma estreia assistida
Dia 4: A primeira ópera assistida
Dia 5: O primeiro disco de ópera
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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