Eu era adolescente. Já conhecia, por causa dos discos, pelo menos a marcha triunfal do segundo ato e a ária do tenor, "Celeste Aida". O disco do Luciano Pavarotti que eu tinha dava a ilusão de que a ária era fácil para um tenor lírico; ao vivo, percebi que isso não era verdade. Ela aparece no início da ópera; o guerreiro egípcio Radamés exprime suas esperanças de ser escolhido como líder das tropas egípcias e dedicar a vitória a sua amada Aida, uma escrava etíope.
Neste vídeo, Pavarotti canta-a no mesmo ano em que vi a ópera pela primeira vez; era um ator limitado, mas a voz soava realmente vizinha ao sol: https://www.youtube.com/watch?v=XP1vp_G9mLc
Foi Carlos Kleiber que escreveu que, quando Pavarotti canta, o sol se levanta... O tenor escolheu esse papel para se despedir do Metropolitan Opera House.
Essa montagem no Rio de Janeiro, com os cenários monumentais de Gianni Quaranta, ficou muito famosa e viajou para o Metropolitan Opera House, onde foi filmada com o mesmo soprano do primeiro elenco, Aprile Millo, e o tenor Plácido Domingo; ambos gravariam em disco a ópera com a orquestra desse teatro e o regente James Levine. Essa foi a gravação da coleção 400 Anos da Ópera que a Folha de S.Paulo distribuiu nas bancas de jornal.
Fernando Bicudo era o diretor do Teatro pela primeira vez nessa época. Não lembro de muita coisa do que vi naquela minha primeira vez no Rio de Janeiro com minha madrasta, Jurema. Tenho em mente ainda os cavalos e, no terceiro ato, a enorme solidão de Aida, interpretada por Marion Vernette Moore, no momento em que canta o lamento por sua pátria, a Etiópia: "O patria mia" (neste vídeo, Leontyne Price interpreta-a na sua despedida do Metropolitan Opera House; com o estrondo incessante dos aplausos, a artista deixa o personagem e agradece seu público). Verdi era especialista nesse tipo de lamento desde, ao menos, Nabucco e seu famoso coro dos escravos, "Va pensiero".
Essa ópera, como se sabe, foi fruto de uma encomenda da Ópera do Cair e estreou em 1871. A história de guerra entre egípcios e etíopes é sitiada pela de amor: a princesa etíope, Aida, foi capturada e serve de escrava para a do Egito, Amneris. O líder dos guerreiros egípcios, Radamés, é amado pelas duas, mas só tem olhos para a escrava. Aida divide-se entre o amor por Radamés e a lealdade a sua pátria. Amneris consegue descobrir que Aida ama Radamés e a humilha. As tropas egípcias venceram (a batalha ocorre fora do palco) e os etíopes são carregados como escravos. Em batalha, o pai de Aida é preso, mas esconde sua identidade e pede por seu povo. Radamés, um guerreiro compassivo, pede pela libertação dos etíopes. Aida, depois de lamentar pela pátria, é convencida pelo pai a obter de Radamés o segredo do percurso das tropas egípcias; depois de grande conflito interior, escolhe enganar o amado para salvar o próprio povo. Chega o militar e os dois começam a discutir o relacionamento. Claro que Radamés, o guerreiro apaixonado, revela o segredo militar e que Amonasro aproveita e tenta fazê-lo debandar para o seu lado, e que Amneris chega na hora e o acusa de traidor (todo o dueto entre os amantes e o fim do terceiro ato em doze minutos, Verdi é bem mais rápido do que Wagner). O pai e a filha fogem e o guerreiro se entrega. Ele será julgado por traição, mas Amneris se oferece para salvá-lo se ele casar com ela. O guerreiro apaixonado e fiel não quer mais viver, no entanto, pois julga que Aida morreu. A princesa egípcia revela que Aida, ao contrário do pai, conseguiu fugir. Mas Radamés não quer viver sem a amada, é julgado pelo sacerdotes, não se defende e é condenado a ser enterrado vivo, inobstante os protestos de Amneris. Sob o solo, está ele, até que vê... claro, Aida, que já tinha adivinhado o que aconteceria e tinha se escondido lá para morrer com o amado! A ópera termina em uma passagem sublime com as vozes dos dois amantes, que se unem ao lamento de Amneris com as sacerdotisas, que está sobre a tumba fatal.
A história, em certo sentido, é uma variação do esquema barítono (Amonasro) impede soprano (Aida) e tenor (Radamés) de ficarem juntos, já experimentada por Verdi em La Traviata, Un ballo in maschera e outras, também presente nas obras de outros autores italianos, como Andrea Chénier de Giordano, Il Tabarro de Puccini... O aspecto monumental que uma encenação de Aida pode explorar, no entanto, sempre pode ser atraente para boa parte do público. Em termos de políticas de gênero, com o guerreiro tomando decisões guiado pelo amor, e a princesa colocando a nação em primeiro lugar, a ópera pode ser vista como algo não tão convencional.
E há a questão colonial. Edward Said, em Cultura e imperialismo, recolheu um ensaio sobre esta ópera, que cumpriria o papel de "confirmar o Oriente como lugar essencialmente exótico, distante
e antigo onde os europeus podem se permitir certas exibições de força". Said continua, tratando da origem do libreto:
[...] Verdi podia se valer, e de fato se valeu, pela primeira vez na ópera europeia, de uma visão histórica e de uma autoridade acadêmica no campo de egiptologia. Essa ciência estava encarnada na pessoa de Auguste Mariette, próximo de Verdi, cuja nacionalidade e formação francesas faziam parte de uma genealogia imperial fundamental. Verdi talvez não tivesse como conhecer a fundo a pessoa de Mariette, mas ficou muito impressionado com seu roteiro inicial e reconheceu nele um especialista qualificado cuja competência poderia apresentar o antigo Egito com uma credibilidade legitimada.A egiptologia era uma ciência filha do imperialismo europeu, especialmente o francês. Enfim, "Como forma altamente especializada de memória estética, Aida encarna, tal como se pretendia, a autoridade da versão europeia do Egito num momento de sua história oitocentista".
O que se deve enfatizar aqui é que a egiptologia é a egiptologia e não o Egito.
A interessante leitura de Said é confrontada, no entanto, com alguns fatos do libreto e com a própria música de Verdi. Não sei quantas pessoas saem desta ópera querendo invadir países africanos. Acho bem improvável que existam; Paul Robinson, em um artigo bem interessante, "Is "Aida" an Orientalist Opera?", que saiu em 1993 no Cambridge Opera Journal, lembrou que, na história, o Egito está a agredir a Etiópia, ele não está no papel de povo sujugado, muito pelo contrário.
Robinson faz notar que "A more natural reading would be to see the opera as an anti-imperialist work, in which the exploitative relation between Europe and its empire has been translated into one between expansionist Egyptians and colonised Ethiopians."
Os fascistas, na Itália, informa Robinson, usaram esta obra para representar a invasão e conquista da Etiópia pelos italianos. O caráter anti-imperialista de Aida aparece também na música: a música de Ramfis, o grão-sacerdote e dos outros sacerdotes egípcios rementa à música religiosa europeia. A música diferente da do idioma europeu que Verdi emprega é a de Aida na evocação de sua pátria; escreve Robinson: "Instead of four-square diatonic marching tunes, he writes music distinguished by its sinuous irregularity, its long legato lines, its close intervals, its chromatic harmonies and its subdued woodwind orchestration, in which the reedy tones of the oboe play an especially prominent part."
Eu acrescentaria que, como SEMPRE em sua obra, Verdi não esconde sua simpatia pelos povos que estão em situação de opressão: Aida é um personagem muito mais simpático do que Amneris (senão, jamais acreditaríamos que o líder das tropas egípcias preferiria a escrava à princesa) e musicalmente mais marcante. Parece-me evidente que o compositor teria sido morto por seus compatriotas, ou, no mínimo, surrado nas ruas e obrigado a se exilar, como aconteceu com o maestro Arturo Toscanini (um de seus maiores intérpretes), se tivesse vivido no século XX durante o lamaçal político do fascismo.
Dito tudo isso, uma das frases que mais amo em todo o gênero operístico é a do Amonasro no dueto do terceiro ato. Depois de Aida afirmar que será digna da pátria e cumprirá a missão, ele a consola pedindo para que Aida pense no povo vencido, inconsolável, que poderia ressurgir por ela: "Pensa che un popolo vinto, straziato,/ Per te soltanto risorger può."; ela retruca: "Oh pátria, quanto me custas". A épica frase ascendente do barítono deixa alguma esperança de que aquele povo poderá libertar-se.
Há uma nota arqueológica curiosa, que o conde de Harewood conta na sua edição do livro de Gustave Kobbé, O livro completo da ópera: "O regente Edward Downes informou-me que em 1925 foram encontrados no interior da tumba de Tuntancâmon, então aberta pela primeira vez, dois trompetes, um afinado e lá bemol, o outro em si natural"; na ópera, na chamada cena triunfal, os trompetes do primeiro grupo tocam o tema da marcha em lá bemol, e os do segundo, em si natural. Algo a música de Verdi teria captado do Antigo Egito.
30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida
Dia 5: O primeiro disco de ópera
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã
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