O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

Mostrando postagens com marcador Ficção contemporânea. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ficção contemporânea. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 16 de julho de 2021

O absurdo e ordinário no romance Urinol, de Diego Callazans

Diego Callazans tinha-me pedido uma orelha para seu primeiro romance, Urinol. Eu gostei bastante do livro, que tem a estranheza da prosa, já bem própria, desse autor, e a presença de personagens LGBTQIA+, uma constante em sua ficção, que inclui não apenas Contos estranhos, publicado em 2019, como a novela Teresa, que está em campanha de financiamento coletivo.

A obra nasceu de um programa de residência literária do Sesc em Santa Catarina. Vejam este pequeno vídeo no sítio da instituição com recomendações literárias de Callazans, que incluem Orlando, de Virginia Woolf. Em Urinol, há uma mulher transexual e há magia, mas esses elementos não se cruzam como no romance da escritora inglesa. A história do livro é bem brasileira: tivemos no país recentemente uma escalada de assassinatos transfóbicos: recente relatório da ANTRA (a Associação Nacional de Travestis e Transexuais) estimou 89 casos de pessoas trans assassinadas no primeiro semestre de 2021. 

Essa violência aparece em Urinol, porém mais não digo.

Copio da imagem da capa no twitter do autor, que indica a ligação para a compra:


Creio que vejo pelos felinos sobre o livro. Uma gata é personagem, por sinal.

Apesar de eu ter atendido ao tamanho solicitado, o editor resolveu cortar e reescrever o texto por conta própria. Acho que não ficou bom; reconheço que talvez antes também não estivesse. No entanto, como o autor gostei do que eu havia escrito, e o textinho sempre pode servir para divulgação do romance, segue a orelha que escrevi:


Em 2019, Diego Callazans, após alguns volumes de poesia, publicou seu primeiro livro de prosa de ficção, Contos estranhos. O efeito de distanciamento causado pelo narrador, que contava imperturbável e formalmente fatos grotescos e cruéis, indicava uma personalidade singular na literatura brasileira, sem correspondente entre os contemporâneos.
O mesmo efeito aparece em Urinol, seu primeiro romance, cujo título evoca tanto o banheiro do primeiro capítulo quanto o célebre readymade de Duchamp, “Fonte”. A história se passa em Aracaju e combina a paixão entre uma mulher transexual e um lutador cis; um artista andrógino que chega à maneira do Teorema de Pasolini (como um Deus), por quem se apaixonam um pai de família e a gata Pandora; a mãe de família e seu amante devorado; um happening que se torna carnificina; a jovem lésbica (em parte inspirada em Jacqueline du Pré) que lida com entidades cósmicas e o violoncelo; um incêndio transfóbico; e a arte, motivo de aulas e crimes.
“A arte redime a espécie”, lê-se na inscrição do banheiro. O que é, portanto, o urinol, uma obra de arte, um objeto útil, ou a redenção? O romance inspira-se no gesto de Duchamp de alterar a percepção do público e brincar com contextos e fronteiras. A ambiguidade dos personagens, desde o seu gênero, estrutura a história até o súbito final, tão surpreendente quanto lógico – caracterização que se pode estender ao conjunto da prosa de Callazans: uma arquitetada combinação do comum com o absurdo (única possibilidade de redimir-se).

 

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Incels, gafanhotos e neoliberais: Lançamento do meu romance Gravata lavada





Espero lançar um romance, Gravata lavada, no dia 9 de dezembro na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. A editora é a Patuá, a mesma de O desvio das gentes, que publiquei em outubro de 2019.
Escrevi o livro, o meu primeiro neste gênero (já publiquei poesia, ensaio e contos), no início de 2017. Acabei revisando-o neste ano de 2019, e Eduardo Lacerda, o editor, manifestou interesse nele.
Eu mesmo escrevi a orelha, que espero que sugira o espírito desta escrita:
Com Mariano, entram em conflito policiais, editores de literatura, desembargadores e suas liminares, diretores de cinema, incels, recepcionistas de empresas do latifúndio, estudantes universitários reprovados, músicos pop machistas, o prefeito da cidade, diretoras de teatro, neonazistas em redes sociais, militantes cisnormativas, capangas do tráfico de escravos, professores de oficinas literárias, cristãos fundamentalistas, jurados de prêmios musicais, o secretário de assistência social, um filósofo mascote do liberalismo oitocentista, guardas municipais e outros de diversas espécies enquanto ocorrem audiências da comissão da verdade, chuvas de gafanhoto, linchamentos virtuais, sabotagem de equipamentos públicos por administradores neoliberais, resgate de trabalhadores migrantes, estupros, bancas de concurso para professor universitário, venda de balas nos semáforos, ocupação de imóveis vazios por movimentos de moradia, cerimônias em centro de umbanda, cantos de trabalho no metrô, uso de binders, arranjos musicais para canto e percussão, reciclagem do lixo urbano, troca de fotos de pacientes nuas em grupos de profissionais da saúde, cartas abertas de homens de bem, reportagens sobre pessoas em situação de rua, pareceres para revistas acadêmicas, interpretações da ária “Casta diva”, a publicação de um livro com título “Gravata lavada”.
Mariano, um homem negro e transexual, quer apenas escrever uma história sobre todos.
O título, claro, refere-se à célebre expressão de Teófilo Ottoni na Circular aos eleitores mineiros, de 1860, "nunca sonhou senão democracia pacífica, a democracia da classe média, a democracia da gravata lavada". O livro existe contra essa expressão e o que ela significa e, por essa razão, escolhi aquele trecho como a primeira epígrafe. A segunda, em espírito contrário (fiz o mesmo procedimento, de epígrafes que se contradizem, em Cinco lugares da fúria), tirei-a de Alberto Pimenta, do ensaio ¿Quién otorga los derechos del hombre?, que saiu em espanhol porque ninguém o quis publicar em Portugal.
Pimenta trata teoricamente do direito de ser o que se é, que continua a ser um assunto de vida e morte para as pessoas transexuais.
Na mesma ocasião, em 9 de dezembro, será lançado o mais recente livro de Fabio Weintraub, Quadro de força, também pela Patuá. Nele, está seu ciclo de poemas trans (tema em comum com Gravata lavada), alguns dos quais foram lidos pelo autor em 2018 na Printemps Littérairehttps://www.youtube.com/watch?v=GcXgGOqICCE&

P.S.: O livro está à venda: https://www.editorapatua.com.br/produto/112373/gravata-lavada-de-padua-fernandes

terça-feira, 20 de novembro de 2018

O dia da consciência negra e Não adianta morrer, de Francisco Maciel


Neste 20 de novembro de 2018, dia da consciência negra, Francisco Maciel volta a falar, às 15:30h, na FlinkSampa 2018, a  6ª Festa de Conhecimento, Literatura e Cultura Negra. O evento desta vez homenageia Conceição Evaristo e sua programação, que inclui eventos específicos para o público infantojuvenil e atividades esportivas pode ser lida através desta ligação: http://flinksampa.com.br/
Dia 19, ele falou na mesa "Saber literário: práticas e saberes no mundo da escrita", com Renato Nogueira e António Quino e mediação do curador da Festa, Tom Farias.
Não adianta morrer (São Paulo: Estação Liberdade, 2017) é um livro excepcional. Ele nasceu, como se pode ler na coluna de Rodrigo Casarin, em outubro de 2017, da "chuva de cinzas humanas [que] caiu sobre a Maia de Lacerda. Vinham de corpos de jovens incinerados numa caçamba de lixo". Essa visão macabra no Rio de Janeiro, no bairro do Estácio, aparece mais de uma vez, como nos capítulos 'Pedreira" e "Santa maldição". Álvaro Costa e Silva, em resenha para a Folha de S.Paulo, "Obra de ficção humaniza frios números da barbárie", destacou que a "obra nada tem de autorreferente. Está na contramão da literatura produzida atualmente no Brasil. Os personagens —Guile Xangô, Vavau, Beleco, as Comadres, os Quatro Mandelas— existem além do próprio umbigo."
O livro confirma a independência literária de Francisco Maciel, que não integra nenhuma turma de escritores contemporâneos brasileiros, inclusive de outros nomes da literatura negra brasileira. A diversidade das histórias - praticamente todo capítulo pode ser lido como um conto - acaba por formar um todo na recorrência das situações e no retorno dos personagens. O mosaico nunca se fecha perfeitamente, o que é adequado para a complexidade das situações, e para ações que tanto já se esgotaram (na ideia de que a cidade já está morta) quanto se repetem no futuro (como no capítulo "Tigre Xangô 2100").
Este romance ganha seu caráter paradoxalmente em se apresentar como uma espécie de cidade, que abriga outros gêneros, como o conto, a poesia, o samba enredo, o ensaio e até mesmo o libreto de ópera.
Paul Celan é um dos autores citados nesse romance (assim como no anterior, O primeiro dia do ano da peste), especialmente o famoso poema "Todesfuge", sobre campos de concentração, com o "túmulo nos ares" escavado pelas próprias vítimas; diz Celan, "a morte é um mestre da Alemanha".
No Rio de Janeiro, as cinzas dos mortos também são entregues aos ares. Em outro capítulo de Não adianta morrer, experiências da Segunda Guerra Mundial são contadas por um antigo combatente, João Amorim; sobre os alemães, ele conta a Rafa que "achavam que os brasileiros eram bárbaros e que os nossos soldados negros eram canibais. Deviam achar o mesmo dos negros americanos." O jovem, que é um assassino frio (como se vê desde o capítulo "O caderno de notas da Sibila"), faz uma bravata, conta que tomaria o Monte Castelo "com o pé nas costas", "juntando todas as favelas". Amorim concorda, mas replica que "vocês são os alemães"...
Uma cidade que abriga imaginariamente uma guerra mundial? Casarin e Costa e Silva ressaltam a presença da violência no romance. Eu diria mais: a retórica da guerra atravessa-o, bem como ao lamento dos mortos, cada vez maior, e inútil, pois morrer é inútil para cessar o massacre - que seria, no Rio de Janeiro, "A vida apenas, sem mistificação" (o conhecido poema de Drummond, sem este verso, é citado na segunda epígrafe do romance, após um trecho de Memórias póstumas de Brás Cubas)?
A retórica da guerra, em continuidade da doutrina da segurança nacional, volta-se preferencialmente contra o chamado "inimigo interno" que, neste livro, são especialmente os negros e os moradores de favelas.
Os exemplos dessa retórica e do extermínio proliferam em todos os capítulos. Basta aqui citar um dos mais inesperados para quem não conhece a ficção de Francisco Maciel: Josefina, a ratinha cantora de Kafka, torna-se objeto de um plano de opereta, ou "popereta". No libreto planejado, "Ela é negra [...]/ Ela é a única/ E com seu desaparecimento/ Também desaparecerá/ A música". Enquanto isso, 'Os corpos estão queimando/ Na caçamba de lixo, entre pneus,/ E as cinzas caem sobre os becos" ("Josefina Popereta").
O 20 de novembro também é a consciência dessa chuva, que não cessou de cair. A recente ascensão de políticos racistas pode torná-la tempestade.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Desarquivando o Brasil CXLIX: A memória, esse país canibal: lançamento de O amor, esse obstáculo, de Micheliny Verunschk




Hoje, em São Paulo, sairá o último volume da trilogia de romances de Micheliny Verunschk sobre a ditadura militar brasileira: O amor, esse obstáculo (São Paulo: Patuá, 2018). Deixo aqui o início da apresentação que fiz para este livro, que cruza as dimensões das memórias individuais e coletivas. Um dos traços originais do livro é o fato de sua trama se passar já depois da atuação da Comissão Nacional da Verdade. Ele busca explorar o campo que a CNV deixou por descobrir, e cuja atualidade se mostrou dramaticamente tão viva com as eleições de 2018, na vitória, inclusive para presidência da república, de candidatos negacionistas da história e incentivadores de crimes contra a humanidade. No livro, a personagem com Alzheimer é apresentada como símbolo da memória do país...



A memória, esse país canibal: a trilogia de Micheliny Verunschk sobre a ditadura militar brasileira


Depois dos romances Aqui, no coração do inferno (Patuá, 2016) e O peso do coração de um homem (Patuá, 2017), Micheliny Verunschk completa sua trilogia sobre a ditadura militar com O amor, esse obstáculo.
Os personagens do rapaz canibal e da filha do delegado torturador, que haviam se encontrado na imaginária cidade de Santana do Mato Verde na primeira parte da trilogia, voltam a cruzar-se neste volume, que representa mais um exemplo do novo ciclo de memória cultural na literatura brasileira contemporânea.
Neste último romance, Laura, a personagem principal, tenta encontrar a verdade sobre a própria história familiar, especialmente no tocante aos crimes cometidos por seu pai, um torturador que atuou para a ditadura sob o codinome de Capitão Garrote.
Além da tortura e das execuções extrajudiciais de caráter diretamente político, ela tenta entender a violência doméstica que ele produziu, o que pode ter incluído tortura e feminicídio avant la lettre, e que leva à ideia do amor como obstáculo, escolhida como título do livro. A repressão política e a violência de gênero cruzam-se de maneira complexa em O amor, esse obstáculo; elas podem aliar-se, mas também podem ser cometidas de maneira autônoma, e ambas sobreviveram à ditadura.
O peso do coração de um homem teve Cristóvão como centro da narrativa. Agora, Laura volta a ser narradora. O livro inicia-se com a notícia da morte do pai. Ele é encontrado enforcado, o que suscita suspeitas: cometera suicídio, ou fora assassinado por haver comparecido à Comissão Nacional da Verdade para depor sobre as graves violações de direitos humanos por ele perpetradas durante a ditadura? O episódio não deixa de evocar o assassinato de Paulo Malhães pouco depois de seus depoimentos à Comissão da Verdade do Rio e à Nacional.
As providências do enterro do Capitão Garrote são tomadas pelo clube militar, que ele frequentava.
A protagonista decide retornar à cidade natal para recuperar o seu passado, que se confunde, sob certos aspectos, com a história recente do país. Confrontada com as várias dificuldades na tentativa de esclarecer os crimes cometidos pelo pai, desabafa: “Mas o que eu gostaria mesmo é que o mar se levantasse e devolvesse os mortos que foram atirados do céu, que cada um dos desaparecidos nos voos da morte retornasse com seu nome, suas histórias, seus dedos refeitos em coral e sal a apontar os culpados”. Laura sabe, no entanto, da impossibilidade desse resgate.
No romance, conta-se também o reencontro de Laura com Cristóvão, o rapaz canibal, no Rio de Janeiro, o que gera mais desdobramentos à narrativa. Nos volumes anteriores da trilogia, vimos que o pai dela o havia prendido em casa para evitar que ele fosse linchado, e que ela escolhera perder a virgindade com ele. Agora, essa história se torna mais evidentemente alegórica do país: “O fato cru e sem retoques é que papai tornara a nossa casa uma casa-canibal”.
A história é contada, por conseguinte, a partir do prisma da memória e da busca da verdade.
Por essa razão, há algo muito significativo em comum entre esta trilogia e o primeiro romance de Verunschk, Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, 2014). No livro anterior, também nos deparamos com a exploração da memória e a busca pela verdade, além da tematização da violência contra a mulher.
Nesta última parte da trilogia, permanece o traço estilístico de usar citações como sequências da narrativa; um dos capítulos é um poema de Juan Gelman, escritor argentino que foi vítima, com sua família, da ditadura de seu país e da uruguaia.
Nesta apresentação, não contaremos o final do livro; fazemos notar, no entanto, que o desfecho deixa ainda elementos a resolver, assim como o processo histórico que o país hoje atravessa no tocante às continuidades da ditadura.
Da personagem da madrasta, que perdeu a memória por causa do Alzheimer, temos uma revelação importante da história. Ela repetidamente é apresentada a Laura, e dela se esquece, o que leva a este comentário: “Assim a memória individual, assim a história de um país”.
No século XXI, teria começado, segundo Rebecca J. Atencio (em Memory’s Turn: Reckoning with Dictatorship in Brazil, The University of Wisconsin Press, 2014), um novo ciclo de memória cultural na literatura brasileira contemporânea: depois de os temas relativos à ditadura militar terem sido postos de lado, os escritores passaram a retomá-los ou reinventá-los.


terça-feira, 10 de novembro de 2015

Desarquivando o Brasil CVIII: A Resistência, de Julián Fuks, e a transição política no Brasil e na Argentina

Em obras de Julián Fuks, não raro a narrativa se deflagra a partir de uma descoberta, ou da busca, de um espaço privado até então desconhecido: é o caso do apartamento em Buenos Aires (e o "trouxeste a chave" drummondiano, em espanhol, também abre a literatura) em Procura do romance (Rio de Janeiro: Record, 2011); o baú escondido em casa (que guarda simultaneamente a vida e a literatura) de seu livro infantil Menina de papel (São Paulo: Iluminuras, 2013, com ilustrações de Thiago Lopes); o João Cabral confinado pela cegueira em Histórias de literatura e cegueira (Rio de Janeiro: Record, 2007); o muro que um personagem resolve construir para isolar-se e morrer dentro de um sótão em Fragmentos de  Alberto,Ulisses, Carolina e eu (Rio de Janeiro: 7Letras, 2004), sua estreia.
No romance lançado há pouco, A resistência (São Paulo: Companhia das Letras, 2015), temos algo de parecido, porém claramente vinculado à história política do continente. O personagem e narrador Sebastián é brasileiro, mas seus pais são argentinos e ele tem um irmão adotivo que nasceu naquele país. Há problemas de relacionamento desse irmão com a família; o protagonista resolve escrever sobre isso e vai fazer a viagem que o irmão não fez, para a Argentina; um dos impasses a que chega é o de entrar na sede das Mães da Praça de Maio (p. 19); seu irmão seria filho biológico de desaparecidos?
Essa questão, bem como o da fuga dos pais, militantes de esquerda, da Argentina para se estabelecerem no Brasil, enquadra esta história na história recente do Cone Sul, das ditaduras militares e da transição política.
É a primeira vez que Fuks, cuja foto vocês podem encontrar neste blogue em passeata do Cordão da Mentira, vestindo a camiseta das Mães de Maio argentinas, em protesto contra a herança da ditadura militar, escreve um romance com tema vinculado à justiça de transição, numa perspectiva em que Argentina e Brasil são comparados, o que já foi objeto, por exemplo, do muito diferente Duas praças, de Ricardo Lísias.
Já no capítulo 7 do livro de Fuks, põem-se em tensão explícita história e memória. A memória que ele detém, no entanto, não é a dos pais, nem mesmo da Argentina, onde ele não nasceu: "Tenho a idade que meu pai tinha aquela época o bastante para saber que as armas dele não são as minhas" (p. 38). Relembra das conversas entreouvidas sobre o passado militante. Esta memória dos sussurros e dos detalhes incompletos e contraditórios ("Sei e não sei que meu pai fez treinamento em Cuba, sei e não sei que jamais desferiu um tiro com alvo certo", p. 40) que ele não viveu é bem a questão do testemunho do filho.
No livro A literatura e a vida: por que pesquisar literatura?, organizado por Vitor Cei, João Guilherme Dayrell, Michel Mingote e Ferreira de Azara, que deverá sair este ano pela Praia Editora, haverá um artigo meu, "Literatura e Justiça: Julián Axat e os desaparecidos na Argentina", que escrevi a partir de palestra que proferi na UFMG no II SPLIT – Seminário de Pesquisa Discente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit). O livro recolhe as comunicações do Seminário. Nele, trato brevemente da questão da memória de Julián Axat, membro da organização HIJOS, que congrega filhos de desaparecidos e de mortos pela última ditadura. Um hijo, como Axat, como Emiliano Bustos, que tipo de memória tem da ditadura, visto que muitos nasceram após o golpe, ou eram muito pequenos quando ele ocorreu? Cito uma passagem de meu texto:
Sarlo critica o conceito de pós-memória, afirmando que o que existem são “formas de memória que não podem ser atribuídas diretamente a uma divisão simples entre memória dos que viveram os fatos e memórias do que são seus filhos”. Se se reservasse o termo para a memória da “primeira geração depois dos fatos”, “a pós-memória é tanto um efeito do discurso como uma relação particular com os materiais da reconstituição; com os mesmos materiais se fazem relatos decepcionantes e cheios de furos ou reconstituições precárias que, no entanto, sustentam algumas certezas”.
No entanto, a obra de Julián Axat é, realmente, um exercício de pós-memória? Ele está realmente a fazer esse tipo de reconstituição da história dos pais, a tornar as difíceis e fragmentárias reconstituições do passado em poesia? Parece-me que não.
[...]
De um lado, a experiência dos hijos permite-lhes dizer que apresentam suas próprias memórias sobre o terror de Estado: o fato de terem perdido os pais e outros parentes, de terem tido, muitas vezes, sua identidade negada ou subtraída marcou-lhes a infância e representa a marca do terror de Estado em sua história pessoal, inscrita nessa história coletiva. Nesse sentido, suas subjetividades também foram configuradas pelo terror, e isso os autoriza a falar como testemunhas diretas da ditadura.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Ricardo Lísias, Bernardo Carvalho e os discursos do capital


Sempre que é publicado um livro de Bernardo Carvalho, procuro-o e o leio. Em geral, no mesmo dia em que sai a notícia da publicação, como ocorreu com Reprodução. Assim que o terminei, percebi, como vários outros leitores, um paralelo, embora superficial, com obra recente de Ricardo Lísias, O livro dos mandarins, de 2009.
Houve quem dissesse (e até escrevesse) que certamente Bernardo Carvalho teria lido o romance anterior, mas ele mesmo negou tê-lo feito em entrevista ao jornal Zero Hora: http://wp.clicrbs.com.br/mundolivro/2013/10/01/bernardo-carvalho-fala-de-seu-novo-livro-reproducao/
Estive na última quarta-feira em um evento do SESC em que ele falou com Veronica Stigger e Marcelo Mirisola, perguntei sobre esse paralelo e ele ratificou a declaração dada ao jornal, de que não vejo por que duvidar. Os dois livros são muito diferentes, apesar de ambos terem um propósito satírico e apresentarem pessoas ligadas ao mundo corporativo que desejam aprender chinês (sem muito sucesso, por sinal).
Bernardo Carvalho tenta reproduzir tiques de certa linguagem da internet em um registro oral em que nem sempre eles soam verossímeis: na primeira parte, o personagem estudante de chinês fala "curti" como se fosse uma espécie de pontuação ("Morreram, curti, mas nasceram outros no lugar", p. 45), numa referência pouco sutil do romancista ao facebook. Na terceira, aparentemente, o autor esqueceu desse tique estranho.
Nas três partes, temos principalmente uma única voz de um diálogo que soa, dessa forma, como um monólogo. O procedimento é cansativo e, para que aquela falação se torne mais compreensível e, talvez, verossímil, o personagem estudante de chinês faz muitas perguntas e repete demais o que lhe está sendo dito: por conta desses artifícios narrativos, ele não apenas se mostra burro e preconceituoso, mas parece um pouco surdo.
Em termos de linguagem, trata-se do livro menos interessante do autor. Quando, no fim, o romancista vê-se obrigado a explicar o que aconteceu, percebe-se que a própria trama (em geral, o ponto forte de Bernardo Carvalho) o derrotou. E, se é verdade que ele pensou o livro como uma obra política (As iniciais, romance publicado em 1999, parece-me muito mais forte nesse quesito) por conta de sua crítica à internet, só podemos lamentar que essa crítica seja superficial, pois se limita à superficialidade dos discursos e à banalidade das paixões tristes que dominam os "colunistas" de internet e certas pessoas que escrevem em redes sociais.
Como se trata de Bernardo Carvalho, o livro, apesar dos problemas, tem momentos interessantes como este, que me parece explicar aqueles discursos banais: "A língua do futuro dá ao homem o que ele quer ouvir." (p. 53). Temos aí um sentido de "reprodução".
O livro de Ricardo Lísias tem, na verdade, pouquíssimos pontos de contato com Reprodução. A forma como em O livro dos mandarins apresenta-se o empobrecimento da linguagem do seu personagem principal, Paulo, cujo nome vai sofrendo mutações ao sabor do ambiente em que está, é muito mais interessante.
Como é possível parodiar uma linguagem como a dos manuais de autoajuda para executivos sem que o próprio livro se torne desinteressante? Lísias logra fazê-lo, embora o livro decole realmente a partir da segunda parte, quando o protagonista vai para a... África.
O estudante de chinês de Bernardo Carvalho consegue finalmente embarcar para a China e voltar. O executivo de banco criado por Ricardo Lísias, em uma ideia genial do autor, nunca põe os pés naquele país, porém jamais deixa de estar lá. Dessa forma, ele pode escrever e dar conferências, sem constrangimento algum, sobre a língua que não compreende (sua linguagem é curiosamente descuidada, aliás: "Há algum tempo, o doutor coleciona palavras cujo significado sejam inspiradores para a vida corporativa", p. 289) e sobre sua estada nas terras onde nunca pisou de fato, mas são o que move todos os seus passos: esta China é o espírito dos tempos do capitalismo contemporâneo.
Muitos são os passos no romance: Brasil, Reino Unido, Sudão, Egito e, novamente, o Brasil. É curioso que o protagonista, desde a infância, sinta uma dor móvel nas costas, que pode fazê-lo desmaiar nos momentos de maior tensão. Parece-me que Lísias cria uma imagem engraçada da própria mobilidade do capital financeiro, sempre sujeito a crises.
O estrondoso vazio do personagem principal, cujo nome vem sempre de seu entorno (os nomes dos outros personagens também são flutuantes), e que antes sofre a ação do que a movimenta (mesmo a sua volta ao Brasil é involuntária), torna-o a pessoa certa para o momento. Ele volta ao Brasil e seu empreendedorismo ganha novos contornos. É necessário e oportuno seu avassalador vazio para que tudo se reduza à dimensão de negócio. Trata-se do triunfo do neoliberalismo, de que a figura de certo ex-presidente aparece como ícone triunfal: "o seu maior diferencial será a proposta de junção das ideias do sociólogo Fernando Henrique Cardoso com as práticas chinesas contemporâneas. Pois é, parece que tem ainda uma história de massagem antiestresse." (p. 304).
A "massagem" no instituto Confucius, de que não adianto mais nada, se coaduna perfeitamente com a ética deste mundo corporativo: "sem fazer nenhuma operação ilegal, ele se adiantou ao jornalista, observou que de fato havia algo estranho com certas transações do banco em diversas contas offshore e, sem muita cerimônia e absolutamente nenhuma ilegalidade, fez o banco assumir algumas iniciativas de caridade, por ele batizadas de desenvolvimento social" (p. 92). As questões sociais são apropriadas e reduzidas ao marketing, e a literatura, à autoajuda.
Essa máquina de apequenamento e redução para multiplicação do capital conduz à terrível imagem final do livro, que trata a sério o que foi visto com deboche: a construção destas identidades no capitalismo contemporâneo parte da mutilação. O último capítulo faz o leitor rever a primeira parte do livro, que não entrega seus segredos na primeira leitura: a mutilação já estava lá, naquele homem incapaz de amor (vejam a relação com a mãe moribunda e com a secretária), e ela o revela como um fator de produção perfeitamente amoldado àquele ambiente corporativo.
A construção das subjetividades no capitalismo contemporâneo era um dos eixos de As iniciais, de Bernardo Carvalho, mas não no registro satírico de Lísias, embora haja ironia em diversas passagens no livro de 1999, como no discurso, perto do fim deste romance, sobre o fim do capitalismo, que era, a propósito, um título possível para o livro, a que o autor renunciou, se bem me lembro das entrevistas da época, porque as livrarias o guardariam nas estantes de economia...
O discurso, descobre-se, é uma fala de um (mau) ator: "O fim do capitalismo começa aqui. É essa a nossa única contribuição. Estamos na vanguarda da miséria. Saímos na frente para a anunciar ao mundo o que os espera. Somos o início do fim, o começo do caos. E só estamos esperando para contaminar o resto do mundo." (p. 125).
A contaminação, com efeito, é um tema importante nesta obra, e também no âmbito privado dos personagens, por conta da SIDA. Os paralelos entre o particular e o coletivo são muito importantes neste livro, que já anuncia a "virada antropológica" que sua obra teria com Nove noites (2002). Em As iniciais, temos uma personagem antropóloga que acaba por mostrar, de forma reflexiva, como Bernardo Carvalho faz uma espécie literária de etnografia de certa classe social nesse livro, um dos melhores da ficção brasileira contemporânea.
O livro dos mandarins também está nessa categoria. Se o fascismo contemporâneo constrói subjetividades que amam o poder, como imaginava Foucault, temos no personagem de Lísias uma impressionante apresentação desse fascismo, tão mais pertinente por não se limitar à simples paródia de discursos.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

"Opisanie Świata", a antropofagia política de Veronica Stigger

Veronica Stigger encontrou em uma narrativa mais longa, a novela Opisanie Świata (São Paulo: CosacNaify, 2013), também uma formidável forma de expressão. Afora o gênero novo, porém, esse livro não representa uma mudança maior na poética de Stigger: também nele está presente a pluralidade de gêneros, o que inclui o uso de cartões postais e reclames antigos. A dimensão plástica, por sinal, é constante da obra desta autora e um de seus traços mais originais.
Aqui, pode-se ouvir a escritora explicar por que escolheu um título em polonês e como escreveu o livro: http://culturafm.cmais.com.br/comecando/entrevistas/veronica-stigger-apresenta-seu-livro-opisanie-swiata-pela-cosac-naify
Abaixo, uma foto da autora, que tirei em janeiro deste ano, entre os poetas Fabio Weintraub e Eduardo Sterzi. Todos estávamos em viagem...

A narrativa desse livro começa na Polônia e termina na Amazônia, o que, segundo Stigger, foi-lhe sugerido por Eduardo Sterzi como um desafio. Veja-se que esse arco geográfico poderia ser o de uma trajetória antropofágica, o que é exatamente o que a autora logra: o personagem principal será, de fato, apropriado pelo Brasil no meio do colapso europeu, assim como os outros estrangeiros que aqui encontra.
Há vários diálogos com autores do modernismo: o navio de Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, é avistado durante a travessia, um elefante drummondiano é redesfeito e, em apêndice, a autora elenca suas fontes de escrita, algumas orais. Uma leitura da rica intertextualidade desta novela precisaria também abordar a escolha dos nomes dos personagens, Opalka (que lembra o famoso pintor, cuja obra cortejava a desaparição), que é o protagonista, e Raul Bopp, seu companheiro de viagem.
O Bopp de Stigger tem, como o Glenn Gould de Thomas Bernhard, elementos em comum com o artista, mas, em larga medida, é um personagem com personalidade distinta da que um biógrafo descreveria. A presença de Bopp neste livro, creio, deve-se ao teor político da antropofagia assumida por Stigger.
Nesta breve nota, tratarei apenas disso. O grande Murilo Mendes, em curto e certeiro texto, "Sobre Raul Bopp", destacou que o outro poeta havia afirmado que "a maior volta do mundo que eu dei foi na Amazônia", apesar de ter viajado para tantos países, mesmo antes de embarcar na carreira diplomática. Murilo trata da presença da Amazônia na poesia de Bopp como
[...] a parte incomunicável do Brasil, seu lugar secreto, a floresta amazônica, plantada no tempo passado, em sua solidão e intimidade. A parte indígena do Brasil que Bopp considera como cenário adequado para sua revolução, seu plano de rutura com uma Europa que, grávida da história, se vê novamente em seus filhos americanos, mas que não pode ainda penetrar na dimensão amazônica.
O mundo que escapou a Jean-Arthur Rimbaud.
Murilo considera, com razão, Cobra Norato um "documento capital" do movimento antropofágico. Em que sentidos esse movimento pode se mostrar atual, isto é, inspirar novos discursos? Alexandre Nodari é um dos que têm criado esses discursos novos, referindo-se notadamente a Oswald de Andrade. Veronica Stigger preferiu apropriar-se de Bopp neste livro; também nele, ir à Amazônia significa chegar ao mundo.
Não vou contar a história (a autora ainda está lançando pelo país o livro, e hoje o faz em São Paulo, na livraria da Vila da Fradique Coutinho), mas adianto que parte do gênio de Stigger está em como revela (no fim da história) os andaimes da memória usados para construir a ficção, e o quanto eles implicam a perda, o abandono de um estado inicial, como nos rituais.
Os rituais de iniciação descritos, o próprio caráter iniciático da longa viagem de navio da Europa ao Brasil (com o sacrifício de um dos passageiros e o suicídio de outro) implicam a perda do continente natal, a perda também da família.
É notável que a chegada à Amazônia faça-se sob a égide da perda. Nesse ponto, podemos ver o quanto a escritora, com uma história que se passa nos anos 1930, fala dos tempos de hoje, em que essa região está em tremendo perigo. Qual seria a nova "descrição do mundo" (a tradução do título), a nova viagem que deve ser feita? Este livro, com a narrativa desta chegada da Amazônia, concomitante com o início da II Guerra Mundial, parece apostar em uma nova descrição antropofágica, cujo caráter político faz-se completamente oportuno neste contexto de ataque generalizado, pelos poderes instituídos e pelo agronegócio, aos povos indígenas, às comunidades tradicionais e ao meio ambiente, assuntos a que já aludi algumas vezes: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/09/terra-sem-lei-x-o-iii-encontro-nacional.html
Stigger não trata disso como matéria (ela não tematiza Belo Monte no livro, por exemplo), e sim como poética, o que me parece extraordinário. Creio que o tão comovente final do livro afete o leitor não só pelo que ocorre à família de Opalka, mas também por envolver-nos coletivamente: a perda também é nossa, é também das gerações futuras, descobrimo-lo nas rasuras de Opalka.
A negatividade desta história de Stigger, ausente de Cobra Norato, aponta, no entanto, para uma imaginação política que consiga transformar a memória em ficção. Trata-se da viagem apontada por aquelas rasuras, e da forma como a escritora se apropria da literatura brasileira do século XX, dando-nos pistas para a criação de um novo mundo.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

"Divórcio", de Ricardo Lísias

"Não tenho dúvida, adultério é para os fracos. Os fortes se separam." (p. 218). Divórcio (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2013), o último romance de Ricardo Lísias, é, de fato, um livro forte. Ele possui um apelo emocional menor do que O céu dos suicidas (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2012), pois, mais reflexivo, convoca menos o público a se identificar com o narrador. Creio que, nesse aspecto, o livro novo supera o anterior, mas entendo que outros leitores possam preferir o de 2012 por essa mesma razão.
Acompanho todas as publicações desse escritor, que conheci pessoalmente em 2004, se não me engano. É um dos muito poucos que me interessam entre os ficcionistas brasileiros contemporâneos, vasta categoria com alguns estranhos membros que preferem o turismo à literatura, brigam para conseguir subsídios para viagens e, falhando, criticam os que são escolhidos para dar palestras no exterior.
Li os contos recentes, mencionados neste romance, o homônimo Divórcio (que pode ser encontrado aqui: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-62/ficcao/divorcio), Meus três Marcelos e A corrida (http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-65/questoes-afeto-desportivas/a-corrida). Eles são geniais, nada menos, pelo inusitado do corpo sem pele (e as dificuldades decorrentes do contato com o mundo) e pela concentração do texto. No romance, há uma retomada dessas imagens:
A carne viva que tomava conta do meu corpo latejava e, muitas vezes, minha vista escurecia. Na rua, acaba sendo até perigoso. Então, comecei a contar o número de pessoas em um cartaz, quantos carros paravam para admirar um determinado travesti a cada dez minutos, os carros da polícia que passavam diante de mim fazendo barulho e tudo o que pudesse ser quantificado.
Enquanto contava o número de taxistas carecas em uma esquina, lembrei que no primeiro conto que escrevi na vida, há mais de dez anos, a personagem também repassava na cabeça uma série de coisas para tentar manter a lucidez. Estou de fato dentro de um texto que escrevi. O ar desapareceu. Encostei-me em um muro. O reboque arranhou meu corpo sem pele. Uma folha de papel não é tão áspera. (p. 79-80)
No entanto, creio que o romance não é tão bom quanto os contos porque o texto, mais dispersivo, não atinge uma concentração equivalente. Não creio, apesar disso, que ele seja uma simples diluição daqueles textos, pois deixa diversos fios novos para serem apanhados, até mais do que consegue amarrar (o próprio narrador destaca esse problema). Há diversos pontos: um deles é o paralelo com o filme de Lars von Trier, Melancolia, filme que concorreu na edição do Festival de Cannes que foi decisiva para a história narrada neste livro. O narrador tanto se identifica com o cineasta contra os clichês, como afirma, à página 123, querer construir a cabana mágica que resistiria contra o fim do mundo.
A personagem de cinema que constrói a cabana é também a que comete o adultério um pouco mais rápido do que a ex-esposa do livro, pois o faz na própria noite de núpcias. O paralelo entre o fim do casamento e a catástrofe, presente naquele filme, é central para o romance de Lísias. Em ambos, há uma crítica contra elites supostamente sofisticadas. No entanto, quem constrói a cabana contra a catástrofe, no romance de Ricardo Lísias, é quem sofreu o adultério.
Ou teria sofrido? No romance, temos a história de um divórcio causado pelo fato de o marido (o narrador) ter encontrado um diário da esposa, depois de quatro meses de casamento, que revelam não só um adultério já realizado e a antevisão de diversos outros, como uma personalidade oculta que lhe era totalmente desconhecida.
Temos aqui um Dom Casmurro elevado a milésimo grau na questão do ponto de vista do texto: apenas o narrador/marido e, que, além do mais, tem o mesmo nome do autor. A voz da esposa somente aparece nos supostos trechos do diário (que ela mesma acabaria queimando, sobrando apenas a cópia do ex-marido, que, assim, diz sentir-se livre para usá-lo na ficção) que, ademais, em uma típica estratégia de ficionista, vão sendo apresentados em excertos cada vez mais completos. Ela é uma ficção dele, como afirma que dirá perante os tribunais: "Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance." (p. 128). De fato, um romance que está sendo escrito enquanto o lemos, e nisso está a principal metalinguagem do livro, mais sutil do que o balanço que o narrador faz do romance nos três últimos capítulos/quilômetros do livro, que habilmente despista o leitor, induzido a ficar em apenas em um dos níveis da metalinguagem.
O livro, em algumas de suas tiradas contra o jornalismo, avisa que não devemos confiar em personagens com uma só fonte: "[...] o Garganta Profunda serviu para que os jornalistas fossem atrás de provas materiais. Aqui no Brasil, apenas um off já é suficiente. Um dedo-duro fala alguma coisa e no dia seguinte uma notícia é publicada." (p. 216). Sutilmente, Ricardo Lísias questiona o estatuto de verdade desta própria narrativa, em que apenas uma voz comparece. Imagino que alguns desconfiarão, ao lerem na contracapa que o livro é uma autoficção, que o segundo radical (a ficção) não é verdadeiro, e talvez procurem Divórcio pelo que possa ter de literatura à clef (os professores universitários que transam com alunos enquanto as esposas dão aula, os pervertidos que são donos de jornais e contratam colunistas fascistas). Todavia, Ricardo Lísias, em um nível mais fundo, faz-nos desconfiar do primeiro radical (o "auto" e, enfim, do eu), o que é muito mais interessante literariamente.
O livro brinca todo o tempo com esse jogo ambíguo da ficção e da realidade, na realidade constitutivo de toda literatura: lemos, no mesmo parágrafo, a frase "Divórcio é um livro de ficção em todos os seus trechos." (p. 190), e um agradecimento a três pessoas que, de fato, existem e são próximas de Lísias.
A ex-esposa é uma ficção do narrador, ele mesmo ficcional; entendemos que ele se sinta estar "dentro de um texto" seu, e que ele diga que quase se tornou um personagem dela: "Em um ano de namoro, ela tinha substituído todas as minhas roupas." (p. 48). Mais adiante, lemos que o próprio corpo do narrador foi refeito, ao longo dos quilômetros percorridos no texto, pela literatura. Nesse sentido, pode-se dizer que, no romance, a personagem da adúltera e de quem constrói a cabana contra a catástrofe, embora aparentemente estejam separados, são, como no filme de Lars von Trier, a mesma pessoa. E o autor é a  persona non grata em um livro que aposta na literatura contra outros discursos que disputam o mundo; neste livro, esses outros discursos são principalmente os do jornalismo e do direito. Trata-se de uma tarefa política que ele, explicitamente, assume neste romance: "O mundo real não oferece mais bases sólidas" (p. 198) e "A arte é uma possibilidade de resistência" (p. 199). Algo bem inusitado para romances sobre separações, e que dá a medida da força desta ficção.
Com isso, é interessante encontrar paralelos entre as duas figuras, a adúltera e o marido traído: a lista de defeitos e qualidades, que a ex-esposa faz com um espírito muito superficial, acaba servindo, para o narrador, até mesmo de estrutura para o capítulo 13. E aparece no próprio narrador o que talvez seja o principal defeito daquela mulher: o clichê. "Gente bem-sucedida tirou pós-doutorado em clichê." (p. 103). Algumas passagens do diário da ex-esposa são muito ricas nisso:
[...] o cara falou quase todo o tempo inteiro dos livros do Ricardo e das faculdades brasileiras e americanas. Quando chegou o prato, ele pegou o garfo errado e o garçom teve que corrigir. A pessoa consegue ser professor em Princeton mas não sabe usar talher em um restaurante um pouco melhor.
[...] São pessoas rígidas e fechadas. Elas vivem em um mundo próprio. A verdade é que estou em lua de mel com um autista e hoje conheci o amigo de meu marido, outro autista, esse professor de Princeton. [...]
[...] Não quero ter que viver no meio de livros e depois não saber pegar o garfo direito. [...]
Esses caras que leram demais são muito fechados. Meu marido é muito esquisito. O Ricardo reclamou da fila da Broadway. Ele vai ficar dez dias em NY e não vai ver um espetáculo da Broadway! Ele leu muito mas não sabe que pela Broadway passaram os grandes atores que começaram a vida lá. Ele quer andar na rua! O Ricardo leu muito mas não sabe nada. Meu marido e esses amigos idiotas que ele anda. Sou a maior jornalista de cultura do Brasil, a cultura para mim é vida, é como o jornalismo, é aventura. (p. 72-73)

Aqui, há um problema do romance. Às vezes, quando Ricardo Lísias depende mais de uma análise crítica do que da estrutura da trama, o texto sofre com um certo unilateralismo: "Não é à toa que os estrangeiros nos enxergam como um país lúbrico e burro." (p. 158); "Sempre me irritaram os romancistas que pretensamente 'retratariam o ponto de vista do outro'." (p. 184); quando recai nesse tipo de superficialidade, Divórcio não consegue cumprir sua proposta política.
Tais momentos de crítica de tom panfletário estão em mais de um de seus livros. Porém, nos melhores momentos, Divórcio realiza a literatura como política e como cura: da literatura o narrador constrói sua nova pele, na corrida (cada capítulo, um quilômetro) que lhe devolve o corpo.
Nessa trajetória de convalescença, há vários fios deixados que talvez Ricardo Lísias, o romancista, poderia explorar em novos textos: destaco a questão da "pele ferida" (p. 31), que une a figura do avô com a viagem ao Chile; o Chile evoca o autoritarismo, tema que reflete mais adiante nas relações familiares e no mundo do jornalismo: um dono de jornal, alcoólatra, que não sabe a diferença entre crase e trema (!) recebe um colunista estrangeiro reacionário e reclama que a ditadura brasileira foi pouco violenta, enquanto o outro aponta as virtudes de Salazar. Talvez nos deva mais um romance sobre a ditadura militar, abordada de forma tão original em Duas praças (São Paulo: Globo, 2006).
Escrevi esta nota de leitura porque tenho duas ideias sobre a literatura deste escritor que parecem confirmar-se em Divórcio. Não mencionei nenhuma delas, o texto tomou outro rumo. Quero um dia escrever sobre Ricardo Lísias.

sábado, 31 de dezembro de 2011

Veronica Stigger sobre o coração dos homens

Conheci Veronica Stigger por meio de seu marido, Eduardo Sterzi. Não sabia que ela escrevia ficção até que, certa vez, timidamente perguntou se eu poderia ler um conto que havia sido recusado em uma revista de cultura porque desagradaria a ala católica do partido no poder... Li a maravilha que é "A chuva" e indaguei se ela concordaria em participar da seção de pré-publicação de Ciberkiosk, reservada a textos inéditos. Ela concordou e escolheu "Câncer no cu", "Depois da chuva" e "O cabeção", todos posteriormente incluídos em O trágico e outras comédias.
Antes mesmo de a revista sair, o escritor e então editor Fernando Matos Oliveira perguntou se eu poderia verificar se ela não se interessaria em publicar o livro pela Angelus Novus. Dessa forma, ela estreou em Portugal em 2003. No ano seguinte, o livro seria lançado pela 7Letras.
Na foto acima, vê-se a autora no lançamento de Os anões, com Fabio Weintraub. Aqui está a introdução aos contos em Ciberkiosk, anterior à sua estreia em livro:


VERONICA STIGGER
________________________________________
Nascida em Porto Alegre em 1973, formou-se em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é mestre em Semiótica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e doutoranda em Teoria e Crítica da Arte pela Universidade de São Paulo (USP).

Publicou ficção em VOX XXI; artigos teóricos na revista Arte e Ciência – Mito e Razão ("Arte e mito em Picasso") e no Caderno de Comunicações da Unisinos ("Ser ou não ser: eis uma questão de foto" e "A verdade está lá fora", análise de uma relação estrutural entre o seriado Arquivo X e o mito de Édipo, apresentado no 9.º Encontro Anual da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Comunicação, texto publicado ainda em cd-rom e em via impressa no Caderno de Textos referente ao Encontro); resenhas na revista Superinteressante.

Sobre a literatura escrita por mulheres, perguntou-se-lhe o que achava do verso de Alberto Pimenta de as moscas de pégaso, "a escritora não tem cu". Stigger foi incisiva: há alguns anos, cerca de meia década atrás, escrevi em uma resenha de jornal que mulher não sabe escrever ¬ opinião que ainda sustento -¬, justamente por faltar a ela algo a que poderíamos dar o nome de cu. Parece-me que a mulher sente a necessidade de se afirmar como mulher a cada linha do texto ficcional. Quando leio um livro escrito por uma mulher, percebo a preocupação de a escritora lembrar ao leitor, a cada linha da obra, de que se trata de uma mulher escrevendo ¬ preocupação inexistente na literatura escrita por homens. Os homens não precisam fazer a barba para produzir literatura de qualidade, enquanto as mulheres, parece-me, acham imprescindível a troca do absorvente. Claro que não estou aqui me referindo a todas as escritoras, mas a uma boa parcela delas. Há exceções. Para mim, a literatura escrita por mulheres deveria ser algo mais do que apenas uma forma de afirmação das mulheres, uma espécie de chá das cinco que só interessa àqueles que participam do chá; deveria ser literatura. Nesse sentido, creio que as mulheres deveriam ter mais cu. Eu, pelo menos, tento.
Stigger convoca em seus contos surpreendentes imagens, como se fizesse da fanopéia uma arte da narração. Em meus contos, busco sempre uma imagem incomum, algum acontecimento (uma chuva de caralhos) ou algo (um gato verde, uma fila de homens nus) que fuja à normalidade, à realidade de nosso mundo, para tratar esse acontecimento, essa coisa como algo corriqueiro. Talvez essas imagens que crio funcionem como imagens de um inconsciente coletivo. Entretanto, se concordássemos que as imagens de meus contos assemelham-se a imagens do inconsciente coletivo, talvez tivéssemos de admitir que estou a criar mitos, o que não creio ser o caso.
Os três contos a seguir integram o livro inédito O trágico e outras comédias.


Do primeiro livro até hoje, muito ocorreu. Ela concluiu o doutorado com a Arte, mito e rito na modernidade: A dimensão mítica em Piet Mondrian e Kasimir Malevitch, a dimensão ritual em Kurt Schwitters e Marcel Duchamp (que espero que seja logo publicada), foram publicados pela CosacNaify Gran Cabaret Demenzial (2007) e Os anões (2010), que apostam na diversidade de gêneros: conto, roteiro, teatro, poesia e ready-made. E há também a literatura infantil de Dora e o sol. Em todos esses livros, o leitor pode facilmente perceber o olhar da professora e pesquisadora de arte, que se revela na montagem heterogênea dos textos e na sensibilidade para os efeitos visuais.
Deve-se lembrar da recente exposição de frases que ela fez no SESC.
Na verdade, a poética de Veronica Stigger deriva muito mais das artes plásticas do que de modelos literários - daí a importância do ready made na sua literatura. Não é de estranhar que o livro Os anões seja, ele mesmo, um objeto, com projeto gráfico de Maria Carolina Sampaio.
Singularizam-na essa poética plástica, bem como a ausência de psicologia em boa parte de sua ficção, que recorda neste aspecto a influência dos mitos ameríndios que ela estudou na obra de Lévi-Strauss.
Abaixo, está uma pequena entrevista que fiz com ela neste ano e deveria ter saído em um periódico. Como isso não ocorreu, incluo-a aqui para terminar bem 2011 e anunciar 2012; pois Veronica Stigger fale de seu próximo livro, Sul, e menciona seu projeto amazônico-polonês. Uma nova pré-publicação, portanto.


Sul inclui o conto “2035”, já publicado em antologia de ficção de guerra. Aludindo a seu trabalho como crítica de arte, pode-se nele ver a violência como rito?

Veronica Stigger: Sim. Em “2035”, a violência não é gratuita, ela não só pode como deve ser compreendida dentro de uma lógica ritual – mais especificamente, sacrificial. O sacrifício, nos lembra René Girard, serve como uma forma de canalização da violência, ao transferir para uma vítima sacrificial as violências e tensões internas de uma sociedade. Assim, ritualmente, ao se sacrificar a vítima, apaziguam-se essas violências e tensões e impede-se a eclosão de novos conflitos. A violência tem aí, portanto, um caráter expiatório. No conto em questão, percebe-se, pela descrição do cenário, que a narrativa se ambienta num lugar arruinado e desolado, num lugar que talvez tenha passado por uma catástrofe ou uma guerra. É possivelmente contra essa atmosfera de catástrofe e guerra que se atua ritualmente em “2035”. O que torna tudo mais complexo e terrível é que o conto não é narrado a partir do ponto de vista dos sacrificadores, mas do sacrificado.


Em Sul, “2035” parece fazer alusão ao bicentenário da Farroupilha. No entanto, pode-se dizer que, em comum com 2666 de Bolaño (autor que fornece uma das epígrafes do livro), temos nele a permanência de um estado de guerra?

VS: Sim. Como já mencionei, queria criar um clima de estado não tanto em guerra, mas pós-guerra. Esse estado é sugerido pela descrição do cenário: uma terra arrasada, desértica, em que as pessoas temem sair às ruas e se comunicar umas com as outras. Como o título deixa claro, “2035” se passa no futuro, na data das comemorações dos duzentos anos da Revolução Farroupilha. O conto se originou de um convite para participar de uma coletânea de narrativas em que cada escritor deveria inventar uma história que dissesse respeito a uma determinada guerra. A mim, coube a Guerra dos Farrapos. Lembrando-me das grandes comemorações dos cem anos da Revolução Farroupilha, com bandeiras da Alemanha nazista (entre outras) balouçando no Parque Redenção, queria imaginar como seriam as comemorações dos duzentos anos da guerra, num futuro próximo. Foi aí que me veio à mente esse cenário de destruição. Não tenho uma visão muito otimista do meu sul...

Borges fornece outra das epígrafes de Sul. No entanto, não se pode afirmar que a concepção stiggeriana de sul é muito diferente da de Borges, bem mais violenta e visceral? Tanto em “Mancha” quanto em “O coração dos homens”, o sul é também o sul do corpo.

VS: De fato, pode-se pensar o sul em “Mancha” e “O coração dos homens” como o sul do corpo e – eu acrescentaria – seus fluidos. Os dois contos citados chamam a atenção não apenas para, digamos assim, as partes baixas, mas principalmente para o sangue: o sangue vertido por alguma ferida (que há também em “2035”) e o sangue menstrual. Nesse sentido, é mais “visceral” que Borges. E também mais violento – talvez justamente por trazer o sangue para o primeiro plano. Borges, em “O sul”, um dos mais fantásticos contos já escritos, está tratando de outra coisa. A questão principal ali é a honra. Dahlman, o protagonista, na iminência de uma morte num leito de hospital por septicemia, escolhe para si, em delírio, uma morte mais honrosa: a morte em duelo. O trecho deste conto que extraí para a epígrafe de Sul é justamente o seu final, quando Dahlmann sai para a rua em direção a uma morte certa, já que tem plena consciência de que não saberá manejar a adaga que tem na mão.

Pode-se dizer que este seu livro seria o maior exemplo, na sua obra, de “literatura feminina”? A vítima em “2035” é mulher, do homem só restam líquidos em “Mancha”, e em “O coração dos homens” os fluidos femininos inundam o mundo.

VS: Não sei se existe isto que você chama de “literatura feminina”. Claro, há livros que só poderiam ter sido escritos por uma mulher, mas não sei se isso configura uma “literatura feminina”. De qualquer modo, também não saberia dizer se, dentre os meus, este livro seria o mais evidentemente escrito por uma mulher. Dois dos aspectos para os quais você chama a atenção – a vítima ser uma mulher em “2035” e a redução dos homens a líquidos em “Mancha” – já foram, de uma maneira ou de outra, tratados em livros anteriores. Já em O trágico e outras comédias, meu primeiro livro, há um conto, chamado “A chuva”, em que os homens são reduzidos a seus “caralhos”. Havia tanto naquele conto quanto agora há em “Mancha” um deliberado apagamento da figura masculina. No livro seguinte, Gran Cabaret Demenzial, o conto de abertura é sobre uma mulher que se automutila: em certa medida, ela é sua vítima e seu algoz ao mesmo tempo. A novidade em Sul – e talvez seja o elemento mais propriamente “feminino” – é a abordagem tão crua e direta da menstruação. Sobre isso, não sei se um homem seria capaz de escrever como escrevi, ou como outra mulher poderia escrever.

Lemos em “O coração dos homens”: “O sangue tem um cheiro adocicado./ Um cheiro persistente./ Um cheiro de morte.// O mijo tem um cheiro ácido./ Um cheiro passageiro./ Um cheiro de rodoviária.” O coração dos homens é aquilo que bombeia os dejetos?

VS: Sim. Mas é também e principalmente o que sangra. Como diz o rei dos putos da colônia Guerrero, o coração dos homens é o “que sangra como as mulheres” e “que obriga os verdadeiros homens a se responsabilizarem por seus atos, quaisquer que sejam”.

Sul, como Gran Cabaret Demenzial e Os anões, aposta na mistura de gêneros curtos. Você pretende escrever uma ficção mais longa, como já anunciou em entrevista, ou crê que as narrativas curtas são o seu melhor meio de expressão?

VS: Creio que o conto é meu melhor meio de expressão, aquele no qual me sinto mais confortável – e que sinto também mais afim ao universo de escrita e de leitura do nosso tempo. No entanto, estou atualmente trabalhando na escrita de um livro de maior fôlego, até para experimentar algo para o qual não sinto ter predisposição, digamos, natural (sem esse esforço, ainda viveríamos nas cavernas). Não será um romance, mas uma novela, e se chamará Opisanie świata, que quer dizer “descrição do mundo” e é como se traduz Il Milione, o livro de viagens de Marco Polo, para o polonês. É justamente como uma espécie de relato de viagens que essa novela deverá se constituir. A idéia é acompanhar o deslocamento do protagonista, Opalka, um cinqüentão, desde sua Polônia natal até a floresta amazônica. Ainda em casa, ele recebe uma carta por meio da qual descobre que tem um filho em Manaus, onde viveu por um tempo, e que este está muito doente. Daí a necessidade de voltar à Amazônia. Embora a forma externa seja a da novela, pretendo no interior dela continuar brincando com os mais diversos registros, como o do relato de viagens, o da carta, o da narrativa em terceira pessoa, o do diário etc. Vamos ver no que vai dar.

“Coração dos homens” parece influenciado por Lucrecia Martel. Você reconhece essa influência, ou aprecia a cineasta?

VS: Eu gosto muito do cinema de Lucrecia Martel. Acho-o magnífico. Mas não vejo tanto a influência de Lucrecia Martel em “O coração dos homens”. Se fosse forçada a fazer uma aproximação entre este conto e uma obra cinematográfica, diria que estaria mais próximo do universo de Catherine Breillat em Para a minha irmã.

domingo, 6 de março de 2011

Rui Manuel Amaral e o cosmopolitismo do desterro

Recebi Doutor Avalanche (Angelus Novus, 2010) de Rui Manuel Amaral em fevereiro deste ano. Antes disso, eu havia lido entrevista, também de 2011, que um outro jovem ficionista português concedera a jornal brasileiro. Esse escritor explicava que seus romances raramente se passavam em Portugal, pois a sua geração tinha trazido um "lado internacional" que faltaria à literatura portuguesa, que, agora sim, poderia ser exportada!
Não é a primeira nem a última vez que se usa a linguagem das commodities para falar de literatura. Foi-me instrutivo descobrir, no entanto, que a literatura portuguesa, marcada pelo exílio (Jorge de Sena), não era antes "internacional", o que certamente fez com que Lobo Antunes e até Saramago não sejam conhecidos alhures (nem Pessoa, que é uma geração ainda mais arcaica e comia dobradas à moda do Porto em vez de Burger Prince).
É interessante que tal geração proponha ajudar a balança de pagamentos portuguesa. No entanto, a postura do jovem ficionista luso e internacionalista pode ser considerada velha e provinciana. Lembro de quando, no Brasil, não havia mercado editorial e, sufocados por uma cultura francófila, os jovens escritores brasileiros do século XIX e início do XX sonhavam em publicar em Paris; muitos livros eram impressos lá, em razão da inexistência de uma verdadeira indústria editorial no Brasil. Mas não eram lidos na Europa.
Nesse mundo editorial onírico, os livros teriam que evitar qualquer brasileirismo ou referência ao Brasil. Isso é provinciano.
O provincianismo revela-se na rendição suplicante aos grandes centros conjugada à negação da geografia, da cultura, da língua - por exemplo, Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida escreveram uma peça insignificante diretamente em francês, e Villa-Lobos fez cantar ainda na Semana de Arte Moderna umas chansons nada memoráveis que escreveu.
Villa-Lobos e Oswald de Andrade encontrariam suas formas de inventar o Brasil (mas não Guilherme de Andrade, com seu ilegível Raça).
Rui Manuel Amaral, autor que eu não havia lido antes, parece-me "internacional" por outro motivo: ele pertence a uma família espiritual de escritores cujo humor oblíquo desloca o leitor para uma zona excêntrica que simultaneamente afirma e nega o mundo. Lendo esses autores, somos sempre jogados ao estrangeiro e sem passaportes. Em vez de escreverem a partir da ambição de serem aceitos por Paris e Nova Iorque, fazem-no a partir de um desterro universal, que talvez seja a forma de cosmopolitismo mais adequada para a literatura.
Imaginem o que teria feito um escritor comum de ficção científica com isto:

Um clarão vindo de lado nenhum e - zás! - Marcus Kottkamp desapareceu. Assim sem mais.
Tudo isso se passou num brevíssimo instante, por volta das dezoito horas e quarenta minutos. Nunca se conseguiu descobrir que coisa foi aquela e, sobretudo, o que veio a ser feito de Marcus Kottkamp. Ora vemos uma pessoa, ora deixamos de a ver. (p. 99)

Logo estaríamos em contato com a antimatéria e abduções de seres pós-galácticos. Já um seguidor de Paulo Coelho descobriria a ação de espíritos oriundos de dimensões aparentemente sutis do universo. Rui Amaral prefere a literatura, que ora vê, ora deixa de ver.
Esse procedimento, paradoxalmente, deixa a escrita próxima do absurdo cotidiano. Não pude deixar de lembrar de Monterroso, que também discordava do mundo em ficções curtas.
Uma história exemplar é a de Christoph Robbé, que perdeu todos os dentes em um só dia. O escritor não perde tempo em explicar como e por quê ocorre a debandada odontológica - seria vulgar neste contexto, bem como um sinal de apego à ciência ou à providência.

Chegou, por fim, a noite, mas também não trouxe nada de bom. Sobrava um único dente. Um triste, desolado e solitário canino do lado direito. Foi quando ocorreu aquele clarão branco. E o dente voou, de alma tão leve como sombra de borboleta, para muito longe. (p. 48)

E assim se foram, para mais longe ainda, ciência e providência. Ficamos só com a literatura: "Sozinha em casa, a língua deu sete pulos de contente." (p. 82).

P.S.: Rui Manuel Amaral escreve também aqui.