No romance lançado há pouco, A resistência (São Paulo: Companhia das Letras, 2015), temos algo de parecido, porém claramente vinculado à história política do continente. O personagem e narrador Sebastián é brasileiro, mas seus pais são argentinos e ele tem um irmão adotivo que nasceu naquele país. Há problemas de relacionamento desse irmão com a família; o protagonista resolve escrever sobre isso e vai fazer a viagem que o irmão não fez, para a Argentina; um dos impasses a que chega é o de entrar na sede das Mães da Praça de Maio (p. 19); seu irmão seria filho biológico de desaparecidos?
Essa questão, bem como o da fuga dos pais, militantes de esquerda, da Argentina para se estabelecerem no Brasil, enquadra esta história na história recente do Cone Sul, das ditaduras militares e da transição política.
É a primeira vez que Fuks, cuja foto vocês podem encontrar neste blogue em passeata do Cordão da Mentira, vestindo a camiseta das Mães de Maio argentinas, em protesto contra a herança da ditadura militar, escreve um romance com tema vinculado à justiça de transição, numa perspectiva em que Argentina e Brasil são comparados, o que já foi objeto, por exemplo, do muito diferente Duas praças, de Ricardo Lísias.
Já no capítulo 7 do livro de Fuks, põem-se em tensão explícita história e memória. A memória que ele detém, no entanto, não é a dos pais, nem mesmo da Argentina, onde ele não nasceu: "Tenho a idade que meu pai tinha aquela época – o bastante para saber que as armas dele não são as minhas" (p. 38). Relembra das conversas entreouvidas sobre o passado militante. Esta memória dos sussurros e dos detalhes incompletos e contraditórios ("Sei e não sei que meu pai fez treinamento em Cuba, sei e não sei que jamais desferiu um tiro com alvo certo", p. 40) que ele não viveu é bem a questão do testemunho do filho.
No livro A literatura e a vida: por que pesquisar literatura?, organizado por Vitor Cei, João Guilherme Dayrell, Michel Mingote e Ferreira de Azara, que deverá sair este ano pela Praia Editora, haverá um artigo meu, "Literatura e Justiça: Julián Axat e os desaparecidos na Argentina", que escrevi a partir de palestra que proferi na UFMG no II SPLIT – Seminário de Pesquisa Discente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit). O livro recolhe as comunicações do Seminário. Nele, trato brevemente da questão da memória de Julián Axat, membro da organização HIJOS, que congrega filhos de desaparecidos e de mortos pela última ditadura. Um hijo, como Axat, como Emiliano Bustos, que tipo de memória tem da ditadura, visto que muitos nasceram após o golpe, ou eram muito pequenos quando ele ocorreu? Cito uma passagem de meu texto:
Sarlo critica o conceito de pós-memória, afirmando que o que existem são “formas de memória que não podem ser atribuídas diretamente a uma divisão simples entre memória dos que viveram os fatos e memórias do que são seus filhos”. Se se reservasse o termo para a memória da “primeira geração depois dos fatos”, “a pós-memória é tanto um efeito do discurso como uma relação particular com os materiais da reconstituição; com os mesmos materiais se fazem relatos decepcionantes e cheios de furos ou reconstituições precárias que, no entanto, sustentam algumas certezas”.
No entanto, a obra de Julián Axat é, realmente, um exercício de pós-memória? Ele está realmente a fazer esse tipo de reconstituição da história dos pais, a tornar as difíceis e fragmentárias reconstituições do passado em poesia? Parece-me que não.
[...]
De um lado, a experiência dos hijos permite-lhes dizer que apresentam suas próprias memórias sobre o terror de Estado: o fato de terem perdido os pais e outros parentes, de terem tido, muitas vezes, sua identidade negada ou subtraída marcou-lhes a infância e representa a marca do terror de Estado em sua história pessoal, inscrita nessa história coletiva. Nesse sentido, suas subjetividades também foram configuradas pelo terror, e isso os autoriza a falar como testemunhas diretas da ditadura.
O romance de Fuks é diferente, nessa relação com a memória, da literatura dos hijos argentinos, e creio que essa diferença diz respeito às dessemelhanças dos processos de justiça de transição na Argentina e no Brasil. Uma das diferenças se dá no fato de que o caráter militante que pode ser encontrado na literatura dos hijos não está presente neste romance. Creio que a diferença decorre menos do fato de seus pais terem sobrevivido (mas como exilados) do que da inscrição em uma certa história política: "Jamais quereria ter uma arma em minhas mãos, e dizê-lo também é uma ação, também constitui uma história política." (p. 109).
É bem conhecida a origem das Mães de Maio e sua luta por descobrir o paradeiro de seus filhos desaparecidos, complicada ainda pelo sequestro de crianças que os militares argentinos faziam. Neste mês, confirmou-se que foi encontrado o 118º neto das Avós da Praça de Maio, procurado há 39 anos por Delia Giovanola. Seu filho, Jorge Ogando, filho de Delia, e sua nora, Stella Maris Montesano, grávida de oito meses, desapareceram em 16 de outubro de 1976.
Estas graves violações de direitos humanos já eram conhecidas no Brasil durante a última ditadura militar. Quando o ditador Videla visitou o Brasil, houve protestos; nesta breve nota, recorro apenas a documentos do DEOPS/SP que estão no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Ao lado, pode-se ver a convocação para protesto em 22 de agosto de 1980 no Largo de São Francisco (o panfleto, cautelosamente, não indicava quais eram os organizadores do ato), qualificando Videla de "um dos maiores carrascos de todos os tempos na AMÉRICA LATINA."; "Ninguém aceita que venha ao Brasil o ditador responsável por milhares de mortos desaparecidos; presos políticos, e inclusive pelo desaparecimento de pelos menos doze brasileiros em solo argentino."
O panfleto estava correto em relação à Lei de Estrangeiros (ainda vigente), a lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980 que possui, entre outras previsões, a de que "É passível de expulsão o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranquilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais." (art. 65, caput), e que "Caberá exclusivamente ao Presidente da República resolver sobre a conveniência e a oportunidade da expulsão ou de sua revogação." (art. 66, caput).
Outra convocação parece ter sido distribuída no Teatro Ruth Escobar, pela anotação feita pela polícia no alto do panfleto. Tratou-se de outro exemplo das mulheres brasileiras na linha de frente contra a ditadura militar: a "manifestação de solidariedade às mães argentinas da Praça de Maio". Entre as entidades que o assinaram, estavam a Frente de Mulheres Feministas, a Associação das Mulheres, Grupo Nós Mulheres, Sociedade Brasil Mulher, Centro da Mulher Brasileira, Grupo Ação Lésbica-Feminista, Mulheres Liberdade e Luta, Mulheres da Convergência Socialista e do jornal "O Trabalho", Departamento Feminino do DCE da USP.
O detalhe desta foto do ato do dia 22 de agosto de 1980, com uma menina carregando o cartaz que indagava onde estavam as crianças desaparecidas da Argentina, mostra a solidariedade dos militantes no Brasil contra o sequestro de menores pelos militares do outro país.
No Brasil, porém, apesar dos menores perseguidos pela ditadura (alguns desses casos são analisados no livro Infância Roubada, da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva"), ela esteve longe de ter as proporções do caso argentino. A mobilização da sociedade civil brasileira também foi mais restrita do que nesse outro país. O destino dos autores das graves violações de direitos humanos também foi outro: Videla morreu de causas naturais, aos 87 anos, em sua cela em 2013: fora condenado e preso. Nada houve de parecido no Brasil, mesmo com a Comissão Nacional da Verdade, que veio décadas depois do fim da ditadura, ao contrário da comissão argentina - outra diferença...
Essas diferenças encontram expressão no romance de Fuks. O impasse do narrador diante da sede das Mães da Praça de Maio mostra essa relutância diante do caráter político dessa história, e o lugar central dos espaços privados nesta história enfatiza o relativo acanhamento da esfera pública. Em A resistência, esses lugares aparecem especialmente no trauma da expulsão do quarto do irmão, e o acidente que ocorre logo em seguida, com a imagem do irmão "se partindo em estilhaços", bem como a busca do apartamento onde viveram os pais em Buenos Aires antes do exílio e onde seu irmão viveu "seus primeiros dias" (significativamente, no capítulo de número 18). O porteiro deixa-o entrar depois de uma explicação do que veio fazer lá: um livro sobre seu irmão "mas também sobre perseguição e resistência, sobre terror, tortura e desaparecimentos"; o porteiro responde: "Ah, una más, una memoria más de los setenta" (p. 58).
Una más; na Argentina, não se trata de algo inusitado, ao contrário do Brasil, em que esse resgate da memória da ditadura e da resistência está bem mais atrasado. Fuks expressa essa disparidade entre os dois países no próprio caminho de escrita do livro, que vai sendo preparado pelo narrador: a obra desanda, não sai como ele quer, o peso do terror, da tortura e dos desaparecimentos vai escapando de Sebastián.
Com efeito, é mencionada uma desaparecida argentina (capítulo 25), Martha María Brea, identificada apenas em 2010, "sua ausência morava na nossa casa" (p. 78), apresentada como jovem psicóloga amiga da mãe do protagonista; é mencionada também a tortura em amigos dos pais. No entanto, não se logra fazer uma literatura de hijo. O romance incorpora, na busca do próprio livro (recordando o livro anterior, mas agora com uma forte matéria histórica), os impasses do processo de justiça de transição no Brasil.
Ele não se esgota nisso: há mais nos impasses familiares, porém não escreverei mais sobre a trama e seu desenlace; apenas quero destacar o mal-estar do protagonista diante das Mães de Maio, a "súbita vergonha" diante da sala das Avós no "museu da memória" (p. 93) e a sensação de "fracassso" (capítulo 32) que o persegue ao escrever o livro, bem como a desorientação súbita em Buenos Aires, cidade onde orientar-se é tão fácil (capítulo 44); "não pude entrar na sede das Avós, fiquei do lado de fora vendo o que acontecia, e o lamento que agora me sobrevém não parece mero capricho." (p. 130). Tais sentimentos inscrevem-se na história política.
Cito agora Edson Teles, de seu Democracia e estado de exceção: Transição e Memória Política no Brasil e na África do Sul (São Paulo: Fap-Unifesp, 2015):
Parece-nos haver dois tipos de silêncio no pós-ditadura brasileiro: no primeiro, em um ato de sanidade interior, refaz-se o percurso do vivido no silêncio do pensamento e da impossibilidade de narrar o que não se compreende; no outro, o "silêncio do não dizer", que se constitui a partir do exterior (a ausência da esfera pública), equivalente à desresponsabilização de cada sujeito, ao não assumir ações e discursos críticos acerca dos anos de repressão sob a ênfase de valores éticos.O bloqueio com que se depara o narrador parece próximo do primeiro tipo de silêncio. O livro parece fazer esse percurso senão de cura, de sanidade, que envolve compreender (o) que não pode narrar, refazendo, na comparação com a Argentina, os impasses do processo de justiça de transição no Brasil: tais impasses impedem que o livro se torne a narrativa sobre desaparecimentos antes planejada, que a diferença do irmão adotivo (nascido na Argentina, lembre-se) manifeste-se em outro plano, como diferença na história política.
Há vários sentidos de resistência neste livro, políticos e psicanalíticos, dos pais, do irmão, da irmã, da família. Outro, creio, é o do próprio processo de justiça de transição no Brasil, que parece sofrer um bloqueio em relação à Argentina, que teve ditadores, torturadores e assassinos julgados, condenados e presos, e aqui, nada disso: a impunidade reina soberana, e as medidas reparatórias dos crimes da ditadura sofrem diversas críticas de "revanchismo".
Não à toa, creio, no penúltimo capítulo, diz-se da família, os dois pais e os três irmãos: "chegamos a ser mais brasileiros" (p. 134). A história política do malogro brasileiro no campo da justiça de transição marca dessa forma a memória dessa família, e orienta a escrita do livro que o protagonista deseja escrever e que é o livro que o leitor tem nas mãos: ele descobre, nessa "procura do livro" (parecida com o romance anterior, embora Procura do romance fosse muito mais metalinguístico do que este), que a obra tem que tomar outro rumo, familiar e lírico, como conta depois do acidente de infância em que fraturou o braço: "nessa noite fui eu quem quis dormir ao seu lado, juntei o meu colchão ao dele, apoiei sobre seu peito o braço que me restava." (p. 127). Trechos como esse preparam para o comovente final deste impressionante romance, que não contarei.
P.S.: Lembro que Fuks parece brincar no romance com o que os jornalistas convencionaram chamar de autoficção: ele também é filho de pais argentinos, ele também escreveu "um livro inteiro a partir da experiência de caminhar pelas ruas de Buenos Aires" (p. 18) e vários outros pormenores, especialmente o hábil capítulo em que os pais discutem com ele as divergências do romance em relação à realidade.
O narrador, nesse jogo autoficcional, lamenta que o pai nunca lhe passou o documento da Operação Condor em que era citado; o documento teria sido incluído no livro que está a escrever, o mesmo que estamos lendo.
Achei a indicação não só de um, mas dois documentos dessa Operação relativos ao pai.
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