O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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domingo, 27 de novembro de 2016

Os mortos têm voz: 10 anos dos crimes de maio e a continuidade das chacinas

Dia 17 de novembro, na sala dos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ocorreu o lançamento do livro Mães em luta: dez anos dos crimes de maio de 2006, editado pela Ponte Jornalismo, em projeto editorial de Danilo Dara e Debora Maria da Silva, das Mães de Meio. Foram lançados também a campanha Black Brazilians Matter e o dvd Vídeo-Memorial Mães de Maio, que reúne quatro curtas (Apelo, Chapa, Um memorial para mães e filhos, Mães - sobre reparação psíquica).

O fotógrafo Sérgio Civil fez uma pequena exposição da série "Piratas Urbanos".
O evento acabou com uma caminhada até a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, que não acompanhei, mas foi filmada. Tive de sair antes e não ouvi todas as falas.
Na página das Mães, há uma série de vídeos e matérias. Vi que a Revista Cláudia anunciou, em longa matéria, o lançamento do livro, que foi organizado por André Caramante. Sobre o evento, Débora Melo escreveu para a Carta Capital o texto "Consciência Negra: luta é contra a violência estatal, de ontem e de hoje", ainda mais longo do que o da Ponte Jornalismo. O Instituto Geledés enfatizou a campanha no texto que publicou.
Nem todos os anunciados na matéria do Cidade Lúdica conseguiram estar presentes: Eliane Brum, a autora do prefácio, apareceu, mas teve de ir embora antes de o evento começar (o atraso foi de quase uma hora) e Chico César teve um conflito de agenda.

Na foto ao lado, da esquerda para a direita, sentados, Milton Barbosa (Movimento Negro Unificado), Rosana Cunha (mãe de alunos secundarista), Silvia Bellintani (psicóloga e jornalista, viúva de Milton Bellintani, homenageado no livro), Rosária Ramalho (Secretária Municipal de Cultura), Paulo Magrão (Associação Capão Cidadão), Ângela Mendes de Almeida (Observatório da Violência Policial e Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos), Felipe de Paula (Secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania), Alípio Freire (jornalista e ex-preso políticos); em pé, Danilo Dara (Mães de Maio), Eliane Elias (S.O.S. Racismo) e Debora Maria da Silva (Mães de Maio). Eliane Elias está com a palavra na foto. A Prefeitura de São Paulo e a Associação Capão Cidadão apoiaram a obra.
O evento foi carregado de emoção e seguiu tranquilo no auditório mais do que lotado (muitos ficaram de pé, inclusive Latuff, autor da arte da bandeira das Mães de Maio na primeira foto). O único momento de inquietação deu-se quando um jornalista da TV Cultura, de terno, foi confundido com um P2; mas ele se identificou e continuou filmando o evento.
Somente consegui filmar algumas falas. Debora Maria da Silva, a face mais pública das Mães, que perdeu irmão, o pai do filho e seu filho para a violência policial, acusou que "Se os crimes de maio tivessem tido punição, com certeza não teríamos mães de 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, de 2014, de 2015 e de 2016." Com efeito, o livro conta histórias de violência até 2016;
Depois, Danilo Dara fez uma homenagem a Guilherme da Silva Neto, o Guilherme Irish, assassinado pelo próprio pai por participar de uma ocupação escolar em Goiânia, e chamou Rosana Cunha, mãe de um dos secundaristas presos com ajuda de um agente do Exército, que continua a espionar e reprimir movimentos sociais. Ela contou que seu filho usa lentes de contato e estava com soro, que foi considerado uma "arma química" pela polícia.
A criminalização do protesto permanece, o que era previsível depois da impunidade generalizada da brutal repressão aos movimentos de 2013. Continuamos nos tempos do vinagre tratado como arma de destruição em massa.
Ângela Mendes de Almeida lembrou do assassinato do jornalista Luiz Eduardo Merlino, seu ex-companheiro, durante a ditadura, dos processos contra Brilhante Ustra, da impunidade que permanece e dos movimentos de hoje em prol de uma nova ditadura, da "cambada de cafajestes, que são o núcleo fascista, que tomaram o palco da Câmara municipal [federal] para defender a volta dos militares e que gritavam o nome de seu herói. Qual o nome de seu herói? Sérgio Moro."
Consegui gravar Janete Arruda; mãe de uma menina internada, conforme sua fala ocorreram espancamentos de jovens em unidade da Fundação Casa, na unidade de internação Parada de Taipas. Ela disse: "as que têm visita de pai e mãe não apanharam tanto quanto as meninas que não têm, e as meninas que não têm, ninguém tem acesso a elas". Ela agradeceu à Ponte, que fez uma reportagem e a entrevistou: "Unidade em Taipas teria vivido manhã de tensão na sexta (11). Governo nega: diz que unidade é 'modelo' e tem até piscina". Dia 18, a Defensoria Pública esteve lá e colheu depoimentos das jovens.
Fausto Salvadori Filho, que não consegui gravar, falou das iniciativas do Estado para criminalização da Ponte Jornalismo e das Mães de Maio, fazendo referência ao vídeo censurado da Ponte que mostra membro do Ministério Público afirmando que as Mães atacavam os policiais que eram contra o tráfico de drogas. Bruno Paes Manso refere-se ao episódio no livro. Lembrou também do desembargador Ivan Sartori, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que sugeriu, dias depois de votar pela absolvição no caso do massacre do Carandiru (em 27 de setembro deste ano) e ser criticado pela decisão, que "a imprensa e organizações de direitos humanos são financiadas pelo crime organizado".



O livro foi escrito por jornalistas da Ponte, que contam histórias de vítimas, desde 2006, da violência do Estado. Ao lado, está o sumário. Os capítulos são intitulados pelas mães ou por outros sobreviventes (por exemplo, Francilene Gomes Fernandes é a irmã de um dos mortos dos crimes de maio; a estadunidense Waltrina Middleton teve sua prima assassinada no Massacre de Charleston em 2015).
Este livro, indo além dos crimes de maio, além de ampliar o horizonte geograficamente, além do Estado de São Paulo e do Brasil, faz o mesmo no recorte temporal, pois as chacinas não pararam em 2006.
A última vítima do livro foi assassinada em 2016. Luana Barbosa dos Santos (exceção deste livro, é ela, e não os parentes sobreviventes, quem nomeia o capítulo, escrito por Tatiana Merlino), negra, lésbica e moradora da periferia de Ribeirão Preto, foi espancada por policiais militares, entrou em coma e morreu. Ela estava com o filho, que presenciou a ação criminosa, mas os policiais, felizmente, não o mataram também. Um traço em comum dessa história com as outras é a impunidade:
Em maio de 2016, o juiz Luiz Augusto Freire Teotônio, de Ribeirão Preto, negou o pedido de prisão temporária dos três policiais acusados de espancamento. O juiz ainda remeteu os autos do processo à justiça militar, alegando que não se trata de um crime contra a vida. O promotor de justiça Eliseu José Gonçalves recorreu da decisão do juiz, alegando que houve homicídio. Até a conclusão deste livro, o recurso aguardava julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo [...]
Nesses momentos, como nas histórias do livro, vê-se o Judiciário como o Poder político garantidor da polícia, e não dos direitos fundamentais, agindo em estreita simbiose com o Executivo.
A noção do inimigo interno, que fundamenta o genocídio da juventude pobre, preta e periférica, é filha da doutrina de segurança nacional. E é ela que é aplicada quando decisões obviamente inconstitucionais de busca e apreensão coletiva em todo um bairro são proferidas, sob o pretexto de medida excepcional - o último caso desses que percebi ocorreu contra a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, no último 21 de novembro. Pretexto duplamente falso, por sinal, se temos em mente o papel histórico desse Poder. Excepcional, de fato, seria o Judiciário brasileiro garantir os direitos fundamentais da população periférica...
O livro Mães em Luta conta como prefácio uma crônica de Eliane Brum, publicada originalmente na versão brasileira de El País, que me parece analisar bem esta situação de barbárie institucionalizada pelos Poderes do país:
[...] onde está o golpe? E quem são os golpeados neste país?
Basta seguir o sangue. Basta seguir o rastro de indignidades dos que têm suas casas violadas por agentes da lei nas periferias dos que têm seus lares destruídos pelas obras primeira da Copa, depois das Olimpíadas, dos que têm suas vidas roubadas pelos grandes empreendimentos na Amazônia, dos que abarrotam as prisões por causa de sua cor, dos que têm menos tudo por causa de sua raça [...]
E muitos outros. Estou completamente de acordo com a jornalista.
A campanha Black Brazilians Matter já foi traduzida para o espanhol, o francês e o inglês; leiam na página das Mães de Maio.

Uma nota sobre a formulação escolhida. Sobre o movimento dos EUA, Black Lives Matter, alguns ousam dizer que o lema está errado, ou é racista, pois não são apenas as vidas negras que importam, mas todas.
Há limites seja para a ingenuidade, seja para a leviandade ou para a má-fé, mas essas pessoas os ultrapassam sem muito constrangimento. Em primeiro lugar, o movimento não diz " vidas dos negros importam"; se o fizesse, seria contraditório com "todas as vidas importam". Como não o faz, a sanidade exige constatar que "as vidas dos negros importam" não só não contradiz, mas está contido em "todas as vidas importam".
Se está contido, por que destacar essas vidas? Uma pessoa muito alienada, que leia (ou não) aqueles autores que ganham dinheiro clamando "não somos racistas", poderia fazer a pergunta. Respondo. Porque os dados demonstram que esse grupo, o dos negros, é alvo preferencial dos órgãos de vigilância e repressão do Estado, de uma discriminação social específica que pede ações próprias. Há necessidade de foco para atacar o problema.
Para quem só entende metáforas médicas, dizer que todas as vidas importam é neutro, é como dar um antibiótico genérico para uma bactéria que exige medicação específica. Não funcionará. Poderá levar à morte, que é, no fim, o resultado da postura dos repetidores do mantra "all lives matter", e das outras posturas que têm por fim referendar o racismo negando que ele exista, ou pretendendo que ele só ocorra entre as pessoas que justamente estão lutando contra ele (no caso, os que lutam são exatamente os militantes do Black Lives Matter; os seus críticos nada fazem, exceto desmerecer o trabalho dos reais ativistas contra a violência).
O estadunidense Deray Mckesson, do Black Lives Matter, respondeu bem que jamais iria a uma marcha contra o câncer de mama gritando que o câncer de cólon importa... E que o assassinato de negros pelo Estado (que, como se sabe, também ocorre nos EUA, embora não nas proporções do Brasil) é uma questão específica, que deve ser abordada com seu foco distinto. O lema "all lives matter", nesse contexto, é uma distração, acusa Mckesson, que os racistas usam contra os militantes do movimento Black Lives Matter. Eu não poderia estar mais de acordo.
No Brasil, evitou-se a discussão, adotando-se tanto o Black Brazilians Matter quanto o Brazilian Lives Matter.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Desarquivando o Brasil CXIX: Favelas e militarização da segurança, ou fortificar-se contra o próprio povo

Tentei fazer um curso sobre justiça de transição. No penúltimo trabalho, era necessário voltar ao tema da segurança pública, e escrevi um textinho (o limite era mínimo) que talvez interesse por causa do pequeno adendo que escrevi para cá, com referência a três documentos.
Dentro desse amplo campo da segurança, resolvi me concentrar na criminalização das favelas e de seus moradores. Como o trabalho exigia não só pesquisa e referência de periódicos da época da ditadura e também dos de hoje, além de diálogo com os textos da bibliografia do curso, tive de ser altamente sucinto.
Para os dias de hoje, referi-me especialmente à serie premiada de reportagens do jornal "O Dia" (escritas pela repórter Juliana Dal Piva) com a ONG Justiça Global sobre a ocupação militar das favelas no Rio de Janeiro em 2015. Para a época da ditadura militar, escolhi matérias do "Jornal do Brasil", que fazia oposição e publicava notícias críticas às políticas sociais do regime.
A moradia, em regra, não era tratada pelos governos daquela época como direito social, mas, segundo a doutrina de segurança nacional, como uma questão relativa ao binômio segurança e desenvolvimento. Não por acaso, apesar do movimento de reforma urbana durante a Assembleia Constituinte, somente em 2000 esse direito ganhou status constitucional como direito social.
Dessa forma, as favelas ficaram sob a vigilância dos mecanismos de segurança nacional da ditadura militar, bem como dos mecanismos de segurança pública de hoje.
Uma colega lembrou da tese de Boaventura de Sousa Santos sobre pluralismo jurídico a partir de seu estudo de campo no Rio de Janeiro. Foi oportuno, pois ele não divulgou, na época do estudo, o nome da Favela do Jacarezinho, que ele chamou de Pasárgada, exatamente por razões de segurança. Os principais líderes da Associação de Moradores do Jacarezinho se afastaram na época do golpe e só retornaram à ativa na década de 1970.

A moradia urbana era vista pela ditadura militar não como direito social (o que ocorreu, em nível constitucional, só com a emenda no 26 de 2000), mas como um problema de segurança e desenvolvimento, o que norteou os programas e instituições voltados para essa área, como o Banco Nacional da Habitação. A solução oficial para as favelas eram a criminalização e a erradicação.
Um dos casos foi a Favela Mata Sete, no bairro de Boa Viagem, em Recife. O Chefe da 2a seção do IV Exército, coronel Ney Armando de Mello Meziat (no relatório da CNV, é o autor número 316 de graves violações de direitos humanos), foi acusado em 1978 pelos próprios moradores de forçá-los a “abandonarem seus barracos” (JORNAL DO BRASIL. Coronel não responde à denúncia. Rio de Janeiro, 17 agosto 1978, p. 17). O deputado Roberto Freire (MDB/PE), denunciou no Congresso “as violências feitas pela madrugada, com homens armados e mascarados que derrubam casas”; Meziat era também “acusado de ser sócio de uma empresa imobiliária que quer afastar os moradores” (JORNAL DO BRASIL. Deputado denuncia Coronel. 16 agosto 1978, p. 8). A Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife “assumiu a luta”  (JORNAL DO BRASIL. Igreja defende favelados. 15 de dezembro de 1978, Nacional, p. 8) em prol dos moradores. A favela acabou sendo expulsa pela Empresa de Urbanização do Recife (URB) e a Polícia Militar, mas na “Nova República”, em 1989, e boa parte de seus moradores criou a comunidade Entrapulso (CARVALHO, João. Entrapulso, uma minicidade entre os espigões de Boa Viagem. Jornal do Commercio. 22 de setembro de 2012)

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Desarquivando o Brasil CXI: Memória, justiça e movimentos sociais

Estou fazendo um curso a distância sobre justiça de transição. Embora meu aproveitamento não recomende os textos que lá escrevi para ninguém (consegui 6 pontos em 100), resolvi transcrevê-los aqui.
Só incluí textos dos fóruns; os trabalhos, apesar da extensão mínima permitida, talvez eu inclua depois.



Creio que o texto de Reyes Mate, "Memoria y justicia transicional", pode ajudar, bem como outras partes de sua obra. Aqui, citarei também Medianoche en la historia (Madrid: Editorial Trotta, 2006), que analisa as Teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin.
A relação entre justiça e memória pode ser concebida a partir de um prisma benjaminiano; o historiador benjaminiano chegaria a duas conclusões: "Em primeiro lugar, que, se o vencedor segue vencendo nem sequer os mortos estariam a salvo [...], porque o herdeiro do vencedor passado tratará de explorar ou ignorar o sentido da morte do morto. E, em segundo lugar, que a luta atual contra o inimigo presente possui força retroativa." (Medianoche em la historia, tradução nossa, p. 204).
Desse lado, a relação entre injustiça e esquecimento dar-se-ia nestas duas trincheiras: em relação aos mortos, aos desaparecidos e aos antigos militantes, pois ignorar suas histórias impossibilita fazer-lhes justiça, e no tocante às gerações atuais, esquecer as injustiças do passado significa cegar-nos para as do presente.
No texto da bibliografia básica, Reyes Mate critica tanto Hobbes quanto Hegel. A Hobbes, a entrega da violência ao Estado em troca de segurança. Quanto a Hegel, a ideia de que as vítimas não importam diante da marcha do progresso: “las víctimas son el precio del progreso y como este es indiscutible, las víctimas son insignificantes”. Nos dois casos, “El Estado, tanto en su versión hobbesiana como hegeliana, han invisibilizado a las víctimas.” (p. 164).
O esquecimento, portanto, significa a retirada dos corpos e dos desaparecimentos, dos lutos realizados e dos lutos suspensos, ao espaço público. Sem o espaço público, não é possível fazer justiça. Nesse ponto, podemos citar o artigo de Roberta Cunha de Oliveira, “Entre as geografias violadas e a resistência pelo testemunho, a necessária ruptura para a transição brasileira”, no ponto em que aborda a “escuta pública dos testemunhos”, que instaura na narrativa a “ruptura com a velha ordem autoritária que impôs o silenciamento e a desmemória. Nesse aspecto, o lugar público do testemunho instaura o ponto de partida para reconstruções de memórias coletivas por meio da transformação das histórias despedaçadas em histórias compartilhadas.” (p. 176).
Sob esse aspecto, pode-se vincular injustiça e esquecimento. Como exemplo disso no processo brasileiro de justiça de transição, podemos recordar a “Manifestação sobre o Relatório da Comissão Nacional da Verdade” que a Comissão Camponesa da Verdade publicou em 25 de novembro de 2014:
Contudo, apontamos nossa preocupação com a informação de que a CNV reconhecerá oficialmente apenas um número aproximado de 430 mortos/as e desaparecidos/as, referentes em sua quase totalidade a nomes e casos já reconhecidos.
A se confirmar esta informação, se consagra a exclusão da maioria de camponeses e camponesas mortos/as e desaparecidos/as das políticas de reconhecimento oficial, dificultando o acesso à justiça de transição.
Destaca-se que a Comissão Camponesa da Verdade entregou relatório circunstanciado de graves violações de direitos humanos dos camponeses como subsídios à CNV, incluindo uma lista de 1.196 camponeses e camponesas mortos/as e desaparecidos/as.
Reivindicamos o reconhecimento oficial de todos os camponeses mortos e desaparecidos no Relatório da CNV.
O trabalho de memória, no caso do Brasil, não está completo, e ele é necessário para que a dimensão da justiça seja estabelecida.

A segunda pergunta exige a comparação entre dois elementos diversos em natureza e finalidade: um movimento social e uma lei, uma lei que serviu para gerar um efeito diferente do que aquele movimento queria.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

As Mães de Maio, ou os movimentos sociais pensam o mundo

Comecei a escrever isto no twitter, vendo pessoas governistas atacando as Mães de Maio. Para a gente infame, ou cuja leviandade é tão extrema quanto sua desinformação, que diz que as Mães de Maio são linha auxiliar do PSDB, sugiro, caso saiba ler, ao menos estes links, entre centenas de outros:

Para os governistas que não sabem ler, aconselho estas figuras do facebook:

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Caravana Sudamérica 43 e as Mães de Maio: massacres no México e no Brasil


Familiares dos 43 estudantes assassinados em Ayotzinapa chegarão em São Paulo no dia 2 de junho. Divulgo abaixo o texto da Caravana Sudamérica 43 e sua lista de apoiadores.
A terrível história é mais um dos crimes do Estado mexicano: estudantes da Normal Rural de Ayotzinapa foram executados pela polícia municipal em setembro de 2014: leiam a história, que teve repercussão mundial. Os estudantes estavam "fazendo uma coleta de recursos entre a população local para a manutenção da sua escola e para assistir a marcha nacional contra o esquecimento da matança dos estudantes de 1968". Acabaram sendo alvo de outro massacre.
Eu sabia dessa chegada porque ela foi um dos assuntos do último encontro do seminário das quartas-feiras da Faculdade de Filosofia da USP, dia 27 de maio, em que estiveram representantes das Mães de Maio. As Mães receberão os familiares mexicanos. Como se sabe, elas também representam famílias que sofreram um massacre: o assassinato de centenas de jovens na periferia de São Paulo em maio de 2006.
O crime foi impressionante: o número de vítimas foi maior do que o de militantes políticos durante os anos da ditadura militar (menor, claro, do que o de índios e camponeses mortos pela ditadura, que são mais de dez mil). E gerou resposta imediata do Ministério Público do Estado de São Paulo, em 25 de maio: um elogio público à Polícia Militar... O que é uma das razões pelas quais as Mães de Maio pedem a federalização desses crimes.
Foram três membros do movimento ao seminário. Débora Maria da Silva explicou que os mortos das Mães de Maio "têm nome e sobrenome", exigindo memória e justiça, e que elas não querem "poder de gabinete", mas "poder de transformação": sabiamente, não querem se institucionalizar, mesmo na Comissão da Verdade da Democracia, que segue trabalhando: "Este movimento tem cérebro. Nós não somos coitadas. Somos guerreiras, nós não nos curvamos pro Estado."
A uma indagação sobre o deputado estadual Telhada, do PSDB, que é contrário ao movimento, Débora respondeu que ele é um "produto da sociedade paulistana", "que não vê o outro da periferia". Sobre o Ministério Público estadual, ela reiterou que os procuradores não fazem a fiscalização externa da polícia e que pedem o arquivamento dos inquéritos, apesar dos laudos apontarem para execuções.
Danilo Dara informou que estão produzindo novo livro para os 10 anos dos crimes e criticou o "mercado de direitos humanos": acadêmicos e organizações não governamentais que usaram as Mães para promoção própria. Ouçam-no falar sobre a desmilitarização da polícia (outro dos temas do seminário) nesta entrevista à Central Autônoma.
Francilene Gomes Fernandes falou da dissertação de mestrado em Assistência Social, pela PUC-SP, que elaborou sobre os crimes de maio, "Barbárie e direitos humanos: as execuções sumárias e os desaparecimentos forçados de maio (2006) em São Paulo", e a dificuldade ética e metodológica de estudar o objeto em que ela diretamente implicada, que acabou se tornando uma vantagem. E ela explicou que as Mães não tiveram "nenhum apoio da Defensoria Pública em nenhum momento".
Entre outras perguntas, o professor Paulo Arantes quis saber da relação do movimento com os familiares de mortos e desaparecidos políticos. Francilene afirmou que "não existe hierarquização de nossas lutas", "é um crime de lesa-humanidade". Alguns dão apoio, como Ângela Mendes de Almeida e Alípio Freire, mas Danilo denunciou que "a maioria ou silencia ou está se lambuzando em cargos". Eles mencionaram a atuação de Adriano Diogo, que foi preso político da ALN (Ação Libertadora Nacional), presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" e apoiou a fundação da Comissão das Mães de Maio.

Foi uma ocasião importante para a discussão da possibilidade de construir a democracia e a justiça no Brasil. E a vinda do Movimento do México será importante para ampliar o debate a articular ações, imagino.
No contato com as famílias mexicanas, vemos a ampliação da rede desses movimentos de direitos humanos, que não devem se circunscrever aos limites nacionais, sendo as execuções sumárias e os desaparecimentos forçados os instrumentos criminosos de "gestão" das populações que os Estados da América Latina (e, sim, o Brasil pertence à América Latina) tantas vezes empregam com moradores das periferias, bem como com os negros e as populações indígenas.
Sugiro o acompanhamento das notícias da Caravana no portal do Coletivo Antiproibicionista DAR.

Depois de passarem por Argentina e Uruguai, familiares dos 43 estudantes desaparecidos pelo Estado mexicano em setembro do ano passado desembarcam em São Paulo na noite desta segunda-feira para a primeira das três etapas brasileiras da Caravana 43 Sudamérica. A iniciativa, organizada por coletivos e movimentos sociais autônomos, busca demonstrar solidariedade com a luta dos familiares e fazer ecoar suas demandas por justiça e apresentação com vida dos desaparecidos.

Inaugurando os eventos no dia 2, a partir das 14h, haverá uma coletiva de imprensa na qual os familiares explicarão melhor a Caravana Sul-americana e suas demandas. Ela acontecerá na sede da Kiwi Cia. de Teatro, no centro da cidade. Os familiares não estarão disponíveis para entrevistas no restante dos dias.

Haverá ainda um debate público, a ser realizado às 19h do dia 2 de junho e do qual participarão as Mães de Maio, também no centro, e um sarau na noite do dia 3 de junho, no Taboão da Serra, organizado pelo Sarau do Binho em conjunto com outros saraus da periferia paulista, no qual será prestada solidariedade e homenagem aos familiares de Ayoztinapa e sua luta.

O debate do dia 2 de junho será precedido de uma intervenção teatral pública na Praça da Sé, às 18h, organizada pelo grupo de teatro Coletivo de Galochas, e a agenda dos familiares contará ainda com uma visita a uma aldeia indígena na zona sul da cidade.
A Caravana 43 Sudamérica começou no dia 16 de maio e no total passará por sete cidades: no Brasil incluirá também Rio de Janeiro e Porto Alegre. O recorrido acontece nos mesmos moldes de movimentações recentemente organizadas nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, onde familiares dos desaparecidos passaram por doze países.

Mais informações:

Programação pública completa
2 de junho (terça), às 14h – Coletiva de imprensa com os familiares
Kiwi Cia de Teatro: Rua Frederico Abranches, 189

2 de junho (terça),
às 18h, intervenção teatral na Praça da Sé. Coletivo de Galochas.
às 19h – Debate público – Caravana 43: familiares de Ayotzinapa, Mães de Maio e suas resistências
Quadra dos bancários: rua Tabatinguera, 192

3 de junho (quarta), às 20h – Ayotzinapa somos todxs – Sarau do Binho com outros saraus
Espaço Clariô: Rua Santa Luzia, 96 – Taboão da Serra
  
Coletivos que compõem a Caravana em São Paulo:  
Mães de Maio
Movimento Passe Livre – SP
Casa Mafalda Espaço Autônomo
Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais CATSO  
Rede 2 de Outubro
Espacio de Lucha Contra el Olvido y la Represión (ELCOR) – Red Contra la Repression (México)
Margens Clínicas
Comboio Moinho Vivo
Rizoma Tendência Estudantil Libertária
Coletivo DAR (Desentorpecendo a Razão)
Rede Extremo Sul
Comissão Yvyrupá

P.S.: As Mães de Maio deram um lindíssimo fora na editora Boitempo nesta nota: http://passapalavra.info/2015/06/104815

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Desarquivando o Brasil XC: Prisões políticas, ontem e hoje

Ontem, perguntaram-me se Fabio Hideki Harano havia sido condenado a 13 anos de prisão. Não, trata-se ainda de um inquérito (e não de um processo penal) que prossegue, embora ele tenha sido libertado, com Rafael Marques Lusvarghi, no dia 7 de agosto. O laudo chegou a conclusão de que não carregavam explosivos, o que pode ser verificado nos vídeos que estão no sítio Liberdade para Hideki.
Nos dois casos, tratou-se de prisões políticas em São Paulo, segundo a linha de argumentação que expus em outra nota neste blogue:
Participei de poucos eventos relativos à Copa porque estava muito envolvido, mesmo em junho, com a rede Índio é Nós; no entanto, pude testemunhar que a polícia militar tentou invadir uma atividade do Comitê Popular da Copa e do Comitê pela Desmilitarização da Polícia em que eu era um dos palestrantes sob o pretexto de que ocorreria uma "atividade política".
A persistência das ações ilegais do Estado brasileiro contra seus cidadãos mostra que a Copa foi mais um triste capítulo na história da democracia brasileira. Persistência alimentada pelos velhos hábitos do Judiciário: o único preso pelas manifestações de 2013 foi alguém que nem mesmo delas participava, mas era o alvo preferencial do sistema penal brasileiro: o negro e pobre Rafael Braga Vieira, "armado" com perigosíssimo desinfetante.
Alguém, talvez ingenuamente, poderia indagar se as prisões arbitrárias (como foi a de Vieira, ratificada pelo Judiciário) são políticas, ou se há presos políticos no país. Não vejo como negá-lo. Explico.
As prisões ilegais têm como efeito a limitação do que Charles Tilly chama de repertório de ação coletiva dos movimentos. Nesse repertório, estão passeatas, debates, marchas - as possibilidades de ação coletiva para mobilizar a ação e a opinião públicas.
Tal ação coletiva é política, e é ela que está sendo reprimida. Quando são detidos manifestantes que são considerados "líderes" de movimentos (e criminalizados por parte da imprensa que é sócia desses abusos), não é abusivo caracterizá-los como presos políticos. Ainda mais porque são detidos em razão do exercício (ou da possibilidade desse exercício, no caso de prisões que antecedem as manifestações) de direitos democráticos.
O cerceamento policial-midiático-judicial do repertório legal de ação coletiva é um desastre do país.
A ilegalidade corrente desse tipo de atuação das polícias parece-me estar documentada. Ademais, pessoas que sabem muitos mais do que eu desses assuntos concordam com a natureza política desses inquéritos. Nesta recente entrevista, dada à Rede Brasil Atual, Luiz Eduardo Greenhalgh, que defendeu vários presos políticos durante a ditadura militar e fez carreira política no PT, afirma que se sente "novamente defendendo um preso político" e ataca, corretamente, como o faz há muito tempo Fábio Konder Comparato, a forma de nomeação de Ministros no Judiciário, que facilitaria os comprometimentos políticos.
Ele erra, no entanto, ao dizer que hoje "não tem Lei de Segurança Nacional"; muito pelo contrário, nós a temos, e é a mesma dos tempos do General Figueiredo, integrando o chamado entulho autoritário normativo da ditadura: a lei n. 7170 de 1983. Lembro que ela ainda é empregada contra manifestantes nos dias de hoje.

No inquérito fluminense fruto da Operação Firewall, e que também gerou prisões políticas, Bakunin foi tratado como um dos suspeitos. Esse momento de curiosa competência técnica da inteligência policial fez muitos recordarem momentos em que as prisões políticas eram mais frequentes, a ditadura militar, e lembrarem que, naqueles tempos, Karl Marx foi fichado pela polícia política; até a obra de Descartes foi tratada como literatura subversiva.
Note-se que a Polícia do Rio de Janeiro (talvez hoje o grande centro de repressão política no Brasil: não é de admirar que policiais desse Estado tenham ido prender manifestantes no sul do país) foi mais erudita do que o governo de Goiás, que veiculou notícia de mortes de overdose de maconha, de um sítio de paródia, com o testemunho pretensamente real de personagens de cinema e de tevê dos Estados Unidos.
Aquele detalhe espírita-anarquista, no entanto, é um dos menos absurdos do inquérito fluminense, que inclui a negação do envio dos autos para o desembargador Sirlo Darlan (mas não para a Globo) e uma dor de cotovelo vingativa contra Elisa Quadros, conhecida como Sininho. Bessa Freire, em "Sininho: a mídia e os tradutores da polícia" (leiam-no), fez uma divertida paródia da fabulação policial de que o Maracanã seria incendiado. Cito o autor:
[...] a Polícia do Rio tem uma tradição de leitura de intenções delituosas. No Arquivo Nacional, no Fundo Polícia da Corte, encontrei um documento que registra a prisão de um índio, em 1831, por "estar numa atitude de quem estava pensando em roubar". Embora não tenha conseguido ler as intenções, entre outros, dos assassinos da dona do Restaurante Guimas, a Polícia usou seu faro para prender, pelo menos, quem estaria pensando em fazer baderna.
Lênio Streck afirmou que se trata de uma "versão jabuticaba do Minority Report", já que a polícia estaria prevendo crimes antes de serem preparados... Essa fabulação autoritária policial, apoiada pelos governos estaduais concernentes e pelo federal mantém o Rio de Janeiro como talvez o centro mais importante da repressão política no país. Em outra nota, escrevi que as prisões eram políticas em virtude do repertório de ação coletiva dos movimentos sociais. A criminalização do pensamento também caracteriza a natureza política das prisões ordenadas pelo juiz Itabaiana, que fazem parte de um processo nacional (a despropósito, o candidato do PSDB à presidência resolveu fazer campanha dizendo que seria mais repressivo do que a presidenta), que envolve, em São Paulo, o inquérito contra o Movimento Passe Livre e a prisão de militantes (que inclui explosivos que não eram), bem como a prisão de diversas lideranças indígenas pelo Brasil.

Enfim, o #NãoVaiTerCopa estava certo... A Copa deixa seu legado repressivo, que tem um impacto forte contra os direitos fundamentais. Note-se, como a Anistia Internacional o fez, que a Defensoria Pública não recebeu credenciais para a Copa do Mundo, e sim os magistrados e o Ministério Público. A opção política era por quem poderia acusar e quem poderia condenar.
O problema não é só de polícia, tampouco o de sua militarização; como se poderia ter uma polícia democrática se os governos não o são realmente? O que acontece no Rio e em São Paulo deveria ser caso de impedimento dos governadores, mas aqueles que o poderiam decidir fazem parte do mesmo problema, e os grandes partidos unem-se (inclusive o que ocupa o governo federal), na oportunidade dos grandes negócios e eventos, no mesmo complexo repressivo: a abertura da Copa confirmou-o.
Um dos grandes juristas brasileiros, Deisy Ventura, que espero que reúna essas reflexões em um artigo, lembrou que "Há abissal diferença entre membro de uma organização política praticar um crime e o fato de fazer parte de organização política ser um crime", e ela se chama "democracia". Se formalmente o regime seria uma democracia, pode-se falar em uma cultura democrática no Brasil?
Em vários setores, não. Em um momento em que professores também estão sendo presos, como Camila Jourdan da UERJ, a fome das vozes da repressão é atiçada e exige mais ossos.
O ódio ao ensino e aos professores é mais um dos elementos dessa criminalização do pensamento. Uma educadora, poeta, psicanalista e filósofa que aparece nos veículos da Globo veiculou em rádio uma frase que pode ser encontrada em blogues de extrema direita, "adote seu filho antes que um professor de história ou de filosofia o adote, porque essa é a guerra com os adolescentes em sala de aula". O radialista chegou a lhe perguntar se se não tratava de exagero, mas ela reiterou sua visão, tentando dar uma lição de direito (bem errada, por sinal) para Siro Darlan. Gilson Junior fez uma análise das declarações dessa autora no blogue dele, afirmando que ela era um caso de "criminalização do raciocínio".
Certamente a "guerra", como a autora define tão mal, passa por uma hostilidade ao pensamento. Em mais um dos momentos ridículos do inquérito no Rio de Janeiro, uma pesquisa de mestrado foi considerado um dos "grupos organizados", "permeáveis a ideias extremistas e a manipulação política"; conta-nos Arthur William, mestrando na UERJ.
Tal hostilidade é um dos elementos do caráter político dessa onda de repressão que é a resposta do Estado brasileiro, governo federal e estaduais em conjunto, para as demandas democráticas que a sociedade fez nas ruas em 2013.

Habituais porta-vozes dessa hostilidade, os grandes meios de comunicação fazem sua tarefa habitual de desinformar e criminalizar manifestantes. Foram escritas coisas muito constrangedoras sobre direito de asilo (inclusive pelo Ministro do STF que deu a decisão que levou à fuga de Salvatore Cacciola do Brasil), em virtude de a advogada Eloísa Samy, um dos alvos da Operação Firewall, ter pedido asilo ao Uruguai. Remeto novamente às explicações da internacionalista Deisy Ventura: https://twitter.com/Deisy_Ventura/status/491583002410237952
Os Advogados Ativistas e os Observadores Legais têm se tornado um alvo da polícia, o que é mais uma ratificação do caráter político das prisões, além das agressões a jornalistas. A advogada Eloísa Samy teve, de fato, prerrogativas da advocacia desrespeitadas (a OAB-RJ expressou contrariedade em razão do grampeamento do telefone de advogados feito na Operação Firewall), e argumentos típicos da ditadura militar para acusá-la; segundo notícia da Globo, um dos elementos da denúncia apresentada pelo Ministério Público era o fato de ela não cobrar honorários.

Trago apenas dois documentos, de tantos possíveis, da época da ditadura militar, que se relacionam com esses dois pontos.
No tocante à comunicação entre advogados e clientes, a correspondência entre clientes e advogados era muitas vezes interceptada, o que já era ilegal nessa época.
O documento, guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), é uma Informação do Centro de Informação do Exército (CIE), de 1970. Na correspondência entre o advogado Ney Tavares de Campos e o militante Jorge Batista Filho, note-se que o advogado também era considerado "subversivo" para o órgão do sistema de informações.
Sobre o segundo ponto, esta Informação de julho de 1970 do Ministério do Exército, também guardada no APESP. Temos nela um dos exemplos da preocupação oficial com a atividade advocatícia. Destaco outro documento do governo Médici, época em que muitos advogados foram presos simplesmente por tentarem defender seus clientes.
Em nota anterior neste blogue, em que mencionei a prisão de Rosa Cardoso (hoje um dos membros da Comissão Nacional da Verdade) durante a ditadura militar por defender presos políticos, pode-se ver a preocupação da polícia política em saber se os advogados trabalhavam de graça. Se o fizessem, era sinal de que eram militantes e, portanto, subversivos. No entanto, se cobrassem honorários, estimulariam com isso atividades ilícitas da esquerda clandestina:
4. Criou-se uma verdadeira indústria de advocacia da subversão, cujos nomes são públicos e notórios, especializados em tais tipos de defesa, com quase total liberdade de movimento nas Auditorias, coagindo, moral e financeiramente, seus funcionários para obterem cópias de depoimentos, etc, além de exercerem pressão para obtenção de regalias, acima do possível, para seus constituintes, quando já em regime penitenciário.
5. Não se trata de perseguir ou cercear o direito de defesa, exigindo-se tal controle, mas evitar o estímulo a novos assaltos para obter tais recursos, diminuir a ambição desmedida de advogados inescrupulosos e o controle moral das organizações sobre os presos.
Ontem como hoje, a existência desses advogados que defendem os inimigos do poder é incômoda para o Estado. Mostrou-o o inefável tweet da Polícia Militar do Rio de Janeiro em 22 de julho de 2013: "Membros da @OABRJ_oficial prejudicando o trabalho da Polícia Militar".

Escrevo essa nota em homenagem a Siro Darlan, que apenas confessa que o rei está nu ao dizer isto desta eventual extensão da polícia que é o Ministério Público: "Os instrumentos de segurança estão invasivos, até mais que na época da ditadura, por uma questão de desenvolvimento das comunicações. Na época dos militares, não tínhamos a tecnologia de hoje. Essa nova lei contraria os direitos do cidadão. O Ministério Público é uma inutilidade. Ele é muito eficiente quando lhe interessa. Mas há situações em que o MP se omite. Hoje estamos com prisões superlotadas porque o MP é eficiente na repressão do povo pobre, do povo negro."
Por isso, recebeu uma representação contra ele no Conselho Nacional de Justiça: http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2014-08-01/conselho-pede-punicao-de-juiz-que-criticou-ministerio-publico.html
Nesta reportagem da Ponte, testemunha Débora Maria da Silva, das Mães de Maio, uma das representantes desse povo organizado: "a polícia mata, mas o Ministério Público mata mais e com canetadas, com jogos de carimbos entre as instituições."

P.S.: Vejam que o presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB-RJ, Breno Melaragno Costa, informa que a Polícia Civil decidiu publicar em seu boletim que irá respeitar o Estatuto da Advocacia no tocante às prerrogativas do advogado, bem como garantias contra as prisões arbitrárias: https://www.facebook.com/breno.melaragnocosta/posts/736115753096377

sábado, 7 de setembro de 2013

Desarquivando o Brasil LXVIII: Novamente, os desaparecidos ontem e hoje




É sete de setembro e, nesta data cívica, estou vestindo a camiseta das Mães de Maio (http://maesdemaio.blogspot.com.br/). 
Neste dia, muito apropriadamente, o jornal O Globo publicou, no caderno Prosa (antes também verso), longa matéria sobre "Os desaparecidos da ditadura e os democracia no Brasil" (http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/09/07/os-desaparecidos-da-ditadura-da-democracia-no-brasil-509472.asp). 
O jornalista Leonardo Cazes falou com pessoas muito relevantes para a questão, como Maria Rita Kehl, Bernardo Kucinski, Janaína Teles e Fábio Araújo. Além disso, entrevistou Pilar Calveiro, que finalmente teve lançado no Brasil seu importante livro Poder e desaparecimento (São Paulo: Boitempo, 2013): http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/09/07/o-poder-desaparecedor-da-ditadura-argentina-509469.asp
A primeira matéria aludiu à recente campanha da OAB do Rio de Janeiro, a partir de pesquisa coordenada por Michel Misse, sobre os "Desaparecidos da democracia" (http://www.youtube.com/watch?v=QKxlYT0Q5cs), que incluem o pedreiro Amarildo no regime de exceção instalado pelo sistema da UPP no Rio de Janeiro. 
Se a polícia pôde matar ao menos dez mil entre 2001 e 2011, segundo aponta Misse, de fato a democracia que temos é precária o suficiente para que, aos grupos contrários aos direitos humanos, a ditadura não seja mais necessária...
A campanha foi lançada em 27 de agosto deste ano. Nesse mesmo dia, curiosamente, o Senado aprovou projeto de lei tipificando o crime de desaparecimento forçado, o que é uma obrigação que o Estado brasileiro assumiu tornando-se parte da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado. O projeto segue para a apreciação da Câmara dos Deputados: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/08/27/plenario-aprova-tipificacao-do-crime-de-desaparecimento-forcado-de-pessoa
Veja-se na matéria que foi destacado o caso do Estado do Rio de Janeiro, onde o número desses desaparecimentos já superaria o dos homicídios. 
As repercussões desse tipo de crime são várias e refletem-se na arte. No Museu de Arte do Rio, pode-se ver atualmente, na Coleção Boghici, uma obra de Rubens Gerchman, "Desaparecidos", pintada em 1965, bem representativa da questão na época. Dois personagens são apresentados, ambos chamados de João da Silva, que não foram mais encontrados: um trocador de ônibus e um líder sindical.
No térreo do Museu, uma obra do Projeto Morrinho, "Morrinho 2012", que representa uma favela coberta de frases e discursos, foi atualizada com duas perguntas sobre o destino do pedreiro Amarildo, a quem escrevi isto: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/07/algo-como-um-poema-os-direitos-humanos.html
O Estado brasileiro, na sua falta de renovação política, tem sido reincidente nos casos de desaparecimento. Leonardo Cazes havia me procurado para a matéria que foi hoje publicada hoje e me enviou algumas perguntas. Algumas das declarações puderam ser úteis e foram incluídas. Mas, caso alguém queira ler todas as respostas que dei, copio-as abaixo.


- O relato de algumas famílias com quem conversei apontam para uma espécie de violência que não acaba. A falta do corpo, do ritual da morte, do luto transforma essa experiência em uma dor que não termina nunca. Do ponto de vista jurídico, qual é o status do desaparecido? O desaparecimento forçado é tipificado como crime no Brasil? O desaparecimento é um crime contínuo, que não termina enquanto durar o desaparecimento?



Muitas dessas famílias descrevem algo como um luto em suspenso, e tal suspensão é mantida pela impunidade dos agentes da repressão política: a presença da dor é reforçada pela ausência de justiça. Algo semelhante foi dito pelo jurista e poeta argentino Julián Axat, membro da associação de filhos de desaparecidos HIJOS (seus dois pais foram sequestrados logo após o golpe de 1976 e nunca foram encontrados). Axat, ao comentar os julgamentos na Argentina em razão do terror de Estado durante o golpe militar, afirmou que "só a justiça tira nossos pais de um lugar difuso, de um purgatório, da instância fantasmática" (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/04/desarquivando-o-brasil-iv-o-exemplo-da.html).

Quero fazer notar que se trata, também no Brasil, de reivindicações judiciais dos parentes das vítimas, e não de vingança: isto é, tais famílias não pedem que a sorte de seus parentes desaparecidos se repita com os algozes. Elas desejam a justiça justamente para que os processos, com suas garantias formais, deem o recado aos agentes da repressão (de ontem e de hoje) de que tais abusos não devem mais acontecer.

Já em 1992 a ONU havia aprovado uma Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, considerando a prática um crime contra a humanidade, o que foi confirmado no Estatuto de Roma, de 1998, que criou a Corte Penal Internacional. O tratado específico somente foi celebrado, em Paris, no ano de 2007, e o Brasil ratificou-o no final de 2010: trata-se da “Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado” da ONU. Ainda não fez o mesmo com a Convenção Interamericana, no entanto mais antiga (1994) e celebrada neste país, em Belém do Pará. Lembro também que o artigo terceiro da Lei da Comissão Nacional da Verdade inclui esse crime entre os abusos contra os direitos humanos que estão sendo investigados pelos conselheiros.

Embora, tecnicamente, ainda falte lei nacional que tipifique o crime com sua pena, a prática já pode ser processada no Brasil como crime de sequestro. O próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu-o, ao julgar pedidos de extradição da Argentina em 2009 e em 2011, em razão de indivíduos acusados de abusos contra os direitos humanos durante a última ditadura daquele país. O STF ainda afastou a presunção de morte por ausência do corpo, o que mostra que, juridicamente, o crime não terminou. Essa qualificação jurídica corresponde fielmente a um dado psicológico: esse crime, ao suspender o luto, de fato permanece a causar sofrimento entre os familiares.


 

- A Lei de Anistia no Brasil teve um caráter de reciprocidade, estariam anistiados tanto militantes políticos quanto os agentes do Estado que cometeram crimes. Quais os impactos dessa interpretação (avalizada pelo STF em decisão recente) para a luta dos familiares de desaparecidos na ditadura militar?


O suposto caráter recíproco da lei de anistia foi um dos falseamentos da história brasileira realizados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ação proposta pelo Conselho Federal da OAB, a ADPF 153. De um lado, a lei excluiu os crimes de sangue para os opositores do regime; por outro, a oposição queria responsabilizar os agentes do regime, o que era expressamente previsto pelos substitutivos apresentados pelo PMDB, entre eles pelo então deputado federal Ulisses Guimarães, e isso também era uma das reivindicações do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). Certos Ministros do STF chegaram a imaginar que a sociedade falou de forma soberana nessa lei, enquanto os documentos históricos provam que se tratou de projeto do Executivo, imposto por sua maioria no Congresso, e que militantes chegaram a ser presos simplesmente pela posse de panfletos pela anistia. Na minha pesquisa, encontrei vários documentos secretos que mostram a vigilância e o controle dos agentes da repressão sobre a campanha pela anistia (este é um dos textos que escrevi sobre o assunto: http://hal.inria.fr/docs/00/53/12/73/PDF/AT12_Fernandes.pdf)

Deve-se lembrar ainda que, na decisão tomada na ADPF 153, o STF considerou que a Lei de Anistia estava acima da Constituição de 1988 (reconhecendo indiretamente que a anistia dos assassinos e torturadores da ditadura é mesmo incompatível com a atual Constituição), por força de emenda constitucional feita à Constituição de 1967! Ou seja, a Constituição da democracia estaria abaixo de uma emenda da Constituição da ditadura, que já está revogada... O absurdo jurídico salta aos olhos e representa, politicamente, uma anulação da transição do país para a democracia.

Como o caso ainda não entrou em julgado (falta a apreciação dos embargos declaratórios propostos pelo Conselho Federal da OAB), a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu em sentido oposto no fim de 2010, como vários grupos, de juristas e de militantes, protestaram contra a decisão, e a composição do tribunal mudou, creio ser possível que o STF consiga se reabilitar disto que chamei, no Brasil e no exterior, de golpe judicial contra a democratização do país.


 

- A Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, já condenou o Brasil por casos como o da Guerrilha do Araguaia. No entanto, pouco ou quase nada foi feito a partir disso no Brasil. Qual o poder dessas decisões internacionais?


De fato, pouco foi realizado pelo Estado brasileiro. As condenações de tribunais internacionais têm efeitos muito diversos, variando de acordo com o que prevê o estatuto da corte envolvida. No caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, prevê-se a obrigatoriedade de suas sentenças, porém, internacionalmente, elas só geram o efeito, de repercussão política, de considerar um Estado fora-da-lei no tocante aos direitos humanos. Esse lamentável status do Brasil foi confirmado em 2012 pela reação da Presidenta da República e do Congresso Nacional contra a medida suspensiva aprovada (e logo depois revogada) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (que é outro órgão da OEA integrante do sistema de proteção aos direitos humanos) no caso da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, que viola diversas previsões de direito ambiental e de direitos humanos, tanto no plano nacional quanto no internacional. Tais atitudes da atual administração federal cada vez mais se assemelham, na sua reação contra o direito internacional dos direitos humanos (que reflete, por sinal, a problemática eficácia desses direitos dentro do Brasil), a táticas dos generais que presidiram o país durante a ditadura militar, o que é tristemente irônico, se lembramos do passado da Presidenta.





- É possível estabelecer alguma conexão/relação/paralelo entre os desaparecimentos da ditadura militar e os desaparecimentos contemporâneos, simbolizados pelo caso do pedreiro Amarildo, da Rocinha?


Entendo que sim. A militarização da polícia, que faz parte do triste legado da ditadura militar, conduz a um sistema que leva necessariamente a abusos, pouco importando se policiais, individualmente, são corretos. A correção e, mais do que isso, a própria legalidade não combina com tal sistema, razão pela qual a ONU já recomendou sua extinção. A militarização significa que os policiais são treinados para combater um inimigo, e não proteger os cidadãos. E quem é o inimigo para tal polícia? O ex-comandante da PM do Rio de Janeiro, ao tentar justificar a feroz investida do governo do Estado contra as centenas de milhares de pessoas na rua, candidamente revelou-o: é a própria população... Qualquer sistema que considere o povo como inimigo é incompatível com a soberania popular e, por essa razão, é irreconciliável com a democracia.

A incompatibilidade da polícia militar com um regime democrático tem nos desaparecimentos forçados, que cresceram nas áreas ocupadas por UPPs, apenas um de seus exemplos, que revelam como as práticas autoritárias permanecem para os pobres e as minorias. Contra estes, é imposto um punitivismo demagógico e criminoso, exercido tantas vezes contra inocentes e além dos limites da lei, que não autoriza a tortura, os desaparecimentos e as execuções sumárias. Mesmo na época da ditadura militar, tais práticas não eram lícitas. O regime autoritário, porém, deixou-nos esta herança da impunidade dos abusos contra os direitos humanos. Ela deve ser combatida, tanto em relação aos casos de ontem (o genocídio dos índios, a perseguição a militantes políticos vítimas da ditadura), quanto aos de hoje, como Amarildo no Rio de Janeiro, os filhos das Mães de Maio em São Paulo e, novamente, os índios, que continuam a sofrer com a cobiça sobre o que restou de suas terras.


quarta-feira, 12 de junho de 2013

Desarquivando o Brasil LX: Com Gorender, contra Gorender, pela justiça de transição

Morreu ontem, 11 de junho de 2013, Jacob Gorender. Não há quem pesquise o período da ditadura militar no Brasil sem que estude Combate nas trevas (sua última edição, esgotada, saiu pela Ática; esperamos que os herdeiros logo encontrem nova casa editorial). Com sua morte, não saberemos se e como revisaria novamente o livro para comentar informações novas que estão sendo reveladas por outros pesquisadores e pelas comissões da verdade. De qualquer forma, na sua edição atual, o livro, além de uma importante análise, é um documento imprescindível de um militante que se dedicou a refletir sobre sua própria trajetória e a da esquerda brasileira.

A trajetória deste historiador marxista e não acadêmico cruzou-se dolorosamente como autoritarismo no Brasil, e teve que incluir a superação do stalinismo (http://blogdaboitempo.com.br/2011/10/21/jacob-gorender/).  Ele também se dedicou aos temas da escravidão e do racismo no Brasil. Não li O escravismo colonial, que alguns apontam como sua obra mais importante.
Escrevo esta nota apenas, pois, para lembrar da sua importância para a questão do direito à memória e à verdade e da justiça de transição.
Recomendo revê-lo nesta entrevista ao Roda Viva em 2006: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/526/entrevistados/
Ele aponta a falsidade de importar as teorias dos dois demônios para o Brasil, a falácia, invocada pela direita menos informada ou menos honesta, da pretensa simetria dos "dois lados":

No meu livro Combate nas trevas, eu procurei ser fiel aos fatos, mostrar por que a esquerda foi derrotada, porque ela não conseguiu os resultados que esperava e alguns de seus líderes perderam a vida, como foi Marighella, Câmara Ferreira e vários outros. Procurei mostrar isso. E mostrar também os pecados, os crimes da própria esquerda. Mas eu só identifiquei, no caso de militantes da própria esquerda, quatro justiçamentos, não mais do que isso.
E a própria resistência à ditadura não pode ser combatida: "Apaziguamento, conciliação, capitulação, pacifismo incondicional - estas são posições que ajudam a ditadura a se consolidar e a prolongar sua sobrevivência." (Combate nas trevas, 6a. ed., 2003, p. 290).
Veja como esse Gorender vai contra o argumento dado por ele mesmo, mais tardiamente, nesta entrevista dada a Folha de S.Paulo em 2012 (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1293767-em-entrevista-inedita-jacob-gorender-diz-ser-contra-punicao-a-torturador-e-lei-da-anistia.shtml), de que a CNV não deve ter como foco os crimes praticados pela repressão.
O primeiro documento aqui destacado, oriundo do II Exército, está guardado no Arquivo Público do Estado de São Paulo. As autoridades militares queriam saber da existência de um grupo de dissidentes do PCB com a presença de Gorender e de Marighella, grupo que teria "uma ligação em bases operacionais" com os guerrilheiros do Caparaó. No entanto, a capacidade para fracionamento da esquerda era maior do que o imaginado, pois se tanto Gorender quanto Marighella deixaram o PCB para lutar contra a ditadura militar, fizeram-no com caminhos diversos: Marighella, com a Aliança Libertadora Nacional (ALN), buscou a ação armada sem a intermediação de partidos e foi morto em 1969; Gorender ajudou a fundar o pequeno Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), e foi preso em 1970.
No documento Linha política, de abril de 1968 (incluído em Imagens da revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971, organizado por Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá), o PCBR mostrava-se consciente desse estado de coisas "as forças de esquerda revolucionária, no Brasil, estão hoje dispersas em várias organizações"; no entanto, apostava que diversos "elementos e grupos [...] evoluem para o marxismo-leninismo", e que seria "possível atingir a unidade ideológica, política e orgânica, nas fileiras do partido". Isso não ocorreu.

Os órgãos de segurança, porém, temiam que isso ocorresse, como mostra este Boletim do SNI, de 30 de julho de 1968, que traz notícia de declaração da Ação Popular alinhando-se às posições do PCBR.
Outros documentos, do próprio PCBR, mostram profundas divisões no seio da esquerda, como diferenças entre esse partido e o PC do B, acusado de repetir os erros do PCB.
Em Combate nas trevas, Gorender, mostra-se sensível à relação entre direito e esfera pública. No capítulo "A guerrilha abafada", afirma que o governo Médici decidiu que a "a guerrilha do Araguaia não devia produzir efeitos judiciais, precisamente a fim de evitar repercussões públicas" (p. 239).
De fato, judicializar um conflito (se isso não é feito para realizar a censura judicial) pode significar trazê-lo ao conhecimento e à discussão públicos. No caso, do Brasil, a judicialização do combate a oposicionistas significou, em geral, uma chance de sobrevivência: era o sinal de que aquela prisão havia ocorrido, de que aquela pessoa estava nas mãos das autoridades. Houve quem fosse assassinado mesmo assim; no entanto, já se pode afirmar que onde a repressão foi realizada sem judicialização, como foram os casos da Guerrilha do Araguaia, das mortes de camponeses e do genocídio indígena, a quantidade de vítimas foi muito maior. Essa foi uma das razões da importância do direito e dos advogados de presos políticos no combate à ditadura.
Esse livro de Gorender também mostra a continuidade institucional da tortura a presos políticos e a presos comuns. No capítulo "Vivências do DEOPS e do Presídio Tiradentes", lembra que as prisões dos presos comuns eram, como a dos presos políticos, em grande maioria ilegais, havia quem fosse preso porque era negro, porque não estava bem vestido, porque não tinha dinheiro para satisfazer às extorsões policiais... E, no presídio Tiradentes, essas pessoas eram torturadas. Gorender conta (p. 253) como os presos políticos protestaram contra o que era feito contra esses outros, e que ele mesmo discursou diante de familiares, delegados do DOPS e do diretor da instituição penitenciária, o que logrou bom resultado.
Na mencionada entrevista ao Roda Viva, ele chega a falar de "câncer social":
Bom, tortura continua a existir hoje. Relatos de tortura não são, infelizmente, coisas do passado. É claro que militantes políticos não são mais torturados. Mas os acusados de crimes comuns, acusados verdadeiros ou falsos, continuam a sofrer. Nesse meu último livro, Direitos Humanos, tem um capítulo que é intitulado “Violência policial, um câncer social”. É realmente um câncer social no Brasil. O que a polícia militar, sobretudo, mas também a civil, fazem em nosso país é algo que não acontece em países civilizados.

Ao menos no sentido de que as forças de segurança continuam a agir sistematicamente contra o estado de direito, pode-se afirmar que, nos dias de hoje, continua a haver uma polícia política. Para apenas um exemplo, vejam este atentado contra a liberdade de imprensa na repressão às manifestações contra o aumento da passagem de ônibus em São Paulo; ou os crimes impunes que motivaram a campanha das Mães de Maio: http://maesdemaio.blogspot.com.br/.
Por isso, é estranho o argumento, dado na entrevista de 2012, de que não se deve punir os agentes da repressão por crimes cometidos, como declarou, "há trinta anos". O historiador não menciona o fato de que há uma obrigação internacional do país em fazê-lo, reafirmada na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia. Embora sua opinião careça de fundamento jurídico (bem como o pífio argumento contra a indenização das vítimas da repressão: "sofreu, acabou"), creio que seu principal problema é político: a pretendida punição, além de reafirmar princípios que estão na base do chamado estado de direito, afetado em seus próprios fundamentos pelos crimes da repressão política, teria um efeito largamente benéfico, exatamente por causa da vinculação entre direito e esfera pública, sobre os crimes de hoje. Pois a tortura, os desaparecimentos forçados e até mesmo o genocídio continuam a existir.
E, ao contrário do que o historiador declarou na entrevista, de que a Argentina seria "diferente", aqui também a repressão matou "inocentes". Por sinal, quem era culpado? Todas as execuções feitas no Brasil foram ilegais. As poucas condenações à morte judicialmente determinadas foram revistas. Ninguém foi morto no Brasil com base na legalidade, mesmo suspeita, das leis de exceção. O que ocorreu, nas milhares de execuções (cujo total ainda desconhecemos), foi terrorismo de Estado, criminoso até mesmo diante da legislação da ditadura. E disso Gorender, em Combate nas trevas, estava perfeitamente consciente ao escrever que, após 1968, "O terrorismo de direita se oficializou. Tornou-se terrorismo de Estado, diretamente praticado pelas organizações militares institucionais." (p. 165).
Aproveitemos, pois, as lições de Combate nas trevas para a campanha para a justiça de transição, e o façamos contra os argumentos em prol da impunidade desposados por tantos, e até mesmo pelo velho historiador na entrevista do ano passado.

Lembro ainda que parte da pesquisa de O escravismo colonial foi feita na prisão; se dependesse da ANPUH de hoje, nem mesmo nessas condições ele poderia ter pesquisado, tendo em vista o projeto de reserva de mercado para historiadores com diplomas. Intelectuais como Gorender, que nunca terminou um curso superior, são um dos alvos que a ANPUH (que realizaria, assim, algo que a ditadura militar não chegou a fazer) deseja calar: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/memoria-como-reserva-de-mercado-v.html).
Devo lembrar que ele também foi um jornalista sem diploma, o que parecerá escandaloso para certos jornalistas e políticos "democráticos": http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/policia-do-pensamento-e-reserva-de.html...