A trajetória deste historiador marxista e não acadêmico cruzou-se dolorosamente como autoritarismo no Brasil, e teve que incluir a superação do stalinismo (http://blogdaboitempo.com.br/2011/10/21/jacob-gorender/). Ele também se dedicou aos temas da escravidão e do racismo no Brasil. Não li O escravismo colonial, que alguns apontam como sua obra mais importante.
Escrevo esta nota apenas, pois, para lembrar da sua importância para a questão do direito à memória e à verdade e da justiça de transição.
Recomendo revê-lo nesta entrevista ao Roda Viva em 2006: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/526/entrevistados/
Ele aponta a falsidade de importar as teorias dos dois demônios para o Brasil, a falácia, invocada pela direita menos informada ou menos honesta, da pretensa simetria dos "dois lados":
No meu livro Combate nas trevas, eu procurei ser fiel aos fatos, mostrar por que a esquerda foi derrotada, porque ela não conseguiu os resultados que esperava e alguns de seus líderes perderam a vida, como foi Marighella, Câmara Ferreira e vários outros. Procurei mostrar isso. E mostrar também os pecados, os crimes da própria esquerda. Mas eu só identifiquei, no caso de militantes da própria esquerda, quatro justiçamentos, não mais do que isso.E a própria resistência à ditadura não pode ser combatida: "Apaziguamento, conciliação, capitulação, pacifismo incondicional - estas são posições que ajudam a ditadura a se consolidar e a prolongar sua sobrevivência." (Combate nas trevas, 6a. ed., 2003, p. 290).
Veja como esse Gorender vai contra o argumento dado por ele mesmo, mais tardiamente, nesta entrevista dada a Folha de S.Paulo em 2012 (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1293767-em-entrevista-inedita-jacob-gorender-diz-ser-contra-punicao-a-torturador-e-lei-da-anistia.shtml), de que a CNV não deve ter como foco os crimes praticados pela repressão.
O primeiro documento aqui destacado, oriundo do II Exército, está guardado no Arquivo Público do Estado de São Paulo. As autoridades militares queriam saber da existência de um grupo de dissidentes do PCB com a presença de Gorender e de Marighella, grupo que teria "uma ligação em bases operacionais" com os guerrilheiros do Caparaó. No entanto, a capacidade para fracionamento da esquerda era maior do que o imaginado, pois se tanto Gorender quanto Marighella deixaram o PCB para lutar contra a ditadura militar, fizeram-no com caminhos diversos: Marighella, com a Aliança Libertadora Nacional (ALN), buscou a ação armada sem a intermediação de partidos e foi morto em 1969; Gorender ajudou a fundar o pequeno Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), e foi preso em 1970.
No documento Linha política, de abril de 1968 (incluído em Imagens da revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971, organizado por Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá), o PCBR mostrava-se consciente desse estado de coisas "as forças de esquerda revolucionária, no Brasil, estão hoje dispersas em várias organizações"; no entanto, apostava que diversos "elementos e grupos [...] evoluem para o marxismo-leninismo", e que seria "possível atingir a unidade ideológica, política e orgânica, nas fileiras do partido". Isso não ocorreu.
Os órgãos de segurança, porém, temiam que isso ocorresse, como mostra este Boletim do SNI, de 30 de julho de 1968, que traz notícia de declaração da Ação Popular alinhando-se às posições do PCBR.
Outros documentos, do próprio PCBR, mostram profundas divisões no seio da esquerda, como diferenças entre esse partido e o PC do B, acusado de repetir os erros do PCB.
Em Combate nas trevas, Gorender, mostra-se sensível à relação entre direito e esfera pública. No capítulo "A guerrilha abafada", afirma que o governo Médici decidiu que a "a guerrilha do Araguaia não devia produzir efeitos judiciais, precisamente a fim de evitar repercussões públicas" (p. 239).
De fato, judicializar um conflito (se isso não é feito para realizar a censura judicial) pode significar trazê-lo ao conhecimento e à discussão públicos. No caso, do Brasil, a judicialização do combate a oposicionistas significou, em geral, uma chance de sobrevivência: era o sinal de que aquela prisão havia ocorrido, de que aquela pessoa estava nas mãos das autoridades. Houve quem fosse assassinado mesmo assim; no entanto, já se pode afirmar que onde a repressão foi realizada sem judicialização, como foram os casos da Guerrilha do Araguaia, das mortes de camponeses e do genocídio indígena, a quantidade de vítimas foi muito maior. Essa foi uma das razões da importância do direito e dos advogados de presos políticos no combate à ditadura.
Esse livro de Gorender também mostra a continuidade institucional da tortura a presos políticos e a presos comuns. No capítulo "Vivências do DEOPS e do Presídio Tiradentes", lembra que as prisões dos presos comuns eram, como a dos presos políticos, em grande maioria ilegais, havia quem fosse preso porque era negro, porque não estava bem vestido, porque não tinha dinheiro para satisfazer às extorsões policiais... E, no presídio Tiradentes, essas pessoas eram torturadas. Gorender conta (p. 253) como os presos políticos protestaram contra o que era feito contra esses outros, e que ele mesmo discursou diante de familiares, delegados do DOPS e do diretor da instituição penitenciária, o que logrou bom resultado.
Na mencionada entrevista ao Roda Viva, ele chega a falar de "câncer social":
Bom, tortura continua a existir hoje. Relatos de tortura não são, infelizmente, coisas do passado. É claro que militantes políticos não são mais torturados. Mas os acusados de crimes comuns, acusados verdadeiros ou falsos, continuam a sofrer. Nesse meu último livro, Direitos Humanos, tem um capítulo que é intitulado “Violência policial, um câncer social”. É realmente um câncer social no Brasil. O que a polícia militar, sobretudo, mas também a civil, fazem em nosso país é algo que não acontece em países civilizados.
Ao menos no sentido de que as forças de segurança continuam a agir sistematicamente contra o estado de direito, pode-se afirmar que, nos dias de hoje, continua a haver uma polícia política. Para apenas um exemplo, vejam este atentado contra a liberdade de imprensa na repressão às manifestações contra o aumento da passagem de ônibus em São Paulo; ou os crimes impunes que motivaram a campanha das Mães de Maio: http://maesdemaio.blogspot.com.br/.
Por isso, é estranho o argumento, dado na entrevista de 2012, de que não se deve punir os agentes da repressão por crimes cometidos, como declarou, "há trinta anos". O historiador não menciona o fato de que há uma obrigação internacional do país em fazê-lo, reafirmada na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia. Embora sua opinião careça de fundamento jurídico (bem como o pífio argumento contra a indenização das vítimas da repressão: "sofreu, acabou"), creio que seu principal problema é político: a pretendida punição, além de reafirmar princípios que estão na base do chamado estado de direito, afetado em seus próprios fundamentos pelos crimes da repressão política, teria um efeito largamente benéfico, exatamente por causa da vinculação entre direito e esfera pública, sobre os crimes de hoje. Pois a tortura, os desaparecimentos forçados e até mesmo o genocídio continuam a existir.
E, ao contrário do que o historiador declarou na entrevista, de que a Argentina seria "diferente", aqui também a repressão matou "inocentes". Por sinal, quem era culpado? Todas as execuções feitas no Brasil foram ilegais. As poucas condenações à morte judicialmente determinadas foram revistas. Ninguém foi morto no Brasil com base na legalidade, mesmo suspeita, das leis de exceção. O que ocorreu, nas milhares de execuções (cujo total ainda desconhecemos), foi terrorismo de Estado, criminoso até mesmo diante da legislação da ditadura. E disso Gorender, em Combate nas trevas, estava perfeitamente consciente ao escrever que, após 1968, "O terrorismo de direita se oficializou. Tornou-se terrorismo de Estado, diretamente praticado pelas organizações militares institucionais." (p. 165).
Aproveitemos, pois, as lições de Combate nas trevas para a campanha para a justiça de transição, e o façamos contra os argumentos em prol da impunidade desposados por tantos, e até mesmo pelo velho historiador na entrevista do ano passado.
Lembro ainda que parte da pesquisa de O escravismo colonial foi feita na prisão; se dependesse da ANPUH de hoje, nem mesmo nessas condições ele poderia ter pesquisado, tendo em vista o projeto de reserva de mercado para historiadores com diplomas. Intelectuais como Gorender, que nunca terminou um curso superior, são um dos alvos que a ANPUH (que realizaria, assim, algo que a ditadura militar não chegou a fazer) deseja calar: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/memoria-como-reserva-de-mercado-v.html).
Devo lembrar que ele também foi um jornalista sem diploma, o que parecerá escandaloso para certos jornalistas e políticos "democráticos": http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/policia-do-pensamento-e-reserva-de.html...
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