O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

30 dias de canções: O céu, o mar, a umbanda

30 dias de canções
Dia 3: Uma canção que faz lembrar a natureza

Um ponto de Ogum, "Se o céu é lindo", de autor anônimo. 
Nunca ouvi este ponto em terreiro (um lugar que poucas vezes estive), e sim em casa. Aprendi-o com esta letra: "Se o céu é lindo/ O mar também é/ Aonde vais cachoeira/ Vou derramar/ Toda esta mironga/ Nas ondas do mar." A mironga (palavra que vem do quibundo, um dos idiomas bantos), no caso, é o feitiço.
Como se trata de música da tradição oral, há mais de uma versão. Encontrei outra letra neste outro blogue, que menciona explicitamente o Beira Mar e a Rainha do Mar (Iemanjá, evidentemente): http://reidospontos.blogspot.com.br/p/pontos-de-ogum.html
Ogum, o orixá guerreiro, ligado ao ferro e às ferramentas, comanda, na tradição da umbanda, a chamada Linha de Ogum, que é, segundo o livro Cantigas de umbanda e candomblé (Pallas Editora: São Paulo, 2008), "constituída por espíritos guerreiros que defendem os filhos-de-fé contra lutas e demandas".
Uma das sete legiões em que se organizam esses espíritos, segundo a mesma obra, é a "Legião do Povo do Mar, chefiada por Ogum Beira-Mar e relacionada à linha de Iemanjá". Este ponto está ligado a Ogum Beira-Mar.
A umbanda, que completará 110 anos em 2018, além de se reivindicar "mestiça como o povo brasileiro", combinando elementos de religiões africanas, ameríndias e do cristianismo, herdou das duas primeiras tradições uma profunda ligação com a natureza. 
Em muitos dos pontos de umbanda, não se trata, na verdade, apenas de mera lembrança da natureza, mas de afirmação de pertencimento.
Lembro Roberto Piva e o contraponto que ele fazia entre as religiões do deserto, que era como chamava o judaísmo e as que dele vieram (as tradições cristãs e islâmicas), e as religiões da floresta. Como poeta-xamã, ele preferia as da floresta e combatia as moralidades do deserto.
O volume Roberto Piva da Coleção Postal das editoras Azougue Editorial e Cozinha Experimental, publicado em 2016, inclui um poema, "Meditações de emergência 1", em que alerta, bem de acordo com aquela dicotomia, contra o deserto: "África prepara o batuque das auroras/ África prepara as zagaias da poesia/ as ruas asfaltadas do fim do mundo/ os escorpiões aninhando-se na palma da mão/ como nuvens/ você que vai me amar neste ano de 1979/ cuidado com os inventores do deserto".
Li, por causa, desta nota, um artigo de Diamantino Fernandes Trindade, "O uso indevido dos pontos cantados de umbanda" (no livro organizado por ele e Ronaldo Antonio Linares, Memórias da Umbanda do Brasil, editado pela Ícone em 2011; a maior parte desse capítulo está nesta ligação). As gravações para divulgação da umbanda são elogiadas; nessa categoria, o autor destaca Martinho da Vila, Noriel Vilela e Ronnie Von. Ele critica os que usaram melodias dos pontos para compor canções com outros fins, como Lamartine Babo teria feito.
Para ouvir o ponto, portanto, pode-se, espero que devidamente, clicar nesta ligação.

Dia 1: Um retrato à beira da razão, de Tom e Chico
Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza



segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

De interino a provisório? Michel Temer no Postas de Pescada

O jornal português Postas de Pescada, editado por Ana Biscaia e Emanuel Carneira em Coimbra, pediu-me um pequeno artigo sobre a situação política no Brasil. Resolvi escrever sobre a eventual (no artigo, futura) queda de Michel Temer.
Foi publicado à página 10 do número 10 do jornal, de dezembro de 2016. Como sempre, basta clicar sobre a imagem para ampliá-la, ou abri-la em outra janela.




De interino a provisório? Michel Temer na presidência do Brasil



No Brasil, após o impeachment de Dilma Rousseff, reeleita em 2014 pelo Partido dos Trabalhadores (PT), seu vice, Michel Temer, do Partido Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), assumiu a presidência. Tão ínfimo como poeta quanto estadista, está em posição frágil: os mesmos parlamentares que o entronizaram podem derrubá-lo, seja com as mesmas alegações de irregularidades orçamentárias que derrubaram a presidenta, seja com os escândalos do novo governo, cujo ministério foi majoritariamente escolhido entre suspeitos, investigados e réus. Ele pode ser cassado também pelo Tribunal Superior Eleitoral, se for julgada a ação de irregularidades das contas eleitorais de 2014.
As evidentes ilegitimidade e incapacidade de Temer fazem que evite aparecer em público, apesar da proteção que ainda vem recebendo de grandes meios de comunicação.
Nas duas arenas, a do sistema político e a das ruas, ele está acuado. Dilma Rousseff caiu após perder ambas, mesmo tendo se inclinado para a direita. As concessões ao latifúndio e a outros grupos conservadores eram defendidas pelo PT como condições de “governabilidade”, tão eficiente que fez o partido perder o governo.
Outro fator que torna improvável a permanência de Temer é a previsão constitucional de eleições indiretas se ele cair durante os dois últimos anos do mandato. Elas poderiam levar ao poder um nome do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), derrotado em 2014, que hoje participa do governo.
A derrubada não viria de divergência ideológica, mas da disputa pelo saque do que é público ou comum. Temer adotou a agenda da plutocracia, com desmanche dos direitos sociais, acelerando o que o PT já estava a fazer. O Congresso segue pauta idêntica, com projetos para congelar por vinte anos investimentos sociais, cortar direitos trabalhistas, espoliar terras indígenas e de comunidades quilombolas, e anistiar crimes econômicos e eleitorais, em reação das elites às investigações da Operação Lava-Jato.
Essa Operação levou à prisão de grandes empresários que há anos corrompiam e financiavam a elite política. Inicialmente atingiu o PT, chegando a ponto da divulgação na tevê de telefonema entre Rousseff a Lula, gravado ilicitamente, em momento de espetacularização da Justiça. Agora, ela ameaça outros partidos.
A realização de eleição indireta para a presidência, a primeira desde a ditadura militar, dispensaria a atuação das Forças Armadas? Em algum momento elas seriam necessárias para a repressão: embora certos grupos (como o “Movimento Brasil Livre”, MBL) que organizaram as manifestações contra Rousseff sejam financiados pelos partidos que estão no poder, é certo que as ruas reagiriam a esta nova cassação do povo brasileiro.

30 dias de canções: Números do trabalho, não da riqueza

30 dias de canções
Dia 2: Uma canção com número no título

"Três apitos", de Noel Rosa. Outro dos sambas de Noel que só foi gravado depois da morte do autor ("Pela décima vez", que eu quase escolhi para esta nota, é outro exemplo). Escrito em 1933, Aracy de Almeida lançou-o em 1951, numa das gravações que levaram à redescoberta do genial compositor, que morreu com apenas 26 anos.
Ouçam o uso do portamento pela cantora já no primeiro agudo, no começo da música: "Quando o apiiito". A cantora não ataca diretamente a nota, ela desliza levemente para chegar na altura desejada. Ainda hoje, os sambistas gostam de temperar seu canto com o portamento em vez de usar um estilo mais objetivo, de atacar direto a nota.

Na importante caixa "Noel pela primeira vez" (que apresenta 229 versões originais das canções de noel, inclusive com o próprio autor), organizada por Omar Jubran, além da gravação de Aracy, temos a de Orlando Silva. Ela é do mesmo ano da composição, mas não havia sido lançada em disco. O cantor corta parte da letra e também canta com portamentos.
Ela, mais velha, e com outra voz, conservava o estilo, e nele Noel certamente se reconheceria.
Tom Jobim, que conhecia muito bem a tradição do samba, mas vinha de outra formação musical, cantou "Três apitos" de forma muito diferente; ouçam-no e comparem o começo da música com ele e com Aracy. Ele ataca diretamente as notas, o que o faz soar mais moderno.A música é muito bonita e já encontrou intérpretes tão diferentes quanto Elizeth Cardoso, Ney Matogrosso, Zé Renato e Zélia Duncan. Uma de suas originalidades está na letra, na forma como a canção de amor com elementos da canção de trabalho. O título logo remete para o mundo do trabalho: trata-se do aviso para as operárias da indústria têxtil. "Você que atende ao apito/ De uma chaminé de barro/ Por que não atende ao grito/ Tão aflito da buzina do meu carro?".
O ciume também está relacionado ao mundo do trabalho: o suposto rival é o "gerente impertinente"; ele quer virar "guarda noturno", "E você sabe por quê". Com esses tipos da cidade, "Três apitos" possui também o caráter de crônica urbana, tão presente na música de Noel Rosa. 
Na canção, o eu lírico sempre se dirige à amada, o que lhe permite um gesto metalinguístico divertido, referindo-se à própria canção que estamos ouvindo como se estivesse sendo feita enquanto é interpretada: "Mas você não sabe/ que enquanto você faz pano/ Faço junto do piano/ Estes versos pra você".Fazer pano, fazer música: temos aí o sambista, homem da noite, que se apresenta tão deslocado dos ideais burgueses ("Sou do sereno/ Poeta muito soturno") quanto a amada proletária. Com isso, lembramos do Noel de canções como "Filosofia", com a contraposição entre o sambista (realmente, uma figura ainda bem marginal nessa época, mesmo considerando o casamento que Noel fez) e o que chama de "aristocracia". Os números do título são os do chamado ao trabalho, e não os da riqueza.
Dia 1: Um retrato à beira da razão, de Tom e Chico

sábado, 28 de janeiro de 2017

30 dias de canções: Um retrato à beira da razão, de Tom e Chico

30 dias de canções
Dia 1: Uma canção com uma cor no título

Até mais de uma cor: duas. "Retrato em branco e preto", de Tom Jobim e Chico Buarque. Ou nenhuma, de certa forma: se o retrato é em branco e preto, não é colorido.
Antes de a parceria com Chico Buarque existir, Tom Jobim havia composto e gravado um tema instrumental a que deu o título "Zingaro"; está no disco "A certain Mr. Jobim", de 1967. O arranjo é de Claus Ogerman.
Jobim, em 1968, acabou oferecendo o tema para o jovem Chico Buarque letrá-lo, no que se tornou a primeira canção da parceria, uma das mais notáveis da música brasileira. Ademais, trata-se de uma das melhores canções da dupla. 
Helena Jobim, no livro sobre seu irmão, Antonio Carlos Jobim: Um Homem Iluminado, escreveu que Jobim telefonou para Chico Buarque ir a sua casa e tocou-lhe diversas vezes "Zingaro"; a música foi gravada em fita para Chico Buarque criar os versos sozinho, o que fez em "poucos dias". Ele a gravou naquele mesmo ano, em arranjo do maestro Gaya.
Vejam a partitura, em arranjo de Paulo Jobim, no portal do Instituto Antonio Carlos Jobim.
Com a entrada de Chico Buarque, o título e o clima da música mudaram completamente: a nova música agora trata de um amor que não deu certo, mas a que se está aprisionado. Esse amor "que eu nego tanto" e que "volta a sempre a enfeitiçar/ Com seus mesmos tristes velhos fatos,/ que num álbum de retratos, eu teimo em colecionar". 
O desacerto psíquico é dado pela sintaxe; a certa altura, um vocativo interrompe uma enumeração que descreve o seu estado : "Novos dias tristes, noites claras/ Versos, cartas, minha cara,/ Ainda volto a lhe escrever". O que exatamente ocorreu? Um dos elementos geniais da letra é jamais contar o que foram os "tristes velhos fatos", não precisar fazê-lo: "Eu trago o peito tão marcado/ De lembranças do passado/ E você sabe a razão". Trata-se quase do funcionamento dos mecanismos do trauma.
O intérprete desta canção deve ficar muito atento: as frases musicais sobem e descem de forma quase tão sutil quanto "O último desejo" de Noel Rosa.
O título aparece apenas no penúltimo verso. Por que em branco e preto, se todos falam "em preto e branco"? Isso teria incomodado Tom Jobim, segundo li no texto de José Ruy Gandra para a reedição do disco Chico Buarque de Hollanda - Volume 3, em que o compositor a gravou. Chico Buarque teria respondido com isto: "Vou colecionar mais um tamanco/ Outro retrato em preto e branco".
É certo que retrato em "branco e preto" apresenta uma singularidade que o cotidiano "em preto e branco" não tem, chamando a atenção para o título e sugerindo, creio, a desolação. Cotidiano, de fato: a foto em branco e preto, nos anos 1960 no Brasil, era muito mais comum que a foto colorida.
A história, no entanto, chama a atenção para outra questão: o foco da letra talvez fosse a palavra soneto e, por isso, o compositor não quisesse dispensar a palavra da rima - preto - que teria que ficar no final.
A imagem da coleção de sonetos também é invulgar. A letra não adota essa forma poética. Se o soneto era tão necessário a Chico Buarque, talvez fosse por influência ou alusão a outro parceiro de Tom Jobim, mais velho e mais célebre, e com cuja sombra o jovem compositor teria que se defrontar: o poeta e conhecido sonetista Vinicius de Moraes (por sinal, Tom Jobim já havia musicado o "Soneto da separação").
Como os compositores interpretaram a canção? Chico Buarque gravou a música com um canto macio, sem tensões. No histórico disco de 1974, Elis e Tom, a abertura dramática do arranjo de César Camargo Mariano, com cordas e o piano de Jobim, faz o canto de Elis Regina parecer ainda mais desconcertante: a dinâmica vocal nunca vai para o forte (o que é surpreendente tratando-se desta cantora, mas não neste disco), a maior parte do tempo a voz é mantida em baixo volume. No entanto, a emissão marcada de certas notas impede qualquer sensação de serenidade, ao contrário do que ocorre com Chico Buarque. Essas duas particularidades da interpretação de Elis Regina deixam a impressão de uma dor muito interiorizada, um lamento que não pode ser dito em voz alta. Quando ela se cala e o piano e as cordas fecham a música, o drama volta ser explícito e o clima lembra o de Chausson na "Chanson perpétuelle". Por sinal, Tom Jobim, pelo que li, ouvia muito a música francesa dessa época.
Evidentemente, os intérpretes não precisam, neste estilo, se prender à intenção dos compositores. Uma interpretação completamente diferente dessas duas é a de Ney Matogrosso e Raphael Rabello em "À flor da pele", disco de 1990. Eu vi ambos ao vivo interpretando essa canção exatamente como o fizeram no disco: contrastes de dinâmica (tanto no violão quanto na voz), notas em marcato, num discurso exacerbado (que, é claro, chocará os que preferem a interpretação suave, com os graves falados e os agudos omitidos ou enrouquecidos, de João Gilberto) que leva, no 24o. compasso da partitura segundo Paulo Jobim, a um salto para o agudo em uma frase que deveria descer, culminando em um belo agudo em falsete na palavra "razão". 
Razão; justamente o que a canção não diz (isto é, o motivo do fracasso daquele amor), e que o eu lírico, ali, parece estar à beira de perder.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

30 dias de canções: um desafio em tempos de fim da canção?

Vi diversas pessoas escrevendo a partir de um "Desafio 30 dias de música". Fui conferir do que se tratava e percebi que o título era muito enganoso, extremamente redutor: apesar da referência genérica a "música", ele só envolve uma forma musical, a canção.
Como essa forma é a mais comercialmente rentável, esse reducionismo, pensei, também seria nefasto em termos estéticos e de política cultural, pois significaria colocar na sombra outras manifestações musicais. Não cogitei participar, em um primeiro momento. Ademais, provavelmente a melhor parte do que se compõe no Brasil hoje está nos diversos gêneros da música instrumental.
No entanto, como a canção anda meio por baixo, e Chico Buarque, autor de tantos célebres exemplos, chegou até a falar no esgotamento dessa forma, e também porque eu gosto de listas (participei há poucos anos de algo parecido, "30 livros em um mês", que era muito mais bem pensado, pois envolvia vários gêneros), resolvi participar para também... espairecer. Música sempre pode consolar quando tudo está pesado. E inspirar, quem sabe, novos movimentos.
Chico Buarque, naquela famosa entrevista publicada pela Folha de S.Paulo em 26 de dezembro de 2004, "A canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico", viu no surgimento do rap, que ele achava "muito interessante", o sinal de que o tempo da canção tinha passado:
E há quem sustente isso: como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido.
Noel Rosa formatou essa música nos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem a bossa nova, que remodela tudo -e pronto. Se você reparar, a própria bossa nova, o quanto é popular ainda hoje, travestida, disfarçada, transformada em drum'n'bass.
Essa tendência de compilar e reciclar os antigos compositores de certa forma abafa o pessoal novo. Se as pessoas não querem ouvir as músicas novas dos velhos compositores, por que vão querer ouvir as músicas novas dos novos compositores? Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. 
É interessante ver um artista constatando sua própria obsolescência. Alguns reagiram a isso calando-se, como Rossini, que preferiu aposentar-se da ópera em pleno auge, com Guilherme Tell - ele sabia que o Romantismo vinha, e que até mesmo os estilos vocais se alterariam.
Outros, como o próprio Chico Buarque, simplesmente dedicam-se a tentar aprimorar a forma ou o estilo em que se formaram. Acho válido esse caminho, e interessante pelo que também pode representar como resistência. Vejam que continuam surgindo novos compositores, apesar de ser cada vez mais difícil ser ouvido.
A não ser que... você siga a moda. E nada é mais questão de moda do que a indústria da música. comprova-o o fato de o tempo do rap, como ritmo da moda, também já ter passado, provavelmente muito mais rápido do que Chico Buarque poderia ter imaginado em 2004. Este texto de Marco Antonio Barbosa (descobri-o porque Idelber Avelar chamou atenção para ele), "Como fazer sucesso nas rádios brasileiras", faz uma breve análise das músicas que mais tocaram nas rádios brasileiras em 2016, e noventa por cento eram canções pop sertanejas: "Hip hop, rock, EDM, tecnobrega, axé e MPB nem aparecem na lista."
A canção continua sendo lucrativa, não obstante a crise da indústria musical. Em texto posterior, "Ainda sobre o sertanejo e as músicas mais tocadas de 2016", Marco Antonio Barbosa trata de problemas que podem levar ao refluxo dessa moda no futuro: o gênero "apresenta certos problemas estéticos/líricos que se traduzem na rejeição de grande parte do público que consome música “séria” (e que já abandonou as rádios FMs há tempos). Por investir em uma imagem e uma poética tão estritas (a vestimenta country, o vocal característico, as letras monotemáticas), o sertanejo acaba limitando seu poder de expansão".
Ainda mais importante a destacar do que essa questão da uniformidade musical, parece-me, é a dominação dos meios de comunicação, sem a qual aquela uniformidade não poderia se impor orelhas abaixo ao público. Os meios de comunicação estruturam-se segundo a lógica do latifúndio (cujo nome foi "higienizado" para agronegócio nesses grandes meios, com ele coniventes), e que determina a monocultura musical: dos dez primeiros da lista, nove pertencem à Som Libre, isto é, à Globo.
É muito previsível que toquem muito nas rádios e na televisão: a lógica do oligopólio preside a indústria cultural, com todos os prejuízos estéticos e democráticos decorrentes dessa monocultura politicamente conformista e musicalmente previsível.
Li compositores mais antigos reclamando do atual estado de coisas, mesmo os de maior sucesso popular. Rita Lee, na interessante autobiografia que lançou ano passado (infelizmente mal editada pela Editora Globo), escreveu que, se fosse da nova geração, teria muita dificuldade em surgir nos dias de hoje, já que o "dinheiro" domina os meios de divulgação.
Deve-se pensar, portanto, o quanto uma possível crise da canção, ou até mesmo da música brasileira, está ligada à estrutura antidemocrática dos meios de comunicação no país, o que é um problema que estamos longe de resolver.

O desafio de 30 dias de canções, portanto, não deixa de ser interessante em termos musicais e políticos.
Parece-me evidente que a escolha da canção para cada dia tem menos interesse do que a motivação para a escolha; por sinal, a mesma música pode ser indicada por razões contraditórias. Vi pessoas que apenas indicavam o nome da música (alguns, sem mencionar o compositor, procedimento lamentavelmente desrespeitoso), fugindo de realmente responder ao desafio. Eu darei minhas modestas razões de mero ouvinte, que talvez interessem, apesar de tudo, por serem o retrato das impressões de um leigo.
Ao lado, vejam a lista original. Resolvi adaptá-la, sem mudar muita coisa (eu criaria outras categorias, mas isso seria estabelecer outro desafio), aos meus interesses em música.
O desafio dos livros, comecei-o em sete de setembro e só terminei em vinte de outubro... Imagino que não conseguirei escrever todos os dias também desta vez; ainda nem mesmo tenho ideia do que escolherei para pelo menos metade das categorias.
Tentarei não repetir compositores, pois há tantos e os meus favoritos não cabem em trinta dias.

Dia 1: Uma canção com uma cor no título
Dia 2: Uma canção com número no título
Dia 3: Uma canção que faz lembrar a natureza
Dia 4: Uma canção da memória reprimida
Dia 5: Uma canção que precisa ser tocada baixo
Dia 6: Uma canção que faz você querer dançar
Dia 7: Uma canção de luta
Dia 8: Uma canção sobre drogas, legais ou não
Dia 9: Uma canção sobre a felicidade
Dia 10: Uma canção sobre a tristeza
Dia 11: Uma canção de que você não se cansa
Dia 12: Uma canção da infância
Dia 13: Uma de suas canções favoritas dos anos 70
Dia 14: Uma canção que você gostaria de ter tocado (ou tocar) em seu casamento
Dia 15: Uma canção que evoca outras artes
Dia 16: Uma canção clássica para você
Dia 17: Uma canção em dueto
Dia 18: Uma canção na qual você gostaria de ter nascido
Dia 19: Uma canção que quer ser a própria vida
Dia 20: Uma canção que destrói o sentido
Dia 21: Uma canção favorita com um nome próprio no título
Dia 22: Uma canção e uma revolução
Dia 23: Uma canção que você acha que todos deveriam ouvir
Dia 24: Uma canção cujos compositores ainda deveriam trabalhar juntos
Dia 25: Uma canção cujo intérprete pode ser considerado coautor
Dia 26: Uma canção que cancela as paixões
Dia 27: Uma canção que cancela as canções
Dia 28: Uma canção de um artista cuja voz você ama
Dia 29: Uma canção improvavelmente composta
Dia 30: Uma canção que faz lembrar o mundo

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Nigel Rodley (1941-2017), o Direito Internacional e a tortura no Brasil

Morreu Nigel Rodley (1/12/1941-25/01/2017). O célebre professor universitário, jurista, ativista dos direitos humanos, que trabalhou para a Anistia Internacional (onde estabeleceu o departamento de direitos humanos), para a ONU, era o presidente da Comissão Internacional de Juristas desde 2003...
Vejam este currículo, a notícia dada pela Universidade de Essex, onde lecionou e fundou o Centro de Direitos Humanos, e o obituário elaborado pela Comissão Internacional de Juristas.  Ele foi membro do Comitê de Direitos Humanos da ONU de 2001 a 2016.
Vocês poderão averiguar a qualidade dos jornais que leem pela forma como noticiarão (ou não) neste dia 26 a morte do jurista.
Para os propósitos desta nota, gostaria apenas de lembrar sua independência. Vejam o que ele escreveu sobre a ilícita invasão do Iraque liderada por EUA e Reino Unido em 2002:
I suggest that a simple thought experiment would be sufficient to expose the flimsiness of the case. Imagine that France and Russia, possibly suspecting that intervention might result in greater access to Iraqi oil, and anyway concerned that an unstable Iraq could affect their security, had decided to use force, while the USA, the UK and their allies were trying to keep the diplomatic and inspections routes open. Would authoritative legal opinion in the USA and the UK (especially that of the politically appointed lawyerdom seen to have been in the driving seat) have found the argument, now used against their interests, to have any merit?
O artigo, "The future for International Law after Iraq" é curiosamente otimista em relação ao Direito Internacional. Em relação ao argumento, eu faria a objeção de que o fracasso das políticas implementadas na Ásia a partir da criminosa invasão, como "reconstruir o Afeganistão", derrotar facções islâmicas radicais etc., esse fracasso, tão previsível e esperado, não é sentido, de forma alguma, como um motivo para os governos dos Estados concernentes abandonar a criminosa política exterior belicista e hostil aos direitos humanos, tanto que a mantiveram, mesmo com as mudanças políticas internas. Duas razões me levam a pensar dessa maneira: a) esse fracasso alimenta os pretextos para intervenção em outros Estados (mais guerras, mais atentados) - o malogro, mais do que esperado, é desejado; b) os objetivos apregoados não são os que realmente fundamentam essa política exterior, que responde a uma agenda imperialista com apoiadores poderosos tanto no âmbito interno dessas grandes potências quanto no internacional.
No tocante ao Brasil, Rodley deve ser especialmente lembrado por sua atuação como Relator Especial contra a Tortura. Na minha tese, em que abordei a questão da produção legal da ilegalidade no campo do direito internacional dos direitos humanos, citei bastante o relatório de sua visita ao país em 2000.
Ele visitou apenas o Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Pará. Ele visitou diversas prisões, cujas condições, como se sabe, ensejaram a proliferação de facções criminosas que reivindicam para si as bandeiras da lei e da ordem (facções como "Paz, Liberdade e Direito"), o que é muito menos absurdo do que parece para o público desavisado que só lembra da questão quando ocorrem rebeliões em presídios, tendo em vista a sistemática violação da Lei de Execuções Penais pelo Estado brasileiro, além da corrupção dos agentes públicos.
A história do Brasil bem mostra que, quando o Estado é criminoso (meus amigos anarquistas dirão que ele é sempre assim), os grupos criminosos fora do Estado facilmente assumem funções típicas dele.
O relatório desta visita de Nigel Rodley ao Brasil (E/CN.4/2001/66/Add.2) é interessantíssimo e contém breves relatos de centenas de casos de tortura com outros crimes, como homicídio e corrupção.
Além de constatar que a herança criminosa da ditadura militar continuava forte no Brasil, um regime baseado em tortura, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados, ela estava presente no Judiciário:
161. Brazilian legislation has many positive aspects. The 1997 Torture Law has characterized torture as a serious crime, albeit in terms which limit the notion of mental torture by comparison with the definition contained in article 1 of the Convention against Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment of 1984. After 24 hours’ detention in a police station, that is, once a judicial warrant for temporary or provisional detention has been issued, a person should be transferred to a provisional (pre-trial) or remand detention facility. Free legal assistance should be available to those who do not have their own. Testimony obtained by torture should be inadmissible against the victims. A forensic medical service should be able to detect many cases of torture. Various categories of persons should be separated from each other (e.g. pre-trial detainees from convicted prisoners). Conditions of detention and treatment of detainees should be humane and, for juveniles at least, an educational experience. The problem is that they are widely ignored, an often complaisant judiciary upholding states’ departure from the requirements on various grounds, be they unavailability of resources to implement the obligations or by placing unsustainable burdens on complainants to prove their complaints. The Torture Law is virtually ignored, prosecutors and judges preferring to use the traditional, inadequate, notions of abuse of authority and causing bodily harm. The forensic medical service, under the authority of the police, does not have the independence to inspire confidence in its findings.
162. Free legal assistance, especially at the stage of initial deprivation of liberty, is illusory for most of the 85 per cent of those in that condition who need it. This is because of the limited number of public defenders. Moreover, in many states public defenders (São Paulo is a notable exception) are paid so poorly in comparison with prosecutors that their level of motivation, commitment and influence are severely wanting, as are their training and experience. Thus vulnerable, the suspects are at the mercy of police, prosecutors and judges many of whom are only too glad to allow charges to be brought and sustained under legislation allowing little scope for removal from custody for long periods of often petty criminals, numbers of whom have been coerced into confessing to having committed more serious crimes than they may have actually committed, if they have committed any at all. 
Ele elogiou a lei brasileira que tipifica a tortura, que havia finalmente sido aprovada, mas notou que o Ministério Público e os magistrados preferiam ignorá-la em favor "noções inadequadas, tradicionais, de abuso de autoridade e lesão corporal". Ademais, os serviços de medicina legal, sob a autoridade da polícia, não tinham (não têm) independência para agir, e as Defensorias Públicas, apesar de alguns avanços, continuam sem a estrutura necessária para realizar seu trabalho.
Esse era o papel, segundo a ONU, desses funcionários públicos na institucionalização das políticas públicas criminosas de segurança do Estado: servir de garante para a tortura efetuada pelos agentes de segurança. A tortura para sistematizar-se, necessita da negação ou da restrição de outros direitos fundamentais além da integridade física, como o da ampla defesa. Na época da ditadura militar, tratou-se de um sistema; cito a introdução do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva":
Os órgãos de informação e o aparato de repressão formaram um verdadeiro sistema que impede uma análise isolada dos crimes da ditadura militar.
Pode-se verificar essa característica aos menos em dois aspectos: a) Interligação entre diferentes condutas criminosas: por exemplo, a violação, para os presos políticos, do direito à ampla defesa e do acesso ao advogado, na recusa ilegal de atendimento jurídico nos períodos de incomunicabilidade (por sinal, a própria prisão dava-se, em regra, na ilegalidade) era instrumental para a realização das torturas, das execuções e dos desaparecimentos forçados. Por vezes, tratou-se tecnicamente de crimes conexos aos de lesa-humanidade (e não conexos aos crimes políticos, que são os dos opositores à ditadura).
Essa interligação foi percebida em plena ditadura militar, como o demonstrou a longa denúncia escrita pelos presos políticos no Presídio de Barro Branco em 1975, endereçada ao Presidente do Conselho Federal da OAB, chamada de “Bagulhão”, que a CEV “Rubens Paiva” publicou e lançou em audiência pública. O documento, elaborado clandestinamente dez anos antes do Brasil: Nunca mais, nunca foi desmentido pelo governo e demonstrou como as diferentes ilegalidades, crimes e atos repressivos da ditadura militar (violação do direito de defesa, censura, desrespeito às prerrogativas da advocacia) serviam para o funcionamento do sistema de tortura, assassinato e desaparecimento de que dependia o regime.  
No Brasil democrático, Rodley havia constatado um uso sistemático e disseminado da tortura contra os pobres e os negros. Cito o mesmo relatório:
166. Relatively few allegations arose in respect of the federal level or the Federal District. Torture and similar ill-treatment are meted out on a widespread and systematic basis in most of the parts of the country visited by the Special Rapporteur and, as far as indirect testimonies presented to the Special Rapporteur from reliable sources suggest, in most other parts of the country. It is found at all phases of detention: arrest, preliminary detention, other provisional detention, and in penitentiaries and institutions for juvenile offenders. It does not happen to all or everywhere; mainly it happens to poor, black common criminals involved in petty crimes or small-scale drug distribution. And it happens in the police stations and custodial institutions through which these types of offender pass. The purposes range from obtaining of information
and confessions to the lubrication of systems of financial extortion. T
he parts of the country visited by the Special Rapporteur and, as far as indirect testimonies presented to the Special Rapporteur from reliable sources suggest, in most other parts of the country. 
Nigel Rodley havia percebido no Brasil uma certa continuidade em relação à ditadura. Os torturadores do passado não foram punidos, tampouco os de hoje - lembrem-se do julgamento da ADPF da lei de anistia pelo Supremo Tribunal Federal em 2010, que indica uma persistente cultura jurídica infensa aos direitos humanos, propícia para a produção legal da ilegalidade nesse campo.
Essa cultura jurídica talvez explique, por exemplo, que em 2017, o Ministério Público de São Paulo queira criminalizar a posse de material de primeiros socorros que serviria para atender a vítimas de violência policial.
Como se sabe, boa parte da imprensa apoia a tortura (e estimula a opinião pública a defender a barbárie) e, defendendo esse crime, criticou o relatório da Comissão Nacional da Verdade. O relatório recomendou, entre outras medidas, a desmilitarização da polícia e a independência dos institutos médico-legais. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" também fez recomendações semelhantes.
Após a visita de Nigel Rodley e reformulações dos órgãos de direitos humanos da ONU, o Subcomitê da ONU de Prevenção à Tortura (SPT) esteve no Brasil em 2011 (pois o Estado havia ratificado em 2007 o Protocolo Facultativo da Convenção da ONU contra a Tortura, permitindo esse tipo de fiscalização internacional). O relatório de 2012 sobre essa visita apresentou dados preocupantes:
52. Impunity for acts of torture was pervasive and was evidenced by a generalized failure to bring perpetrators to justice, as well as by the persistence of a culture that accepts abuses by public officials. In many of its meetings the SPT requested, but was not provided with, the number of individuals sentenced under the crime of torture. Individuals interviewed by the SPT did not expect that justice would be done or that their situation would be considered by state institutions. 
O Estado brasileiro acabou enviando os dados sobre os indivíduos processados pelo crime de tortura somente depois da visita, um número constrangedoramente pequeno, que chegou a tempo de entrar no relatório: "Pursuant to information provided by the State party after the visit, in April 2011 there were 160 persons charged with the crime of torture out of a prison population of 512,000.".
O relatório de 2015-2016 do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura adota uma linguagem extremamente diplomática para a constatação de que os "órgãos do sistema de justiça criminal" não estão desempenhando bem seu papel na prevenção e no combate à tortura:
275. Os órgãos do sistema de justiça criminal, principalmente o Ministério Público, o Poder Judiciário e a Defensoria Pública, podem desempenhar um papel fundamental na prevenção e no combate à tortura no Brasil. Essas instituições são fundamentais para a fiscalização periódica dos locais de privação de liberdade, para a responsabilização de pessoas acusadas por práticas de tortura e maus tratos e, sobretudo, para a consecução de processos de desinstitucionalização.
Esse mesmo relatório destaca a importância da visita de Nigel Rodley em 2000 para fortalecer as iniciativas da sociedade civil brasileira contra a tortura:
13. Em abril de 1997, o Brasil definiu o crime de tortura através da Lei Federal 9.455, de modo que o Estado deu um passo importante no reconhecimento sobre a gravidade desta prática. Em maio de 2000, o Relator Especial das Nações Unidas sobre a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, Nigel Rodley, realizou sua primeira visita ao país. A partir de seu relatório, houve forte mobilização social para o enfrentamento à tortura, que culminou na Campanha Nacional Permanente de Combate à Tortura e à Impunidade, uma parceria da sociedade civil e da então Secretaria Especial de Direitos Humanos. Os principais objetivos dessa campanha eram identificar, prevenir, enfrentar e punir a tortura, bem como todas as formas de tratamento cruel, desumano e degradante.
Os relatórios do SPT são confidenciais até que o Estado concernente autorize a divulgação - é a previsão do artigo 16 do Protocolo:

Artigo 161. O Subcomitê de Prevenção deverá comunicar suas recomendações e observações confidencialmente para o Estado-Parte e, se for o caso, para o mecanismo preventivo nacional.2. O Subcomitê de Prevenção deverá publicar seus relatórios, em conjunto com qualquer comentário do Estado-Parte interessado, quando solicitado pelo Estado-Parte. Se o Estado-Parte fizer parte do relatório público, o Subcomitê de Prevenção poderá publicar o relatório total ou parcialmente. Entretanto, nenhum dado pessoal deverá ser publicado sem o expresso
Essa confidencialidade só pode ser quebrada unilateralmente pelo SPT nas condições excepcionais do parágrafo quarto do mesmo artigo (o Estado deixar de cooperar com o SPT). Pois bem: o SPT voltou em 2015 e conseguiu realizar sua visita. O relatório foi enviado em 24 de novembro de 2016 e o atual governo autorizou sua publicação em 10 de janeiro de 2017. No sítio do SPT, ainda não aparece: http://tbinternet.ohchr.org/_layouts/TreatyBodyExternal/CountryVisits.aspx?SortOrder=Alphabetical
Ele pode ser lido aqui: http://www.sdh.gov.br/noticias/pdf/relatorio-subcomite-de-prevencao-da-tortura-1. O documento praticamente prevê a explosão de violência nas prisões; no parágrafo 50, menciona expressamente o Complexo Penitenciário Anísio Jobim em Manaus (administrado por uma empresa privada desde 2014, que financiou a campanha do Governador e aumentou os custos por preso - elementos típicos da privatização de serviços públicos), onde ocorreu uma grande chacina de presos no início de 2017. O SPT denunciou a superlotação e lembrou que em 2002, doze presos haviam sido mortos: "The current overcrowding increases the risk that a similar incident could occur at any time." Não vi nenhum jornalista destacar esse ponto, peço para que me comuniquem as matérias em que ele foi tratado.
Nesse ponto, deve-se tentar entender por que o atual chefe do ministério da justiça pediu, em agosto de 2016, menos pesquisa em segurança e mais armamentos, mas não consigo fazê-lo; afinal, com mais estudos e informações, saber-se-ia como evitar chacinas e, quem sabe, até mesmo estabelecer o princípio da dignidade da pessoa humana, para o qual Nigel Rodley tanto trabalhou e pesquisou. Afinal, Rodley foi um verdadeiro jurista, ao contrário dos "operadores do Direito" que trabalham contra a igualdade e a integridade.
Alguns destes são até cotados, às vezes, para a mais alta magistratura do país.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Reuben da Rocha, o haxixe extragaláctico e o pertencimento ao planeta

Escrevi há algum tempo um texto em que aludo a escritores que vêm trabalhando, na poesia, a questão da perda da terra, seja pelos imigrantes, seja em razão da violência urbana, ou de remoções forçadas e genocídio.
Depois, em 2016, conheci Reuben da Rocha (São Luís- MA, 1984), o cavalodadá, e sua série em seis episódios Siga os sinais da brasa longa do haxixe (Pitomba, 2015-2016), em que a perda da terra é elevada a níveis espaciais pela ficção científica: o genocídio dos povos indígenas e a transfobia estão conjugadas à literal perda do planeta. No espaço sideral, vivem personagens como Maria Estrela Forte (uma astronauta travesti), mães Ka'apor e vários refugiados.
A série imagina o fim deste século; o progresso tecnológico conjuga-se a diversos retrocessos políticos e sociais: o governo civil acabou, o transporte público terminou, há uma série de refugiados das mais diferentes proveniências, pois uma teocracia financeira militarizada tomou conta de vários planetas.
Na publicação, há fios narrativos (a criança azul da mãe ka'apor assasinada, as ações de revolta de Maria Estrela Forte, da hacker Ka'apor e da Peixeira Tenaz), mas são apenas fios; o último número da série os abandona, sendo quase todo composto de fotos, encerrando-se com um poema sobre o coração e o desejo.
Caroline Micaelia, em artigo para a revista Cisma ("Passos para uma outra dança: dinâmicas e enfrentamentos", n. 5, 2014), dos alunos da graduação em Letras da USP, destacou o caráter da linguagem, "a escrita instantânea e concisa do ambiente digital", que também se coaduna com a arte de rua e com as intervenções públicas que Reuben realiza. Por exemplo, ele sempre escreve "d", em vez da preposição "de", e muitas vezes substitui o prefixo de ou des pela mesma letra.
A arte de rua, além de linguagem, também torna-se tema na série Siga os sinais da brasa longa do haxixe como instrumento de combate político. Um exemplo, no número 3:
------a gari guajajara
------se garante no bairro
cerze em letra cursiva, exausta
------------, pixos n1 cor d sconhecida ,
ñ no bico do último andar, mas no asteroide acima
Este outro recado (bem otimista, na verdade, tendo em vista o poder dos grandes meios de comunicação no Brasil) sobre a pichação, também da gari guajajara, talvez ganhe nova urgência na presente disputa pela cidade em São Paulo (n. 4, "os atentados íntimos"):
ela mandou 1 genitálias prisioneiras d guerra no muro
do Banco Militar Episcopal na tarde do dilúvio induzido
--torrentes corrosivas           (silêncio até d pássaros   )
é + fácil
-vc tirar 1 emissora d TV do do q impedir a alvorada
-d 1 pixo
A gari imaginária do fim do século é da mesma etnia de Sônia Guajajara, liderança da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A personagem contrapõe-se ao bandeirantismo extragaláctico: "no subsolo, onde a Paróquia do Extermínio armazenava, sob as ossadas dos santos bandeirantes, suas embarcações de guerra." (n. 1, "o sol nascer visto dele msm").
Há algo que remonte ao dadaísmo? Sim: as colagens e a revolta, embora não o inarticulado. Agora que a KKK conseguiu emplacar um presidente da república nos Estados Unidos, é interessante ler poemas como "hipóteses intumescidas" (n. 2):
------kKapital Amérikk k
-----------o higienista hipocondríaco
durante a qual o bom feitor mascarado exacerbava os traços d
heroísmo
A série de Reuben amplia extragalacticamente a geopolítica dos deserdados e dos indesejáveis, e a luta contra o "Estado-chacina". No "Relatório do ex amante:" (n. 3), os trabalhadores, em situação análoga à de escravos, vêm de diversas regiões; os muros e as cercas contra estrangeiros continuam no fim do século, bem como a esperança messiânica.
população vênus ucraniana acampada
no vale d ossos entre a Grécia Posterior
e Macedônia 1os 175qm + 4m d altura do arame farpado
do muro ( ir a baixo )
que cerca a Hungria c/ a Sérvia, a espera
d Dom Sebastião voltar à Terra
Há um tom juvenil de aventura bem simpático em muitos poemas. Em alguns pontos, no entanto, há menor voltagem imaginativa, e o texto sofre com isso. Esta descrição, tão colada às chamadas bancadas da bala e do boi no Brasil, não decola: "Os madeireiros/ depois que deixou de haver matéria ñ sintética/ se organizaram em partido político e/ agora sob o Conglomerado Financeiro da Fé/ agem como coletores de impostos" ("cresce na pressa a distância", n. 5).
Neste poema publicado em 2014 na Modo de usar, de que copio o começo, as questões da série do Haxixe estão condensadas:
LOGO ACIMA DO SILÊNCIO DO ÍNDIO Q SE SUICIDA
o enforcado sonha em disparada desta atmosfera pesada p/ outros mistérios + esferas
logo acima
dos abacates suspensos podres 1tupi akira
vara a febre do mosquito galopa aflito p/1lugar longínquo + escapa
às tentativas de assassinato
vista multidimensional do universo
amplo ataque do enxame sobre o exército
Penso que faz todo sentido que uma poesia cruzada pela questão do genocídio dos povos indígenas tematize o universo, até mesmo nessa dimensão extragaláctica, tendo em vista a pertinência das cosmogonias desses povos e do papel que eles adotam de guardiães da Terra, da natureza, nesta época histórica em que as sociedades da produção destroem o mundo tal qual o conhecemos. 

Penso, portanto, que o gesto extragaláctico na poesia de Reuben da Rocha parte de uma tentativa de defesa do mundo, de uma sensação de pertencimento à Terra, e não do escapismo.
Ao lado, uma foto que tirei do autor, em 2016, em São Paulo, realizando uma das tarefas tradicionais da poesia, a fotografia do fogo, exatamente para a série Siga os sinais da brasa longa do haxixe.
Também no ano passado, filmei o poeta falando na Setzer, em sarau organizado por Tarso de Melo e Heitor Ferraz.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Poesia e cegueira: o road movie de Alexandre Rodrigues da Costa

No livro Objetos difíceis (Rio de Janeiro: 7Letras; Juiz de Fora: Funalfa, 2004), que venceu o prêmio Cidade de Juiz de Fora em 2003, li pela primeira vez a poesia de Alexandre Rodrigues da Costa (Belo Horizonte, 1972). Não gostei tanto assim dos poemas, e perdi esse autor de vista até o ano passado, quando descobri em uma livraria do Rio de Janeiro Como assistir a um road movie em pé (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016), que me fez procurar suas outras obras.
Os poemas adotam os motivos da ferida, do olhar (e o olhar ferido), do sangue, da mutilação, encenações incompletas de crimes contra a vida e, às vezes, é referido ou interpelado algum sujeito feminino, ou o que restou dele. Não são incomuns as referências a outras artes; um de seus títulos, por sinal, é Bela Lugosi no ateliê de Kandinski (7Letras, 2013). Em seu último livro, o cinema recebe mais alusões.
Essa poética pareceu-me firmar-se a partir do livro de 2005, fora-de-quadro, publicado pela 7 Letras, aberto com o poema "Ut pictura poesis": "como nos diz/ o filósofo, "pegue o olho/ de uma pessoa/ qualquer,/ morta há pouco/ tempo,/ corte,/ com habilidade,/ em direção/ ao fundo,/ as três partes/ que o envolvem,/ feito isso,/ olhe para/ a película branca/ à sua frente,/ e veja,/ não talvez/ sem admiração/ e prazer,/ uma pintura/ que representará/ em perspectiva/ todos os objetos/ de fora",".
Não sei que filósofo seria esse, ignoro se o trecho se trata de invenção ou de resgate feito por Alexandre Rodrigues da Costa. De qualquer forma, é um achado do autor, pois ele bem descreve uma poética. Nesta entrevista dada a Rodrigo Guimarães, em 2008, ele afirma "trabalho com as palavras como uma espécie de rasura do olhar", e explica: "Essa rasura do olhar seria um pouco parecido com o que Francis Bacon faz em suas telas, nas quais os corpos, as faces, se tornam imagens precárias, cujos limites estão prestes se dissolverem no próprio cenário que as compõem"; "Queria que a página fosse uma ferida e que todo o livro fosse como um corpo mutilado, fragmentado.".
Em Bela Lugosi no ateliê de Kandinski, encontramos este "Exigências mínimas", que incluem a ferida e a cegueira:
Se nos
colocássemos
em uma história,
não
saberíamos
como perder
as mãos.
Devemos,
assim, expor
a superfície
ao corte,
deixar que
a lâmina
caminhe sobre
o silêncio
e atravesse
nossos olhos?
Trata-se de "a face atravessada/ por sua própria sombra" ("Lâminas", de Peso morto, publicado pela 7Letras em 2008). Cortam-se e silenciam-se a história e o referente; é muito curioso como este autor consegue aludir a possibilidades de história sem nunca, realmente, contá-las. Os olhos são cortados para que se possa examinar o próprio olhar - qualquer outra possibilidade, aparentemente, seria dolorosa demais.
No fim de "Noite plana", poema do livro A mímica invertida dos desaparecidos (7 Letras, 2014), vemos explicitada esta relação entre cegueira e anestesia:
Calma,
mais um pouco
e ficaremos cegos,
então marcaremos com sinais
coisas que não
compreendemos,
coisas que nem ao menos
servem para sofrer.
A impressão de que toda esta poesia se passa pós-trauma, e de que não ficaremos sabendo da origem do problema, qual seria a catástrofe original, expressa-se no enloquecimento do olhar e da anatomia, em imagens impressionantes como a do início de "À deriva", de Corpos cegos (7Letras, 2012):
o olho enterrado
na carne,
tão próximo da noite
quanto o silêncio da loucura.
A mutilação e o enlouquecimento da anatomia parecem-me meios de alcançar, nesta poesia, o informe, assim como a obnubilação do referente. O livro Como assistir a um road movie em pé oferece-nos diversas realizações desse ideal; cito o começo de "Janelas sem vidros lançam um terrível reflexo":
Sem ir ao extremo de dizer que a realidade,
neste quarto, também era uma forma
de mutilar nossos corpos,
E isso talvez seja o mais próximo de um poema de amor no livro. Em outro texto teórico, "Ponto de laceração: a morte como desarticulação nos poemas de Ana Cristina Cesar e Orides Fontela", o poeta (que é professor  na Universidade do Estado de Minas Gerais) estudou o "poema como objeto sacrificial e encenação da morte" em Orides Fontela e a encenação da morte do sujeito em Ana Cristina Cesar.
É curioso que seus interesses teóricos encontrem correlato tão forte em sua poesia. Um dos melhores poemas do seu último livro chama-se nada menos "Aruspicação", e corresponde a uma fala, claro, dos adivinhos que leem vísceras. Eles tentam justificar-se:
Se há integridade naquilo
que fazemos?
Mas claro que há.
Não andamos
sobre sepulturas à toa.
Usamos diagramas, tabelas,
gráficos, e calculamos,
no fundo de nossos
corpos, quanto de vísceras
precisaremos para nos amarrarmos
uns aos outros,
para que, no escuro,
não batamos nas paredes.
Temos aí uma bela imagem para o que significa a tradição poética? Os poetas, mais ou menos mortos, amarrando-se com vísceras para não bater nas paredes, em vez de derrubá-las? Aberto com o verso "Não há assassino entre nós", um gesto de denegação, o poema termina desesperançado:
Não estamos mortos.
Apenas pensamos
como mortos,
agimos como mortos,
na esperança de que não haja
assassinos entre nós.
Bataille é uma das referências teóricas importantes para Alexandre Rodrigues da Costa, que nele destaca a insistência no corpo dilacerado para abrir-se sacrificalmente ao "ilimitado". Cito, do poeta, Acidentes de leitura:
Se a imagem se torna insuficiente, é porque ela foi dilacerada, exposta a esse erro que lhe corta as amarras com o reconhecível e a deixa tão vulnerável quanto pode ser em sua origem. O glitch possibilita, dessa maneira, resgatar o corpo a partir de uma multiplicidade negativa, pois cada fragmento de imagem, combinado com outros, de forma aleatória, se apaga em sua origem, mesclado aos reflexos que deixa e às sombras que projeta. A partir dessa perspectiva, o corpo se abre ao ilimitado como se fosse o da vítima em um ritual sacrificial.
Creio que, nesta poesia, a impressão deixada é a do indefinido, mais do que a do ilimitado. O sacrifício está presente em vários dos poemas, como "A sobrevivência dos mortos", com uma alegria que se compraz na morbidez:
Parece que estão
sempre atrás de nós,
com o chicote nas mãos
prestes a nos cortar
a carne com a alegria
típica dos anjos.
O trauma nunca explicitado e, por isso, ainda mais forte, encontra a imagem de uma fratura original em "Weltinnenraum", nome do espaço íntimo do mundo segundo Rilke; nesta poesia, no entanto, é um osso fraturado de um morto, trazido desde a infância:
Finge olhar o que
de perto morre,
acaricia, com medo,
a parte oculta,
o osso quebrado
que as larvas não alcançam.
"Um dois, três."
"É ali", diz a criança,
"que meu brinquedo
se esconde."
O clima aqui é completamente diverso do de "Tarde de maio", de Carlos Drummond de Andrade, que celebremente começa "Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos/ assim te levo comigo, tarde de maio", apesar da referência drummondiana a "disjecta membra". Na fratura original do poema de Alexandre Rodrigues da Costa, temos a promessa da loucura: "A vida, alguém comenta,/ perde a razão.", escreve em um dos melhores poemas do livro, "Medo":
Com o mar aprisionado
pelos ossos,
vejo o deserto onde,
à luz vacilante da saliva,
ela gargalha.
O vidro se quebra.
Antes que as mãos sangrem
cubro o medo
com a noite,
com o que resta das palavras.
Mergulho a face
entre as lâminas,
sem me importar se ela
cuidará das feridas.
Feridas, cortes, facas, chicotes. "A pele da lâmina" parece combinar Cabral e Gullar:
Com a faca dentro da carne,
como não sentir o cheiro
das frutas podres a impregnar a casa,
No entanto, não temos no poema nem o impulso metalinguístico de Cabral nem a celebração da vida que fervilha no apodrecimento, tão típica de Gullar. Alexandre Rodrigues da Costa realiza outra coisa, um elogio do informe, que ele encontra em Bataille e exalta. No artigo "Corpos lacerados: o sacrifício da palavra na obra poética de Georges Bataille", esta passagem serve, penso, para entender sua própria poesia:
O informe assinala, portanto, a desistência de dominar a matéria. Mas para que se vá ao encontro dessa matéria informe, é necessário abraçar os caminhos da transgressão. E para que a transgressão ocorra, a contradição deve ser percebida como a afirmação daquilo que é profano, ou seja, a nossa própria existência. No instante em que o pensamento se volta para o dualismo, não há espaço para conciliação ou redenção, mas para o fracasso. Por isso, pensar e conceber o poema sob os desígnios do informe deixa, na página, como se fosse ferida, uma palavra sempre aberta, fundada no descontínuo, no fragmentário. O desconhecido, aquilo que não tem resposta, passa a dominar a linguagem e o que se estabelece é uma tensão não resolvida entre nascimento e morte, entre o transitório e o permanente. Longe de uma síntese, o informe abraça simultaneamente os dois termos, sem que haja uma conclusão, um fim.
Diferente de Bataille, esta poesia não tem como marca o erotismo. Este lugar da transgressão não lhe é importante. Em "A dissecação e a reconstrução de Marilyn Monroe - parte 3", o foco é o "medo inalcançável", e não o apelo erótico da artista.
Há algum road movie nesta poesia que, ironicamente, tem na cegueira autoinfligida seu modo de produção? Encontramos ironia a respeito dos produtos industriais de Hollywood:
Os mortos não são como antes,
há muito seus gestos
tornaram-se calculados
e hoje, dizem, atuam
em filmes hollywoodianos.
O trecho vem do poema que recebe o título do livro. O último poema, "O corte preciso", insinua uma história, mas foge da narratividade; poderia ser um filme de Godard, não uma produção de Hollywood:
O corpo perdido em si mesmo
se mescla ao choro daqueles que não
podem vê-lo,
aos jornais despedaçados sobre a mesa,
às cenas que jamais explicam
o que virá em seguida.
Não se sabe quando a mataram,
depositaram, sob a água,
nada além de dias mais longos.
Nesta poesia, o corte pode ser tanto a forma de assassinato do corpo, ou o recurso cinematográfico. Essa ambiguidade é fundamental para este autor, que não quererá distinguir entre poética e crime, poética e morte, na bela imagem da falta, com que o livro se encerra: "nada além de dias mais longos".