O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 28 de janeiro de 2017

30 dias de canções: Um retrato à beira da razão, de Tom e Chico

30 dias de canções
Dia 1: Uma canção com uma cor no título

Até mais de uma cor: duas. "Retrato em branco e preto", de Tom Jobim e Chico Buarque. Ou nenhuma, de certa forma: se o retrato é em branco e preto, não é colorido.
Antes de a parceria com Chico Buarque existir, Tom Jobim havia composto e gravado um tema instrumental a que deu o título "Zingaro"; está no disco "A certain Mr. Jobim", de 1967. O arranjo é de Claus Ogerman.
Jobim, em 1968, acabou oferecendo o tema para o jovem Chico Buarque letrá-lo, no que se tornou a primeira canção da parceria, uma das mais notáveis da música brasileira. Ademais, trata-se de uma das melhores canções da dupla. 
Helena Jobim, no livro sobre seu irmão, Antonio Carlos Jobim: Um Homem Iluminado, escreveu que Jobim telefonou para Chico Buarque ir a sua casa e tocou-lhe diversas vezes "Zingaro"; a música foi gravada em fita para Chico Buarque criar os versos sozinho, o que fez em "poucos dias". Ele a gravou naquele mesmo ano, em arranjo do maestro Gaya.
Vejam a partitura, em arranjo de Paulo Jobim, no portal do Instituto Antonio Carlos Jobim.
Com a entrada de Chico Buarque, o título e o clima da música mudaram completamente: a nova música agora trata de um amor que não deu certo, mas a que se está aprisionado. Esse amor "que eu nego tanto" e que "volta a sempre a enfeitiçar/ Com seus mesmos tristes velhos fatos,/ que num álbum de retratos, eu teimo em colecionar". 
O desacerto psíquico é dado pela sintaxe; a certa altura, um vocativo interrompe uma enumeração que descreve o seu estado : "Novos dias tristes, noites claras/ Versos, cartas, minha cara,/ Ainda volto a lhe escrever". O que exatamente ocorreu? Um dos elementos geniais da letra é jamais contar o que foram os "tristes velhos fatos", não precisar fazê-lo: "Eu trago o peito tão marcado/ De lembranças do passado/ E você sabe a razão". Trata-se quase do funcionamento dos mecanismos do trauma.
O intérprete desta canção deve ficar muito atento: as frases musicais sobem e descem de forma quase tão sutil quanto "O último desejo" de Noel Rosa.
O título aparece apenas no penúltimo verso. Por que em branco e preto, se todos falam "em preto e branco"? Isso teria incomodado Tom Jobim, segundo li no texto de José Ruy Gandra para a reedição do disco Chico Buarque de Hollanda - Volume 3, em que o compositor a gravou. Chico Buarque teria respondido com isto: "Vou colecionar mais um tamanco/ Outro retrato em preto e branco".
É certo que retrato em "branco e preto" apresenta uma singularidade que o cotidiano "em preto e branco" não tem, chamando a atenção para o título e sugerindo, creio, a desolação. Cotidiano, de fato: a foto em branco e preto, nos anos 1960 no Brasil, era muito mais comum que a foto colorida.
A história, no entanto, chama a atenção para outra questão: o foco da letra talvez fosse a palavra soneto e, por isso, o compositor não quisesse dispensar a palavra da rima - preto - que teria que ficar no final.
A imagem da coleção de sonetos também é invulgar. A letra não adota essa forma poética. Se o soneto era tão necessário a Chico Buarque, talvez fosse por influência ou alusão a outro parceiro de Tom Jobim, mais velho e mais célebre, e com cuja sombra o jovem compositor teria que se defrontar: o poeta e conhecido sonetista Vinicius de Moraes (por sinal, Tom Jobim já havia musicado o "Soneto da separação").
Como os compositores interpretaram a canção? Chico Buarque gravou a música com um canto macio, sem tensões. No histórico disco de 1974, Elis e Tom, a abertura dramática do arranjo de César Camargo Mariano, com cordas e o piano de Jobim, faz o canto de Elis Regina parecer ainda mais desconcertante: a dinâmica vocal nunca vai para o forte (o que é surpreendente tratando-se desta cantora, mas não neste disco), a maior parte do tempo a voz é mantida em baixo volume. No entanto, a emissão marcada de certas notas impede qualquer sensação de serenidade, ao contrário do que ocorre com Chico Buarque. Essas duas particularidades da interpretação de Elis Regina deixam a impressão de uma dor muito interiorizada, um lamento que não pode ser dito em voz alta. Quando ela se cala e o piano e as cordas fecham a música, o drama volta ser explícito e o clima lembra o de Chausson na "Chanson perpétuelle". Por sinal, Tom Jobim, pelo que li, ouvia muito a música francesa dessa época.
Evidentemente, os intérpretes não precisam, neste estilo, se prender à intenção dos compositores. Uma interpretação completamente diferente dessas duas é a de Ney Matogrosso e Raphael Rabello em "À flor da pele", disco de 1990. Eu vi ambos ao vivo interpretando essa canção exatamente como o fizeram no disco: contrastes de dinâmica (tanto no violão quanto na voz), notas em marcato, num discurso exacerbado (que, é claro, chocará os que preferem a interpretação suave, com os graves falados e os agudos omitidos ou enrouquecidos, de João Gilberto) que leva, no 24o. compasso da partitura segundo Paulo Jobim, a um salto para o agudo em uma frase que deveria descer, culminando em um belo agudo em falsete na palavra "razão". 
Razão; justamente o que a canção não diz (isto é, o motivo do fracasso daquele amor), e que o eu lírico, ali, parece estar à beira de perder.

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