O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Algo como um poema: As mandíbulas

Isto foi publicado na revista de poesia Telhados de vidro n. 12, de maio de 2009, a convite do poeta português Manuel de Freitas.
Por sinal, ele teve uma antologia lançada no Brasil pela Oficina Raquel, organizada por Luis Maffei. Pode-se ler o que Marcelo Sandmann e Danilo Bueno escreveram sobre ela.
Eis o que escrevi, talvez como um voto para anos vindouros.



As mandíbulas


I

as mandíbulas permanecem no ar

suspensas pela morte
acima da vida

mandíbulas nuas

nenhuma pele as cobre

resta alguma pele entre os dentes
na refeição interminável


II

o sorriso da mandíbula
puro

apenas dentes à mostra

vivo como a rocha depois do apedrejamento


III

como se flutuassem
as mandíbulas permanecem

algumas partidas, outras não

mesmo com os dentes cerrados
elas estão abertas para o mundo
e o abocanham


IV

o beijo da mandíbula

não em outra

mas no ar

que nos circunda

e transmite a carícia seca do cálcio


V

dentro da mandíbula

alguém vive

não você ou eu

a mordida vive
e escolhe sobreviventes


VI

maxilar é o verbo da
mandíbula
acolhe-nos em seu discurso

a cárie não sobrevive à mandíbula

o verbo não sobrevive ao discurso


VII

o céu coberto de mandíbulas,
a noite cai sobre a terra
e os gritos de pânico
vêm do céu e da terra;

o céu coberto de mandíbulas,
não há mais voo, as aves
rastejam de um dente a outro
sem encontrar pouso;

o céu coberto de mandíbulas
morrerá de fome, e seu
esqueleto enfim sem asas
cairá vivo sobre a terra;

as mandíbulas continuarão a reinar
esperando que outro céu nasça
e cresça como o crânio jamais completo


VIII

não se veem mais
as mandíbulas; neste
ar que sufoca a possibilidade da garganta,
neste sol que cega a desintegração da paisagem,
neste vento que leva a matéria ao destino do pó

poderíamos encontrá-las, ou
seriam elas mesmas a impossibilidade
da garganta, a cegueira
integral da paisagem, o pó
como matéria do destino

na cidade erguida no espaço entre os dentes?

não se veem mais
as mandíbulas; teriam abocanhado
o ar ou a visão?

esgotou-se a possibilidade do paraíso
nas mandíbulas suspensas?
porém

é sempre possível imaginares
tua mandíbula na fuga aos rigores da carne
a reinventar o corpo em campo minado.
Tens a arma. Ela te usará.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Inaudição de hoje: Modern Sound e outros fechamentos no Rio de Janeiro


Termina no fim de 2010 a loja Modern Sound, que ficava no bairro de Copacabana, quase na esquina da Barata Ribeiro com a Santa Clara. Ela vendia música em vários suportes: discos, livros, partituras, filmes. Provavelmente para soar mais moderna, e porque vivia principalmente de vender produtos importados, tinha o título em inglês. Existia desde 1966, segundo leio na última sacola de compras que lá recebi, dia 28.
Ela tornou-se referência no Rio de Janeiro por conta de seu acervo. Ainda no dia das mães deste ano, embora a loja não fosse mais o que tinha sido, foi lá que encontrei a gravação de Lohengrin, de Wagner, regida por Daniel Barenboim. Em São Paulo, ninguém a tinha.
O primeiro disco (cd) que lá comprei foi um recital que Maria Callas gravou em 1958 com o maestro Nicola Rescigno, Cenas de Loucura. Provavelmente o melhor que a cantora gravou em estúdio, o disco é composto do final de Anna Bolena e Il Pirata, escritas por Donizetti e Bellini respectivamente (óperas que a EMI, desgraçadamente, não quis gravar integralmente com Callas), e da cena de loucura de Ofélia (em francês, Ophélie) na ópera Hamlet de Ambroise Thomas.
Era uma loja cara. Muitas vezes, o mesmo produto, se pudesse ser encontrado em outro lugar, nele sairia mais barato. No entanto, em certo momento depois do Plano Real, em FHC I, ocorreu algo inusitado e que não se repetiria: os preços foram diminuídos, tendo em vista a sobrevalorização do real (fenômeno que ocorre novamente).
Não sei o que levou ao fim da loja, que contava com um restaurante e um espaço para pequenos espetáculos com piano. Não sei que peso tiveram o declínio do Rio de Janeiro, a crise do mercado discográfico e o acesso a importados pela internet. Sei que outras lojas na cidade foram ocupando o espaço que a Modern Sound deixava.
Contudo, em nenhuma delas pode-se achar mais de uma dezena de gravações de um Lied de Schubert, que era o que ocorria ainda na década de 1990.
Em 2011, provavelmente não se ouvirá mais nenhum disco e nenhum espetáculo no espaço em que era a Modern Sound. Acho difícil que algo similar ocupe o espaço. O silêncio musical e os ruídos de outras mercadorias preencherão aquele canto de Copacabana.
Antes de a inaudição tornar-se realidade naquele espaço, ouvi agora um disco de música tritônica das comunidades originárias (os índios) argentinas, gravado com auxílio da UNESCO. Um tapa na cara dos conservadores que dizem que o sistema tonal é “natural”. Agora, começo a ouvir primeira sinfonia de Stefan Wolpe, compositor alemão e judeu que escapou do genocídio viajando para a Palestina em 1934. No entanto, lá não havia espaço para sua música, moderna demais para os ouvidos locais (o Estado de Israel manteria esse conservadorismo musical: Schönberg queixou-se da negligência com que eram tratadas as partituras que dedicou
ao novo Estado). Acabou fixando-se nos EUA, onde também não encontrou muitos ouvidos para sua música.

São alguns dos últimos discos que comprei na Modern Sound, que fecha mais um pequeno capítulo do declínio do Rio de Janeiro, visível tanto no setor privado quanto no público. Vejam o estado deste centro municipal de saúde em Botafogo, fechado pois era domingo, dia em que ninguém passa mal, com pombo a infectar o ar-condicionado. Ele não deveria estar lá.
O declínio também ocorre nessa outra categoria de interesse coletivo, que é a dos interesses difusos, como o meio-ambiente. Vejam abaixo outra ave em espaço inadequado - inadequado porque o espaço assim se tornou: encontrei uma pobre garça tentando achar algo comestível em meio à mistura de óleo, plástico e esgoto que é hoje a Baía de Guanabara. Não a vi ter sucesso na busca.

Não sei se os investimentos que alegadamente inundarão o Rio de Janeiro com os eventos esportivos globais terão ouvidos para o declínio. Garças não cantam. Tampouco pombos.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O assassinato de Hamlet e a poesia contemporânea argentina


Em julho deste ano, comprei a antologia 200 Años de Poesía Argentina, que ainda não acabei de ler. Em outubro, recebi outra, muito diversa em seu escopo, Si Hamlet duda le daremos morte: Antología de poesía selvaje (City Bell: De la talita dorada, 2010). Esta se volta apenas para o contemporâneos que nasceram a partir do fim dos anos 1960, geração que não está presente no outro livro.
Essa geração merece uma antologia? Não tenho dúvida que sim, ao lê-la. As antologias de jovens muitas vezes cumprem a função de manifesto, de intervenção, como foi, no Brasil, a 26 poetas hoje (mas não sua repetição dos anos 90, pela mesma antologista, que teve o gosto de farsa, apesar do mérito de alguns dos nomes escolhidos).
A introdução/panfleto dos organizadores, Julián Axat e Juan Aiub (que não foram oficialmente incluídos na antologia), insiste na “Potencia descanonizada del decir.” e na morte do pai subjugador político-poético-canônico-editorial. Porém, se Hamlet não deve duvidar, é para poder vingar o seu pai. Para esses autores que eram crianças na última ditadura militar argentina, trata-se de vingar a morte do pai pela repressão, o que leva tantos à poesia política. No prefácio, Emiliano Bustos (filho do poeta Miguel Ángel Bustos, um desaparecido pela ditadura), ele mesmo incluído entre os poetas do livro, bem escreve que “Para muchos de estos poetas la política, por ejemplo, ya no es un paisaje.”
Provavelmente a política nunca foi paisagem para muitos deles. Julio Greco, por exemplo, publica neste livro um panfletário “guerra”, mas também este, intitulado simplesmente “historia”: “el amasijo la duda la policía la carne la pasta el auto la democracia la guerra hacen de éste un hombre muerto y el pozo que habita es oscuro profundo el pozo suave que lo alimenta día a día com su piel húmeda de barro [...]” (p. 95). O poeta e pintor Leandro D. Barret escreve uma “Gelmaniana”: “no sabés/ cómo vende/ el permitido prohibido prohibir” (p. 102); Ramón D. Tarruella: “Un día hubo un ESTADO,/ un Estado tan grande,/ que ese mismo Estado/ financió las obras completas de Nietszche.” [sic] (p. 150); em Rodrigo Zubiría lê-se:“Caminando río abajo, recorre mi flauta fantasma de la nueva poesía latinoamericana pensada como la última ratio de los bien-pensantes.” (p. 233).
Temos poesia social na fina ironia de Alejandra Szir, uma crítica ao viés europeizante da sociedade argentina: “Nosotros que construimos Suecia/ usamos madera/ quizás de bosques./ […] veíamos Bergman desde los cinco años.” (p. 24). A ironia de Eliana Drajer: “Escuchar 17 veces a Vivaldi/ y abrir sigilosamente el gas.” (p. 45).
Os problemas de escrever poesia hoje na América Latina não são ignorados pelos autores. Lemos em Enrique Schmukler “El tormento de ser/ “escritor latinoamericano joven”/ tormento de ser uma repetida/ antología rogada por/ los chicos que se largaron a escribir/ en los noventa;” (p. 59); em Inés Aprea “y si la poesía no era/ otra cosa/ que el gesto adolescente/ de abandonarlo todo/ como Rimbaud/ como Bolaño/ lanzarse a los caminos” (p. 76); em Emiliano Bustos: “Los perros publicadores, mitad veraniegos, mitad 'yo leo en público como los cadáveres leen en privado'; publicaron tanto.” (p. 181)
O livro oferece também a densidade psicológica de Dafne Pidemunt: “El consuelo de escribir. Mi madre se emborracha. Una y otra vez la asesino. Muerta, resucitada, continúa suicidándose.” (p. 35); a desconstrução de gêneros de María Eugenia López: “Mi affair con Jessica Rabbit me enseñó a desear una muerte perfecta. Algún accidente de auto precipitado por la Mulholland Drive y dando de fauces en Sunset Boulevard, mi cara hacia atrás, como quien acaba de tener un orgasmo [...]” (p. 119).
Trata-se de uma geração que pode lembrar que “por lo demás poesía siempre amó con sus esfínteres” (Demetrio Iramain, p. 212).
Alguns poemas são panfletários, outros excessivamente decalcados de outros poetas (especialmente os de língua inglesa), e outros simplesmente não são poemas. No entanto, a antologia arde bravamente:

arder es comprender la ceniza

arde el río
y la casa del río

(Emmanuel Taub, “VI. incendio. p. 230)

domingo, 26 de dezembro de 2010

Insurgência, Godard e Film Socialisme

Não é que Jean-Luc Godard seja à prova de tolos – certamente há os tolos de Godard, talvez eu esteja entre eles. Porém, os tolos de outra espécie geralmente não conseguem ficar até o fim em seus filmes: a repugnância, reação estomacal, impede a compreensão crítica.
Ontem fui ver Film Socialisme em uma pequena sala no Rio de Janeiro: dos 23 espectadores, 7 saíram antes do final. Um casal de idosos o fez desnorteadamente – dirigiram-se para o lado oposto ao da saída, e a senhora perdeu-se do marido e acabou diante da parede.
Não sei se tolos, mas desnorteados ficaram, o que é um bom efeito de Godard. O filme abre-se com um diálogo entre pessoas que não vemos: o dinheiro é um bem público; assim como a água?; (pausa) exatamente. E a imagem do mar em movimento repete-se em diversos momentos do filme-manifesto, que é dividido em partes e não é nada linear, como outros do cineasta.
O fim da URSS, a crise da Palestina e o colapso da Europa são abordados no filme-manifesto (manifesto vem de mão, afirma-se, e Godard quer atingir tudo o que puder manipular). A Grécia ou Hélade, onde a crise é talvez mais visível, vira Hélas e Hell as (por sinal, os diálogos e textos em várias línguas não são traduzidos: precisei da consultoria do poeta Fabio Weintraub para entender o texto em hebraico; não precisei para os diálogos em alemão, que são curtos e muito simples: Scheiße, Frankreich, por exemplo, mas mereciam tradução).
Para uma descrição do filme, veja-se o que Marcelo Ribeiro fez: http://incinerrante.com/2010/12/film-socialisme-os-fantasmas-da-alegoria/
O que é mais interessante, no entanto, é o modo de produção: como outros filmes de Godard, ele é construído à base de citações (pensei em Nouvelle vague), textuais e visuais. Até um conhecido vídeo no You Tube de um diálogo entre gatinhos vai parar no filme.
O modo de produção é a mensagem. Não há direitos do autor, mas deveres do autor, afirmou Godard em entrevista. Esse modo de produção é apresentado como um direito insurgente. Em mais um lance irônico do filme (não contarei o final, que é bárbaro), a advertência do FBI contra cópias piratas é seguida de uma frase-manifesto (em francês – Godard tenta que ela volte a ser a língua da subversão): quando a lei não é justa, a justiça passa a lei.
E, de fato, o manifesto é o lugar para o exercício da imaginação jurídica. A imaginação jurídica caracteriza-se por não poder descolar-se da ação. Um filme pode ser exemplo disso.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Brasil, Argentina e os desaparecimentos forçados: A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a Anistia na América Latina

O Estado brasileiro, conforme se previa, foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia"). A sentença, de 24 de novembro de 2010, pode ser lida aqui: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf
Guilherme Gomes Lund é um dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia (1972-1975): http://www.torturanuncamais-rj.org.br/MDDetalhes.asp?CodMortosDesaparecidos=251. Sua mãe, Julia Gomes Lund, acabou nomeando esse caso dos desaparecidos na Guerrilha.
Os direitos humanos não devem ter fronteiras: se a dignidade é uma condição de todos seres humanos, não há sentido em ser contra à internacionalização desses direitos. No entanto, devido às peculiaridades culturais, é interessante que haja sistemas regionais de proteção a esses direitos (é o que defendo em meu livrinho), e não apenas os sistemas universais da ONU.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos pertence à OEA (Organização dos Estados Americanos) e não permite que indivíduos acessem diretamente a Corte: as queixas precisam ser apresentadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que analisa a procedência do pedido e solicita informações ao Estado. Ela pode solicitar que o Estado adote providências para garantia e/ou reparação de direitos se chegar à conclusão de que há realmente violação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ou Pacto de São José da Costa Rica).
Neste caso, a Comissão considerou que o Estado brasileiro violou diversos artigos da Convenção e levou o caso à Corte Interamericana, sustentando que o Estado brasileiro era responsável internacionalmente:

a. pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento dos membros do Partido Comunista do Brasil e dos moradores da região listados como vítimas desaparecidas na presente demanda;
b. porque, em virtude da Lei Nº 6.683/79 (Lei de Anistia) promulgada pelo governo militar do Brasil, não se levou a cabo uma investigação penal com o objetivo de julgar e sancionar os responsáveis pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado das 70 vítimas desaparecidas, e pela execução extrajudicial de Maria Lucia Petit da Silva;
c. porque os recursos judiciais de natureza civil com vistas a obter informação sobre os fatos, não foram efetivos para garantir aos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada o acesso à informação sobre os acontecimentos;
d. porque as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o direito de acesso à informação dos familiares das vítimas desaparecidas e da pessoa executada; e
e. porque o desaparecimento das vítimas e a execução de Maria Lucia Petit da Silva, a impunidade dos responsáveis e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação, afetaram prejudicialmente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada.


Na condenação, a Corte não deixou de ver a parcela de culpa do Judiciário brasileiro (já escrevi aqui a respeito) na violação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos:

3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

4. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma.

5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma.


Sustentei em seminários em São Paulo e na Espanha que o Supremo Tribunal Federal errou terrivelmente no julgamento sobre a lei de anistia de 1979. Deisy Ventura, em conferência que proferiu em Oxford, "A interpretação judicial da Lei de Anistia brasileira o Direito Internacional", brilhantemente explicou as questões de direito internacional concernentes ao caso: http://educarparaomundo.files.wordpress.com/2010/11/ventura-oxford-07-11-2010.pdf
Recomendo também entrevista que o jurista José Carlos Moreira da Silva Filho, conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, concedeu-me.
Enquanto as instâncias internacionais agem no caso brasileiro, a justiça argentina funciona. Nesse país, já foram declaradas a inconstitucionalidade das leis de anistia e a aplicação do direito internacional contra os crimes de lesa-humanidade, seguindo as decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Os ex-generais Jorge Rafael Videla (também ex-ditador) e Luciano Benjamín Menéndez foram condenados neste dia, 22 de dezembro de 2010, à prisão perpétua. A sentença, unânime, pode ser lida nesta ligação: http://contenidos2.tn.com.ar/2010/12/22/veredicto-videla-menendez.pdf
Deve-se notar que amanhã, dia 23, entra em vigência, também para o Brasil, a Convenção Internacional para a proteção de todas as pessoas contra o desaparecimento forçado, o que pode fazer a Justiça brasileira retomar a questão da anistia da ditadura militar.
Na Argentina, apesar dos atrasos judiciais, tem havido uma série de condenações pelos crimes da ditadura militar. No entanto, lá como aqui, o desaparecimento forçado mantém sua atualidade. Na foto, que tirei em julho de 2010 no centro de Buenos Aires, exige-se a aparição de Jorge Julio López, que sofreu desaparição forçada duas vezes. A primeira, de 1976 a 1979, durante a ditadura militar, em um centro de detenção clandestino dirigido por Miguel Etchecolatz. Torturado, ele presenciou o sofrimento e a execução de outros prisioneiros.

O seu depoimento foi importante para a condenação de Etchecolatz, que foi julgado pelos crimes cometidos como Diretor de Investigações da Província de Buenos Aires. No entanto, logo após a condenação, Jorge Julio López desapareceu em 18 de setembro de 2006. Seu paradeiro ainda é ignorado.
Pode-se ler sobre o caso aqui: http://www.casapueblos-jorgejuliolopez.blogspot.com/.
Isso faz-nos relembrar, como no romance "2666" de Roberto Bolaño, em uma era de democracias formais, que o desaparecimento continua a ter uma paradoxal presença na América Latina.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Nota sobre duas vezes Kehl

Escrevo por conta de duas menções feitas neste mês de dezembro de 2010 à autora. A última edição da revista Cult (153) apresenta na capa Maria Rita Kehl, sobre quem já escrevi a partir a propósito do fim de sua coluna no Estado de S. Paulo. Não é a matéria mais interessante do número, pois a entrevista passa ao largo de suas obras. Outra que está no mesmo número, com Eduardo Viveiros de Castro, é mais reveladora. Estranhamente, pois o número conta com um dossiê sobre o tempo, nada se perguntou sobre o tema (sobre O tempo e o cão, pode-se ler esta entrevista concedida ao Estado de S. Paulo). Pelo menos, da mesma forma que na entrevista que concedeu a Caros amigos de tempos atrás, seu trabalho com o MST foi destacado.
O último número (41) da edição brasileira de Le monde diplomatique conta não com uma entrevista, mas um texto sobre ela, escrito por Fábio Salem Daie com uma boa dose de ironia: Kehl estaria "fora de moda" ao lembrar que existem classes sociais, contra certas correntes teóricas multiculturalistas e vertentes neoliberais. Isso teria levado ao fim de sua coluna quinzenal.
De fato, ela busca pensar livremente, sem se moldar por conformismos, seja intelectuais, seja midiáticos. Lembro desta passagem de Videologias (São Paulo: Boitempo, 2004, livro que reúne ensaios seus e de Eugênio Bucci):

[...] quanto às análises empreendidas, tive a impressão de que a preocupação com o rigor acadêmico tolheu a liberdade e a criatividade dos autores, que em geral descrevem exaustivamente os respectivos campos de investigação, mas não arriscam muito na interpretação teórica dos dados. (p. 175)

Kehl não teme arriscar. Nas vezes que a vi falar (sobre utopia, arte, tevê), seu discurso sempre era animado por alguma audácia - que pode ser conferida nos livros e no portal da autora. Na entrevista dada à Cult, lemos que "A clínica nos obriga a ter humildade; não se faz teoria aplicada."
Essa humildade diante da realidade, creio, obriga a essa audácia de não se deixar acorrentar pela teoria. Se tivesse se dedicado à docência, teria conseguido manter essa postura? Creio que sim: os carreiristas é que não a mantêm, bem como aqueles que não possuem pensamento próprio.
Mas se, apesar de sua formação acadêmica, Kehl não se dedicou a uma carreira docente universitária, ela não deixa, a seu modo, de ensinar. Tento aprender.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Jornalismo versus literatura, parte I

Normalmente, a imprensa diária ignora a literatura; a maior parte dos jornais adota essa prática, assumindo que seus leitores são iletrados - afinal, se não o fossem, por que leriam tais jornais?
Lamentavelmente, esse iletramento veda o acesso ao direito à literatura, que é uma forma importante de participação na vida cultural de uma comunidade, e de entendimento do mundo e de si mesmo. Nesse sentido, periódicos como esses atuam contra a cidadania.
Outra forma de negar o direito é oferecê-lo com baixa ou nenhuma eficácia - Bourdieu falaria em eficácia simbólica. Alguns jornais maiores mantêm cadernos literários, mas raramente são bem cuidados e têm diminuído em tamanho. Imagino que, no futuro, as resenhas de cinco linhas serão a regra. Matérias de maior extensão não passarão de releases longos ou propaganda mais ou menos disfarçada de jornalismo.
Na ignorância completa do que é literatura, característica não incomum dos jornalistas que são jogados para atuar nos cadernos culturais (que são mais comuns do que os literários), as categorias usadas para tentar apreender os livros geralmente decorrem de algum raciocínio mercadológico.
Uma saída para pautas jornalísticas esvaziadas, por exemplo, é etiquetar certos autores como geração X, ou W, ou *, e fazer considerações genéricas que não se aplicam a nenhum, ou a quase nenhum deles. A indústria das antologias vive em parte desse fenômeno.
Outra solução para preencher vazios em jornal com vazios mentais é criar enquetes ou listas como "os dez mais", como se literatura fosse corrida de cavalo. Coisa descabida, pois os escritores raramente possuem a elegância ou a velocidade dos equinos.
Pode-se ainda fingir que se está falando de literatura, porém a ignorando completamente, ao discutir sobre prêmios literários - afirmando-se, por exemplo, que Patti Smith pode ganhá-los, mas Chico Buarque não, pois está etiquetado de outra forma na oferta de produtos culturais...
Prêmios? Quem é realmente premiado, senão aquela que os concede? Como se sabe, escritores de verdade só participam disso pelo dinheiro, mais nada. Não pelo prestígio: é o escritor que dá prestígio o prêmio, não o contrário. O oposto só ocorre se o escritor não presta. Ademais, a regra é que as premiações errem redondamente. Quantos ganhou Kafka? E Fernando Pessoa?
Sobre o raciocínio mercadológico: não gosto dos raciocínios etiqueteiros que colocam cada livro - o produto - em um nicho separado do mercado. Rejeito também os pasteurizadores, que negam as especificidades. Imagine, juntar crônica, reportagem, poesia, conto etc. numa só categoria? Como avaliar conjuntamente gêneros tão díspares? Por exemplo, o Prêmio Nascente, da USP (ainda existe?), acabou criando uma categoria "texto" englobando tudo isso, não sei se por algum raciocínio de uma deriva pós-moderna equivocada, ou se para economizar na premiação.
Imagine-se agora uma enquete de melhor livro do ano em que só se aparecessem como candidatos dez livros (acho que no Brasil é publicado só um pouco mais do que isso por dia), misturando romance, conto, poesia, história e memória (outros gêneros não publicaram nada de interessante, obviamente...), e que, como livro nacional, aparecesse uma edição brasileira de autor português (que, de tão prolífico, acabou criando para si mais uma nacionalidade)!
Uma enquete dessas é quase perfeita:

"Em Alguma Parte Alguma", de Ferreira Gullar (poesia)
"Os Anões", de Veronica Stigger (contos)
"Um Erro Emocional", de Cristovão Tezza (romance)
"1822", de Laurentino Gomes (história)
"A Máquina de Joseph Walser", de Gonçalo M. Tavares (romance)
"Eu Vos Abraço", Milhões, de Moacyr Scliar (romance)
"A Duração do Dia", de Adélia Prado (poesia)
"Do Fundo do Poço se Vê a Lua", de Joca Reiners Terron (romance)
"Esquimó", de Fabrício Corsaletti (poesia)
"De Menino a Homem", de Gilberto Freyre (memórias)

É quase a loucura. É quase a irrisão. É quase o terror. Porém, como não é nada disso, não chega a ser literatura.

P.S.: Felizmente, houve a alteração para melhor obra publicada em português; no entanto, isso acentuou um defeito: o conjunto fica ainda menos representativo com a hipertrofia da produção brasileira. Não há como consertar.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Lançamento: "Cidadão do mundo" de Tucci Carneiro


Como é sabido, Maria Luiza Tucci Carneiro é um dos maiores historiadores brasileiros. Eu o sabia pelos livros, até que a conheci e pude verificar na prática a sua imensa capacidade de trabalho: atualmente coordena o PROIN (Projeto Integrado Universidade de São Paulo/ Arquivo Público do Estado de São Paulo) e continua com suas linhas de pesquisa e a orientação de diversos pesquisadores.
Ela é um dos principais nomes que estudam o antissemitismo no Brasil. Na sua tese O anti-semitismo na Era Vargas (na ortografia antiga), publicada pela Brasiliense, desmistificou a figura de Oswaldo Aranha, homenageado em Israel por seu empenho na criação do Estado israelense pela ONU. Durante o governo Vargas, no entanto, o Ministro impôs o cumprimento de circulares secretas que limitavam, entre outros grupos, a entrada de judeus no Brasil - e estávamos em época de guerra e genocídio na Europa.
Poucos diplomatas brasileiros reagiram às normas secretas - Souza Dantas foi uma exceção.
Em sua dissertação de mestrado, Preconceito racial em Portugal e Brasil Colônia, publicada pela Perspectiva, os tempos são outros: os do Império Português e do Brasil Colônia. Épocas de leis de pureza de sangue e de perseguições e discriminação contra os judeus e os cristãos-novos, bem como outras pessoas consideradas de "menos qualidade", como os mulatos.
Outra de suas obras dedicadas à memória política brasileira, que organizou com Boris Kossoy, A imprensa confiscada pelo DEOPS: 1924-1954 foi publicada pela Ateliê, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e pelo Arquivo Público do Estado. O livro dedica-se à imprensa política confiscada, censurada nesse período. Em geral, são jornais de combate, de várias ideologias: comunistas, anarquistas, judaicos, de imigrantes etc. Trata-se, pois da reconstituição de espaços de resistência que o Estado republicano buscou amordaçar.
O livro novo, Cidadão do mundo: O Brasil diante do Holocausto e do nazifascismo, que acabou de ser lançado no Brasil e o será proximamente em Portugal, conforme o convite reproduzido acima, trata da questão do antissemitismo no Brasil e sua continuidade após o fim do Estado Novo.
Esses livros foram baseados em pesquisa em fontes primárias no Brasil e em Portugal, como no Arquivo da Torre do Tombo. O que nos faz lembrar da necessidade de acesso aos documentos para que seja eficaz o direito á memória.
Tucci conta-nos na introdução de sua tese uma das restrições que sofreu à pesquisa. Ela já havia começado a consulta dos documentos no Arquivo Histórico do Itamarati quando, em 1984, nova direção impôs que somente a documentação ostensiva poderia ser liberada para consulta. O resultado?
[...]dois funcionários, sem qualquer formação acadêmica, selecionaram quais os documentos ostensivos e quais os confidenciais. Em seguida, as páginas proibidas foram cobertas por uma folha de papel almaço, onde um clipe prendia no seu interior o documento. E assim lacrou-se uma parte da história... (p. 22)
As autoridades sabiam o que faziam, naturalmente. E continuam a fazê-lo, como se viu recentemente no Arquivo Nacional. A articulação de memória e publicidade é necessária para uma resistência eficaz. Por esse motivo, o trabalho do historiador é essencialmente político, ele trabalha com a ressignificação do que é comum.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Wikileaks, publicidade e Kant

O filósofo alemão Kant (1724-1804) escreveu um pequeno grande livro em que sintetizou vários pontos de sua filosofia política, À paz perpétua ou Para a paz perpétua (Zum ewigen Frieden; a tradução A paz perpétua é simplesmente errada, pois trai a noção de ideia em Kant: trata-se, para ele, de um caminho, e não de um projeto acabado).
O livro, ironicamente, assume a forma de um tratado internacional. Por essa razão, apresenta um anexo secreto, em referência à diplomacia secreta, velha prática diplomática que o presidente estadunidense Wilson queria banir no primeiro dos seus 14 Pontos.
Nesse discurso, que proferiu em 1918 diante do Congresso dos EUA acerca da reestruturação da ordem internacional no pós-guerra, Woodrow Wilson sustentou bem kantianamente o princípio da publicidade:

1.Open covenants of peace, openly arrived at, after which there shall be no private international understandings of any kind but diplomacy shall proceed always frankly and in the public view.

Mas os EUA, definitivamente, não seguem essa tradição presidencial. Preferem a via de Nixon.
O anexo secreto de À paz perpétua trata do... princípio da publicidade, que surge no livro como garantia do direito público.
Garantia? Pois as grandes potências (vejam que isto que Kant escreveu no final do século XVIII continua a servir hoje) agem de má-fé no cenário internacional e encobrem suas verdadeiras intenções de dominação.
Trata-se do que Kant chama de máximas sofísticas. Escrevi sobre isso também aqui:

As máximas que guiam a política de conquista das grandes potências, afirma Kant (1795, p. 236), são sofísticas (sophistische Maximen) e não podem ter publicidade, sob pena de rejeição: fac et escusa; si fecisti, nega; divide et impera. Um claro exemplo foi o da invasão econquista do Iraque pelos EUA: a potência interventora conquistou e somente depois se justificou (fac et escusa), pois apenas após o fait accompli a ONU aprovou resolução favorável à intervenção; os EUA negaram seus delitos de guerra e afirmaram que a verdadeira razão do conflito era a posse, pelo Iraque, de armas nunca encontradas (si fecisti, nega); finalmente,procederam ao loteamento do Estado conquistado (divide et impera). Todo o tempo, deve-se lembrar, tais máximas foram negadas pelo governo estadunidense, por não resistirem ao exame na esfera pública.


Máxima é o princípio subjetivo da ação. Os documentos revelados por Assange e companhia desmascaram essas máximas. A hipocrisia continua na forma de perseguição que Assange vem sofrendo: oficialmente, trata-se de crimes sexuais. Mas qual é o verdadeiro fim dessa ação? Amazon, Visa e outros instrumentos do imperialismo estadunidense estão imbuídas apenas da dimensão sexual do puritanismo fundador daquele país?
A perseguição global faz também recordar outra advertência de Kant em À paz perpétua: não deve existir um Estado mundial, pois ele geraria uma tirania em toda a Terra.
Trata-se de uma afirmação muito mais sensata do que o pensamento de que a guerra decorria da pluralidade de Estados - o Estado único traria o fim das disputas interestatais. Para quem se pediria asilo no Estado global?
Mesmo sem esse Estado, as garras globais da tirania estão presentes: é de pasmar que somente Lula, dentro dos poucos dias de mandato que lhe restam, tenha sido o único chefe de Estado que realmente manifestou-se a favor deste novo prisioneiro político estadunidense.
É de notar-se também que a imprensa tem traído sistematicamente a esfera pública. O comportamento de vários meios de comunicação e dos lacaios que neles trabalham não surpreende a nós brasileiros: ainda são muito vívidos episódios lamentáveis da recente campanha eleitoral no Brasil, como divulgação de fichas falsas, bolinhas de papel de destruição em massa etc. Já sabemos que o princípio dessa imprensa não é a liberdade de expressão, mas a censura.
Esse princípio que anima os negócios da comunicação verifica-se também na capital dos negócios, os EUA: o Iraque mostrou ao mundo como a imprensa estadunidense bate continência ao governo quando assim é ordenado. Por que não? Ela também segue a lógica do capital.
Lógicas e práticas novas, disso precisamos, globalmente. As reações de resistência contra o ataque a Wikileaks parecem vir desse tipo de criatividade - tanto da ação dos Anônimos quanto a de tradicionais jornais de esquerda, como o Libération, que também está a hospedar os documentos secretos. Nasce uma nova forma de cosmopolitismo, que deveria ser pensado a partir da publicidade, e não da hospitalidade (como queria, a meu ver erronamente, Derrida)?

domingo, 28 de novembro de 2010

Justiça de transição: os casos da Argentina e do Brasil


Em setembro, apresentei um trabalho no Congresso Internacional 200 Años de Iberoamérica na Universidade de Santiago de Compostela. Estive em mesa dedicada à justiça de transição, que foi muito bem coordenada pelos historiadores uruguaios Silvia Dutrénit Bielous e Enrique Coraza de los Santos.
O trabalho,"Ditadura Militar na América Latina e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos: (In)justiça de transição no Brasil e na Argentina", como publicado, não representa o estágio atual da pesquisa. Antes dele, eu havia publicado um texto mais curto, e teoricamente um tanto diverno, no Sopro: "Nem justiça nem transição: a lei brasileira de anistia e o Supremo Tribunal Federal". Todavia, aponta para o que estou trabalhando hoje e refere-se a documentos do DEOPS/SP com que outros pesquisadores ainda não trabalharam. Eis o resumo:
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos, por meio tanto
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos quanto da
Corte, apresenta, desde a década de noventa, significativas
decisões sobre o legado autoritário das ditaduras militares
na América Latina das décadas de 1970 e 1980, e sobre a
responsabilidade do Estado e dos agentes públicos a respeito dos
crimes contra os direitos humanos cometidos por esses regimes
políticos autoritários. As decisões da Comissão e da Corte
Interamericana de Direitos Humanos tiveram importante papel
na Argentina para o estabelecimento da justiça de transição.
No entanto, no Brasil, não só não houve responsabilização
pelos crimes da ditadura, como há uma resistência, tanto do
Poder Executivo quanto do Judiciário, contra a fiscalização
internacional nessa matéria. O trabalho tem por objetivo fazer
um estudo comparativo entre os casos do Brasil e da Argentina
no tocante às decisões do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos em matéria de justiça de transição e sua eficácia no
plano interno.

A jurisprudência da Suprema Corte argentina diverge radicalmente do Supremo Tribunal Federal brasileiro no uso das fontes do Direito Internacional dos Direitos Humanos: no Brasil, elas foram ignoradas e a lei de anistia aprovada no governo do General Figueiredo foi mantida.
A dimensão comparativa não está completa, no entanto, tanto no aspecto do tratamento das fontes quanto no contexto histórico-político. No dia da apresentação, acabei dando mais ênfase ao caso brasileiro (o que também ocorre no texto), apesar de ter avançado na comparação, pois havia muitos argentinos na plateia e nenhum pesquisador brasileiro do tema estava nessa mesa. As curiosidades estavam voltadas para o caso do Brasil, que é mal conhecido na Espanha.
Pude confirmar, no Congresso, que os pesquisadores espanhóis, em regra, evitam o Brasil quando se dedicam à América Latina. Uma das razões, claro, é o idioma. A exceção era Elena Martínez Barahona, professora de Ciência Política da Universidade de Salamanca, que apresentou trabalho (escrito com Sebastián Linares Lejarraga) sobre justiça de transição, impunidade e violência em El Salvador e no Brasil (ela deixou o caso brasileiro para minha análise, no entanto).
Constatei também que não havia nenhum português nas mesas que frequentei do Congresso, o que era curioso, tendo em vista a proximidade da Galícia (tanto geográfica quanto linguística) das terras lusitanas.
O texto que escrevi pode ser lido nesta ligação:
http://halshs.archives-ouvertes.fr/docs/00/53/12/73/PDF/AT12_Fernandes.pdf
Uma nota: Tirei a foto acima em julho de 2010, na Praça de Maio em Buenos Aires. Trata-se de acampamento de veteranos da Guerra das Malvinas - também eles não querem ser esquecidos.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Miguel Reale e a democracia social na visão de Médici

Miguel Reale, se vivo fora, teria feito cem anos. Não sou um especialista em nada, muito menos em integralismo, por isso não pude escrever sobre o pensamento desse grande jurista brasileiro nos anos 1930 e 1940.
Outros também não puderam fazê-lo. Enviaram-me notícia de evento universitário a propósito da efeméride: julgaram relevante tratar dele como pai - Sérgio Buarque de Holanda teria adorado ver isso - mas não acharam ninguém para tratar da contribuição de Reale para o integralismo, tampouco para a ditadura militar (tempo em que o jurista e professor do Largo de São Francisco chegou a ser reitor da USP).
Sei, no entanto, que aqueles anos de formação foram determinantes para o Reale maduro: em 1969, na paródia de constituinte encenada às portas fechadas (esfera pública versão burocrático-militar) por Costa e Silva (que desejava substituir a Carta de 1967) com Pedro Aleixo, Gama e Silva e outros "notáveis", Reale propôs a criação da representação corporativa, típica do fascismo. Costa e Silva não aceitou, achando que a proposta era ousada demais.
Aludi a esse episódio no Sopro número 9: http://culturaebarbarie.org/sopro/n9.pdf
Sobre Reale, escrevi há uns anos este pequeno artigo, "A cultura jurídica brasileira e a chibata: Miguel Reale e a história como fonte do Direito": http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=93400515 ou http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/article/view/613
Nele, podem-se ler coisas mais ou menos conhecidas e bastante silenciadas, como alguns dos ataques de Pontes de Miranda à democracia, os elogios de Levi Carneiro a Hitler, e a caracterização que Reale fez de Médici como o criador/pensador da "democracia social" no Brasil.
Refiro-me aos ataques que o grande jurista fez à soberania popular e à possibilidade de instauração de uma assembleia constituinte no Brasil em dois momentos, nos anos 1960, no início da ditadura militar, e nos anos 1980, crepúsculo da ditadura (mas não do poder militar no Brasil, como Jorge Zaverucha bem analisa).
É inolvidável ler a análise realiana de que Médici teria feito o Brasil superar as liberdades dos EUA e os direitos sociais da URSS. Cito a original análise jurídico-política no artigo.
A identidade de pensamento do jurista com o general-estadista-pensador é tamanha que passou um pequeno erro na revisão, e acho que ninguém o notou até hoje: na página 246, a última citação é de Médici, não de Reale. São indiscerníveis em sua análise da democracia.

sábado, 20 de novembro de 2010

Consciência negra, João Cândido e algo como um poema

Neste dia da consciência negra, feriado em algumas partes do país (como no Rio de Janeiro, que foi a primeira ou uma das primeiras cidades a instituí-lo, apesar da oposição do então prefeito Cesar Maia), passei a manhã em um congresso nacional de iniciação científica organizado pelas instituições de ensino superior particulares. Fui acompanhar um bravo orientando, que escreveu este trabalho comigo e foi apresentar um pôster a partir da pesquisa que desenvolvemos sobre a incomunicabilidade dos presos políticos durante a ditadura militar.
Esperava que na instituição houvesse menção ao dia da consciência negra, já que os trabalhos ocorriam em um feriado, mas nada vi a respeito. Resolvi, então, escrever.
Em Cinco lugares da fúria, publiquei um poeminha que é uma espécie de rápida história do Brasil vista pelo prisma da tortura. De fato, estamos em um país socialmente tão autoritário que a democracia política não mudou esse quadro - pelo contrário, tortura-se mais hoje do que na ditadura militar. E os negros estão entre as vítimas preferenciais das forças de segurança, públicas e privadas.
No poema, menciono (seria mesmo necessário fazê-lo) a Revolta da Chibata. Ela continua a perturbar a Marinha brasileira, cuja alma ainda parece nostálgica dos mares oitocentistas.
Nele, tentei homenagear um dos maiores nomes de nossas Forças Armadas, João Cândido, o Almirante Negro cantado por Aldir Blanc e João Bosco (a censura da ditadura militar, porém, impôs a alcunha "navegante negro" no belo samba O mestre-sala dos mares). Vejam Elis Regina cantando a letra original.
Creio que a grandeza não se deve medir pelo número de medalhas ou por titulação e cargos, mas pelo que se fez em prol da dignidade humana. Nesse campo, quantos podem igualar João Cândido, que teve que pagar um preço tão alto por tentar fazer com que a Lei Áurea adentrasse os recintos militares do início do século XX?
Certo poeta carioca afirmou que este poeminha é horrível. De fato, tentei que fosse ao menos terrível.
A pobreza dos recursos deste blogue ou dos recursos mentais deste blogueiro impede que a quebra dos versos longos esteja correta (a estrofação está correta, ao contrário do que ocorre no livro - o editor acabou mudando-a inadvertidamente). Mas o que escrevi é praticamente isto:



NATUREZA-MORTA E RETRATOS CÍVICOS



Ele pintou dois ovos cozidos.
Com isso, representou toda a riqueza de nosso tempo.

Ele fotografou dois ovos cozidos;
eram os olhos do rapaz
com a língua de fora e
sob muitos calçados
alheios.
Com isso, reproduziu as virtudes heroicas de nosso tempo.

Ele xerocou a imagem de dois ovos cozidos;
eram os olhos do rapaz,
um deles frito
para alimento de ninguém,
ou seja, para a justiça, que ordena, acertai na nuca os cem e dez e um covardes ajoelhados, amarrados, ou desacordados, mas antes
deixai que os seus sexos copulem pela última vez com a boca agora humana dos cães;
a hora da água sanitária
fará esquecer os líquidos anteriores,
e, para os eleitores, a taça de tudo
saberá a vinho.

Com isso, imitou o agronegócio de seu tempo.

Ele colou na parede propaganda de ovos recortada de jornais.
O rapaz não os leu,
e não sabia daquele navegante em mar imenso, que,
após duzentos e cinquenta chibatadas dos oficiais
(o prêmio incontável da liberdade),
foi anistiado pelas armas da república, isto é, jogado à cela com a multidão
e, sem comida ou água, mas coberto da cal, branca como os oficiais,
sobreviveu por ingratidão contra a cal,
enquanto os companheiros fuzilados
eram lançados para enterro na boca então humana dos tubarões;
expulso do mar por homens secos,
restando-lhe das ondas carregar no cais cestos com peixes alheios,
não recebeu o prêmio
de não ter descendentes,
nem mesmo
este rapaz, analfabeto por estudar há seis anos na escola estadual Cisne Empalhado, onde negros singram os mares verdes nas poças junto ao limo das paredes. Ele
não lerá isto.
Cumprida a derrota, cumprida a missão.
Com isso, resumiu todo o direito constitucional de nosso tempo.

(Eles andam nus como o ovo após a casca.
Não estimam de cobrir sua vergonha. Não lavram nem criam. A estrela que está por cima de toda Cruz é pequena. Entre uma rede e outra, fazem fogueiras.
Acerca das estrelas, tenho trabalhado tudo o que posso, apesar de uma perna que tenho muito mal, com uma chaga tão grande que parece humana. Mando-lhe como estão situadas as estrelas. Mas o grau ninguém pode saber, que de uma coçadura me fez uma chaga maior do que a minha mão.
Estão nus, não têm fé, lei ou rei. Precisamos quebrar a casca deles. Quando os ferirmos, terão a lei em seu corpo.
A nau se perdeu sem vento forte nem contrário para que tal acontecesse. Séculos depois, ainda somos filhos da deriva.
Com isso, nas Bienais a casca do ovo supera a vanguarda de nosso tempo.)

Ele pegou os dois, esmagou-os na mão, jogou-os na tela;
eram os ovos do rapaz retirados à hemorragia.
O rapaz ainda pôde reconhecer
a imagem que se formava: a bandeira nacional;
a mancha, porém, não era amarela, mas tinha algo do branco e algo do vermelho, porém mais de algo indefinido
e, porque ela não correspondia às cores nacionais,
foi executado em defesa da pátria.

domingo, 14 de novembro de 2010

Antigo Regime e magistratura no Brasil, parte IV: O STF e a ditadura militar

Na edição de novembro de 2010 da Revista Piauí, pode-se ler carta do Ministro do Supremo Tribunal Federal, professor e sócio-cotista do Instituto Brasiliense de Direito Público, ex-Advogado-Geral da União, Gilmar Ferreira Mendes.
Piauí havia publicado duas longas reportagens, muito boas, em agosto e setembro do mesmo ano: Data venia, o Supremo e O Supremo, quosque tandem, matérias de Luiz Maklouf Carvalho. Por algum motivo, que não me ficou claro na carta, o magistrado afirma que o jornalista incorreu em "inconsequente desonestidade", "fraude pura e simples", e que a revista publica "matérias nefastas". No entanto, parecem exemplos de bom jornalismo aos leitores incautos como eu.
É possível que se trata de um lapso de leitura do magistrado: um sinal disso é chamar a Piauí de "revista literária", o que ela nunca foi, apesar de contar com uma que outra matéria de literatura em cada edição.
Em mais recente momento de desentendimento do magistrado com a imprensa (logo virá mais um, com a edição desta semana de Carta Capital), o jornalista Elio Gaspari, em 3 de novembro de 2010, questionou em sua coluna (publicada em vários jornais do país) a elegância de Gilmar Mendes com os colegas e com o Congresso Nacional durante os debates sobre a constitucionalidade da lei Ficha Limpa.
Buscando provar que Gaspari estava errado nessas acusações e em escrever que Gilmar Mendes queria voltar ao proscênio, o magistrado publicou na Folha de S. Paulo, em 14 de novembro, "Gaspari, a ditadura e a Suprema Corte", acusando o jornalista de "teimosia, despreparo e indulgência"; além disso, Gaspari seria "admirador da ditadura e macaqueador dos americanos". Dessa forma, ele não seria capaz de apreciar as conquistas do STF e do Conselho Nacional de Justiça.
No entanto, o magistrado comete uma impropriedade histórica ao comparar o atual STF com o antigo, "O mesmo e velho Supremo" que teria dado habeas corpus contra os dissidentes políticos perseguidos pela ditadura militar.
Achamos pertinente que ele aponte o continuísmo no STF. O diagnóstico poderia ser estendido ao conjunto do Judiciário brasileiro: entre os que apontaram esse fato, está agora Frederico de Almeida, com sua tese de doutorado A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil, orientada por Maria Tereza Aina Sadek, professora da Ciência Política da USP. O trabalho, que parte teoricamente de Bourdieu e do conceito de campo jurídico, pode ser lido aqui: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-08102010-143600/pt-br.php
A seção em que analisa a cultura da homenagem, no direito brasileiro, é brilhante; segue "Trajetórias ocultas e imagens construídas", que poderia ser infinita, mas o autor contenta-se com alguns exemplos marcantes. Os dados sobre o ensino jurídico e as elites são impressionantes: há claramente uma "hierarquia dos diplomas" e uma "produção escolar da nobreza togada".
Não vou comentar sobre a tese aqui (estou acabando de lê-la), mas deve-se logo dizer que se trata de um trabalho importante, e que se entende que tenha sido produzido na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP) e não no Largo de São Francisco.
O trabalho aponta essa continuidade nas elites jurídicas. Entendida nesse sentido, a afirmação do Ministro do STF parece-me irretocável. O problema está na mencionada concessão de habeas corpus. Sob esse aspecto, há uma grande diferença entre a Corte antes e depois do Ato Institucional n. 5, que possibilitou que ela fosse ceifada de Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, bem como de Antônio Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada, que se aposentaram voluntariamente.
O livro de Osvaldo Trigueiro do Vale, O Supremo Tribunal Federal e a instabilidade político-institucional (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976) mantém interesse na análise desse momento, principalmente pelos depoimentos que colheu dos juristas envolvidos. Em pleno governo Geisel, pôde escrever sobre os efeitos do AI-5 e do regime:

No momento o Brasil vive o papel de nação subdesenvolvida e o amontoado de leis inconstitucionais atestam que não descobrimos o caminho da estabilidade político-social e econômica.
Nesse quadro, mais de cinco anos depois de modificada a Constituição de 1967, ficaram reduzidas ainda mais as chances de um desempenho mais firme e deliberante do Supremo Tribunal Federal. [p. 152]

O próprio Ministro Gilmar Mendes reconheceu a gravidade da intervenção da ditadura militar sobre o STF: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=101553&tip=UN
O AI-5 suspendeu o habeas corpus para os crimes políticos; além disso, serviu para moldar um Judiciário subserviente. Sobre isso, escrevi um pouco na minha própria tese de doutorado, A produção legal da ilegalidade: os direitos humanos e a cultura jurídica brasileira.
Um dos casos que estudei foi um exemplo prático de submissão jurisprudencial da Constituição ao decreto-lei, que é uma norma típica das ditaduras no Brasil. No caso, o decreto-lei de Vargas que aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O STF, na representação de inconstitucionalidade n° 803, na prática julgou-o acima da Constituição para atacar a Convenção n°110 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que previa a liberdade sindical, prevista na Carta de 1969 então vigente, mas cerceada pela CLT.
Na minha tese, entendi esse caso, julgado em 1977 (e exemplar da Corte pós-AI-5), como um dos momentos típicos da jurisprudência do STF contrária ao Direito Internacional dos Direitos Humanos; um caso de construção legal da ilegalidade.
Nesse aspecto, o atual Supremo Tribunal Federal continua uma tradição. Lembro agora da questão da possibilidade de responsabilizar os agentes do terror de Estado na época da ditadura militar.
A questão chegou ao STF com o julgamento da ADPF 153, relativa à lei de anistia de 1979. Também nessa decisão, o Direito Internacional dos Direitos Humanos não foi aplicado, e, como argumentei no Sopro 30, tampouco a Constituição de 1988 foi garantida, uma vez que emenda constitucional à Carta anterior, da ditadura, foi considerada um "limite material" para a eficácia da Constituição democrática. Dessa forma, a transição democrática foi negada, em termos jurídicos, pelo STF:


A noção de justiça de transição diz respeito aos procedimentos que têm como fim a apuração e sanção dos abusos contra os direitos humanos ocorridos em um regime político passado. Suas formas são diversas, como já reconheceu a ONU.[15] No Brasil, no entanto, não se pode falar que ela tem realmente ocorrido, apesar das indenizações pagas a perseguidos políticos e a seus familiares (o que seria a “dimensão reparatória” da justiça de transição[16]). A simples reparação não basta para prevenir novas violações de direitos humanos, e a justiça de transição, embora lide com o passado, o faz para preparar o futuro: uma sociedade com respeito à dignidade humana.
A posição do STF, de que a emenda da Constituição da ditadura militar é superior à Constituição da democracia, significa, politicamente, que não houve justiça de transição porque a transição jamais aconteceu: as normas superiores continuam a ser, segundo o Supremo Tribunal Federal, aquelas emanadas pelo velho poder autoritário oriundo do golpe de 1964.

Juridicamente, esse combate contínuo à liberdade dá-se pela produção legal da ilegalidade no campo dos direitos humanos. Nessa relação cínica com a eficácia das leis, no "constitucionalismo vigiado" (expressão usada por Victor Nunes Leal), temos certamente fatores de estabilidade das instituições brasileiras.
Felizmente, continuam existindo pontos de abertura na imprensa e na academia (a tese de Frederico de Almeida é um exemplo) que mostram a possibilidade do questionamento dessa estabilidade e, talvez, de sua necessária mudança.

sábado, 13 de novembro de 2010

Algo como um poema: Schmittität, Bestialität

Poderia introduzir o poema, porém prefiro calar-me. Foi publicado praticamente assim no número 4 da Cacto (São Paulo, jul./dez. 2004), revista de poesia que era editada pelos escritores Eduardo Sterzi e Tarso de Melo.


Schmittität, Bestialität



é soberano quem decreta o genocídio.
nada mais simples do que isto:
quando ele fala soberano,
diz genocídio.

é genocídio quem decreta o soberano.
nenhum prejuízo, nenhum dano:
quando ele cala genocídio,
diz soberano.

e quem não fala soberano ou genocídio?
por que estaria vivo?
se soberano
não fala, cala-o o genocídio.

porém alguém vive? senão o soberano?
nenhum vivente, mas falamos
do genocídio
a imitar a luz passeando pelos crânios

e nesse dia, aceso pelo genocídio,
nos atravessa o aziago brilho
do soberano
que aos ossos chama de seus filhos.

é soberano quem decreta o soberano?
é genocida o genocídio?
porém os ossos sob os gritos
rugem: cresçamos

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Antigo Regime e magistratura no Brasil, parte III: Exoneração e República

No Brasil, juízes, depois de adquirida a vitaliciedade (o que ocorre após dois anos), não podem ser desligados da magistratura, mesmo em caso de crime, segundo o entendimento predominante do que prevê a Constituição.
Ideli Salvatti, quando Senadora, apresentou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 89/2003 para mudar esse quadro, referindo-se também aos membros do Ministério Público. Já escrevi sobre ele aqui. No artigo 3º da PEC, encontramos o cuidado de que as novas regras não se apliquem aos magistrados e membros do Ministério Público já vitalícios na época de sua promulgação.
A PEC foi aprovada no Senado Federal em 15 de julho de 2010. Seguiu para a Câmara dos Deputados, onde recebeu o número 505/2010: http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=483905
O presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o Deputado Federal Eliseu Padilha, elaborou parecer, em 10 de outubro de 2010, que opina pela inconstitucionalidade da PEC. Ele ainda será votado na Comissão.
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) declarou que sua influência foi determinante para o posicionamento de Padilha, e eu tenho certeza disso: http://www.amb.com.br/?secao=mostranoticia&mat_id=21649
O momento forte da argumentação do parecer reproduz a visão da AMB:

[...] a proposta em exame fere limite material implícito imposto ao poder reformador pelo constituinte originário, pois embora não haja menção expressa à vitaliciedade da magistratura como tal, a mesma decorre do sistema adotado pela Constituição, em que deu-se ao Poder Judiciário a necessária independência para o julgamento das lides que lhe são trazidas. Essa independência do magistrado é garantida exatamente pelos princípios da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio (art. 95, I a III – CF).


A Constituição prevê, como limites materiais às emendas constitucionais, ou seja, como previsões que não podem ser alteradas, a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Estes, significativamente, não são mencionados pelo relator: "A proposta de emenda sob exame não é tendente a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, nem a separação dos Poderes."
A exoneração de, por exemplo, magistrados corruptos ameaça a República, como pretende o Deputado – ou ameaça esta República? A pergunta merece ser posta.
Se a resposta é afirmativa, vê-se que malogra um dos direitos fundamentais que a Constituição deseja proteger, e que o parecer esqueceu de mencionar: a igualdade dos cidadãos perante a lei. Se os magistrados não fossem "mais iguais", poderiam ser exonerados a bem do serviço público quando dele se servissem para seus interesses pessoais, e não para os da coisa pública.
Por conseguinte, a ideia de república presente no parecer está esvaziada da moral republicana, que a PEC de Salvatti queria estabelecer.
É interessante comparar esse trâmite legislativo com o que ocorreu recentemente na França. A lei orgânica da magistratura francesa previa, além da aposentadoria compulsória, a exoneração (révocation) do magistrado, com ou sem direito à pensão (a prestação previdenciária), no parágrafo 7º do artigo 45.
Essa lei foi modificada em 22 de julho de 2010, e a expressão "avec ou sans suspension des droits à pension" (com ou sem suspensão dos direitos à pensão) foi suprimida.
O debate no Senado foi ilustrativo: o governo Sarkozy queria manter a possibilidade de suspensão dos direitos previdenciários, que raramente foi aplicada. Os Senadores foram contrários. Nicole Borvo Cohen-Seat argumentou que se tratava de pena desproporcional: se o funcionário público contribuiu para sua aposentadoria, ela não lhe deveria ser tirada. Jean-Pierre Sueur alegou que tal sanção violaria a Convenção Europeia de Direitos Humanos, segundo o entendimento que o Conselho de Estado francês já havia exposto a respeito dos outros funcionários públicos. Nem mesmo para os criminosos comuns havia essa possibilidade de perda da aposentadoria!
No entanto, a pena de exoneração foi mantida. Não havia dúvida nenhuma a respeito, a França continua a ser uma república. O que, portanto, a AMB quer evitar no Brasil?

domingo, 7 de novembro de 2010

Políticas da amnésia, amnésia da política

Os presidentes titular e substituto da Comissão de Altos Estudos do Memórias Reveladas (http://www.an.gov.br/mr/Seguranca/Principal.asp) demitiram-se na semana que acaba. Se algo foi revelado com isso, é que há uma pesada interdição sobre os pretendidos estudos.
Carlos Fico, o substituto, foi o primeiro a deixar o cargo. A carta com as razões para sua atitude pode ser lida aqui:

http://oglobo.globo.com/pais/arquivos/pais_carta.pdf

No dia seguinte, fez o mesmo Jessie Jane Vieira de Sousa, ex-presa política e, como Fico, professora da UFRJ:

http://www.torturanuncamais-rj.org.br/Noticias.asp?Codnoticia=281


A historiadora acusa a cultura de segredo existente no Poder Público. Creio que ela está correta. O Arquivo Nacional não segue a política defendida por nós, pesquisadores, e seguida pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo: a abertura da consulta aos documentos com a assinatura de um termo de compromisso do consulente.
É irônico que a candidatura de uma ex-militante da esquerda clandestina contra a ditadura militar seja invocada para a interdição da memória. Mais irônico, o fato de a própria candidata ter lançado o Memórias Reveladas quando era titular da Casa Civil em 2009.
De fato, o passado da ditadura militar poderia ter gerado um debate importante da eleição de 2010, pelo menos desde que um jornal de São Paulo decidiu divulgar ficha pretensamente oriunda do DOPS da então candidata do PT à presidência (e com isso curiosamente ajudou a campanha oposicionista). Essa ficha foi reproduzida em mensagens pela internet; eu mesmo a recebi e a contestei duas vezes.
Nenhum debate real ocorreu, no entanto. A ficha era falsa, mas o jornal não se incomodou muito com isso, tampouco o candidato do PSDB. Embora também ele tivesse sido perseguido no período, não se interessou em denunciar a manipulação da história. Ao menos nesse aspecto, sua campanha traiu o próprio passado do candidato e - pior - o do país.
E os documentos verdadeiros? É claro que o fato de o documento ser verdadeiro não significa que ele encerre a verdade histórica. Os documentos produzidos pela polícia política representam a visão da repressão, que não deixará de apresentar seus preconceitos e falsidades. É preciso, pois, desmistificar o que esses documentos apresentam.
Essa tarefa é impossibilitada se os documentos continuam trancados em cofres que só prometem riquezas para o esquecimento. A interdição do acesso aos documentos bem mostra o que resta da ditadura. Haveria base jurídica para isso, no direito aparentemente democrático do Brasil de hoje? Nesta ligação, pode-se ver a matéria do jornal O Globo, em que se aponta o argumento mais ou menos legal do Arquivo Nacional:

http://oglobo.globo.com/pais/eleicoes2010/mat/2010/11/03/historiador-se-demite-em-protesto-contra-sigilo-de-acervos-da-ditadura-no-periodo-eleitoral-922934844.asp

Direito à memória versus direito à intimidade? Está na moda, entre constitucionalistas, falar de balanceamento de direitos - o que não é feito no caso: com a interdição dos arquivos, simplesmente o direito à memória não é aplicado nunca.
Lembro-me do famoso "O que é uma nação?", de Ernest Renan (1823-1892). Nele, defende-se o apagamento de fatos "violentos" da história em prol da unidade da nação.

O esquecimento, e eu diria mesmo o erro histórico, é um fator essencial da criação de uma nação, e é assim que o progresso dos estudos históricos é frequentemente para a nação um perigo. A pesquisa histórica, com efeito, traz de novo à luz fatos violentos que se passaram na origem de todas as formações políticas [...]

Renan é coerente e defende, no mesmo texto, algo que Nietzsche chamaria de uma história monumental: uma nação deve basear-se em fatos heroicos de grandes homens. Dessa forma, a perspectiva crítica é anulada, e a glorificação do passado é instrumento para construir um consenso positivo em torno do poder presente.
Esquecer os fatos violentos? A violência, no caso, está no próprio esquecimento, ou melhor, continua no esquecimento, que só pode engendrar a negação da história e da política.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Por Lobato, direito à literatura e a educação dos educadores

Reli hoje A chave do tamanho e Reforma da natureza, livros da obra para crianças de Monteiro Lobato. O primeiro é bem melhor, com sua ficção científica de quase extermínio da humanidade inspirada pela guerra mundial que grassava.
Os dois livros marcam-se pelo cientificismo, que caracterizava a missão civilizatória que Lobato criou para si no Brasil. A postura antiplatônica e empirista de Emília, a boneca humana, é flagrante.
Em A chave do tamanho, Emília quer acabar com a guerra mundial manipulando a chave da guerra. Porém as chaves que controlavam o mundo não tinham legenda e ela, ao resolver testar uma por uma, fica reduzida a um centímetro de altura logo após mexer na primeira. Havia descoberto a chave do tamanho dos humanos (os outros seres vivos nada sofreram) e tinha ficado pequena demais para desfazer o estrago.
Milhões morreram por causa desse experimento de Emília, alguns sufocados pelas próprias roupas, outros de frio, outros em acidentes (todos os aviões em voo caíram, por exemplo).
Morreram também aqueles que não percebiam que as ideias vêm da experiência e teimavam em manter o mesmo pensamento apesar da mudança no mundo. Por exemplo, o Major, a esposa e a cozinheira, presos à antiga "ideia-de-gato", foram devorados por seu gato Manchinha, que não reconheceu os donos em formato reduzido. Emília tentou ensinar-lhe as virtudes do empirismo, mas o Major, retrato militar dos que têm preconceitos contra os intelectuais, manteve-se irredutível, acreditando que a mansidão da antiga ideia-de-gato seria confirmada agora que os humanos pareciam com ratinhos.
Mais ciência: é um antropólogo, Dr. Barnes (nos EUA, que Lobato admirava), que consegue liderar uma comunidade em Pail City adaptada às novas condições da humanidade, agora devotada à carne seca de minhoca.
O livro faz pensar. Mas por que escrevo "por Lobato"? Não por razões nostálgicas, apesar de tê-lo lido abundantemente na infância, período em que devorei até parte da obra adulta (inclusive O presidente negro, que tanta gente não leu até hoje). Faço-o em virtude do presente, que trouxe, mesmo aos EUA, a onda do politicamente correto. Uma onda que pode restringir o direito à literatura, se logra proibir grandes obras.
Um parecer do Conselho Nacional de Educação, ainda não homologado, de que foi relatora a professora e pedagoga Nilma Lino Gomes, sugere que Caçadas de Pedrinho não deva ser selecionado para o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola), ou que receba uma nota de advertência a respeito dos estereótipos raciais.
O procedimento iniciou-se com a denúncia de Antônio Gomes Costa Neto à Ouvidoria da Secretaria de Promoção de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Ele desejava evitar o uso de livros e material didático que promovessem o racismo. Embora o seu pedido se restringisse ao âmbito do Distrito Federal, a questão foi levada ao MEC e ao CNE pela Secretaria.
Não acho a nota necessária: ter lido quase todo Lobato não me fez uma criança racista (isso seria possível, pois há mestiços racistas). Não vejo como os trechos sobre a Nastácia podem propiciar uma educação para o racismo - talvez os próprios adultos estejam querendo projetar sua sensibilidade aqui.
Pode-se dizer que a literatura de Lobato é racista? A questão não é simples, mesmo com os estereótipos raciais, que bem expressam a época tratada (já imagino que logo censurarão Castro Alves por retratar mal a África em Vozes d'África). Lobato transcende-os. Lembro agora da famosa história da violeta branca que fere de morte todas as pretensões de um "orgulho branco".
Pode-se lembrar também da Reforma da natureza, que começa com os líderes europeus, meros repesentantes de povos, chamar os representantes da humanidade para chegar a um acordo da paz. Alguém precisaria falar em nome do universal, acima dos particularismos nacionais, pois o universal é a voz da paz (um momento kantiano de Lobato). Quem são os escolhidos para esse papel? Dona Benta e Nastácia: ginecocracia multirracial cosmopolita! Duas senhoras, uma branca e outra negra, é que promovem a paz da humanidade - e ainda deixam quietinhos Hitler e Mussolini. Nada menos do que isso...
Se alguém acha que Lobato menosprezava as mulheres negras, leia a obra!
Eis o parecer do CNE:

http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=6702&Itemid=

Denise Bottmann discute-o aqui: http://naogostodeplagio.blogspot.com/2010/11/breique-do-breique-urgente.html

Só não se discutiu o fato de o parecer não ser exatamente bem escrito; como exemplo de frase engraçada, podemos ler: "Portanto, as ponderações feitas pelo Sr. Antônio Gomes da Costa Neto, conquanto cidadão e pesquisador das relações raciais, devem ser consideradas." Imagino que a professora relatora não pense exatamente que ser cidadão e pesquisador sejam condições que o desqualifiquem. É mais provável que ela, na condição de bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq e professora universitária com pós-doutorado pela Universidade de Coimbra, ignore o significado de conquanto, que é "embora". Quem educa os educadores?
Como o PNBE vai possibilitar o contato com a literatura de muitas crianças que não têm bibilioteca em casa, nem mesmo pais alfabetizados, a escolha das obras é uma questão de prioridade nacional. Merece, por conseguinte, receber melhor reflexão.

Ler a obra! Tarefa também dos professores: aqueles que não leem podem impedir os alunos de entrarem em contato com obras significativas. De fato, a tarefa, às vezes, não é cumprida nem mesmo por quem analisa a obra em questão. Lembro de um exposição de trabalho de um mestrando (não lembro se já era professor) que queria estudar os direitos dos animais na obra de Monteiro Lobato; no entanto, ele via a questão simplesmente no fato de os animais falarem na obra do autor.
O equívoco era manifesto: desde a Antiguidade, encontramos uma literatura que antropomorfiza os animais e faz com que eles falem. Isso não significa biocentrismo nem direito dos animais. Perguntei que obras eram analisadas, mas o pesquisador não soube citar nenhuma e afirmou que se tratava da "obra no geral".
Todavia, a A reforma da natureza foi obviamente feita com propósitos antropocêntricos, Emília é a representante da humanidade (que, aqui, não representa o universal, mas o antropocentrismo...) No livro, os animais não humanos são chamados de anima vile e os humanos, anima nobile. Segue-se, pois, a tradição. Visconde de Sabugosa chega a pensar em criar bois do tamanho de montanhas para o abastecimento de carne!
Mas quem faz o pesquisador pesquisar?
Deve-se lembrar: se nós, educadores e pesquisadores, não nos educarmos nem pesquisarmos, quais serão as condições de efetividade do direito à literatura? Esse direito terá mesmo que se refugiar fora das instituições de ensino e dos ministérios e secretarias de educação e assumir-se como direito insurgente - e logo teremos movimentos do sem-literatura, perseguidos e criminalizados como o MST!

Adendo: Logo após ter escrito isto, Denise Bottmann incluiu este belo texto de Marisa Lajolo e a notícia de que o Ministro Fernando Haddad quer que o parecer seja revisto. De qualquer forma, não se deve deixar o caso morrer! A coisa ainda pode ser homologada, e não sabemos quem será o próximo Ministro da Educação.
http://naogostodeplagio.blogspot.com/2010/11/monteiro-lobato-e-o-parecer-do-cne.html

P.S. de setembro de 2012: A questão está no  Supremo Tribunal Federal, e eu gostaria de voltar a ela, se encontrar tempo. De qualquer forma, aconselho a leitura deste longo texto de Ana Maria Gonçalves, que trata do racismo de Lobato (ela afirma: "Lobato não era quem fizeram que era, e sua declaração de usar a literatura para fazer eugenia nunca deve ser esquecida."); ela não menciona os textos antirracistas do mesmo autor, mas sua argumentação convence-me de que os livros que ela analisa deveriam sair com notas: http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/09/10/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/

Eleições no Brasil e entreouvidos no Rio de Janeiro


No domingo do segundo turno da eleição presidencial, 31 de outubro de 2010, estava em pé em um ônibus indo para a Barra da Tijuca, onde iria votar. Várias pessoas, tomadas pelo clima eleitoral, falavam alto, talvez na esperança de conseguir alguns últimos adeptos.
Sei que vários escritores usam esse tipo de material linguístico. Meus amigos Eduardo Sterzi e Veronica Stigger fazem-no. Alberto Pucheu tem um poema feito de falas ouvidas em ônibus. Quanto a mim, detesto ouvir conversas alheias, mas é muito difícil evitar a indiscrição, principalmente nesta era do telefone celular, em que a evasão de intimidade virou um padrão normativo.
Uma moça de saia longa e com cabelos longos descoloridos, sentada ao lado do motorista, explicou que não tinha votado em Dilma Rousseff: "Ela disse que se ela ganhasse era uma prova que Deus não existia, e eu não gostei disso." e "No primeiro turno votei na Marina." Não entendi quem havia inventado essa besteira e contado para ela. Só ouvi depois que ela havia feito algo com o PSDB cinco anos, o que deve ter surtido algum efeito em suas faculdades cognitivas.
Na minha frente, uma jovem, de cabelo curto e jeans, ainda mais nova, falava ao celular: "Já votou, mãe? Serra, né? Deus te ilumine."
O projeto teocrático para o país tinha ganhado um fôlego com o engajamento de Ratzinger na semana final da campanha, em ligeiro desrespeito ao princípio da não intervenção previsto na Carta da ONU. O Vaticano não integra a ONU, mas esse princípio tem a natureza de direito internacional geral...
Mais atrás, uma senhora falava de um hospital público e do diretor que desviava equipamentos: "Rico honesto, pode até existir." Também se tratava de uma questão de fé.
Votei. Mais tarde, minha cunhada, que havia assistido a missa em uma igreja perto de um condomínio da Barra, contou que o padre, no fim do ofício, deu a notícia de que o PT havia ganho a eleição. Poderia haver dúvida: é de lembrar que, no sábado, Índio da Costa tuitou que pesquisas "internas" haviam dado empate técnico. Uma pessoa muito solitária aplaudiu, e o restante dos fiéis ficou consternado.
Eu estava em um bairro tucano. O mapa da votação no Rio mostra que Serra, no Município do Rio, só ganhou na Zona Sul, no Alto da Boa Vista (a região mais fria) e na região da Barra (em São Conrado, onde está a Rocinha, ele perdeu). Por sinal, a vantagem de Rousseff sobre Serra no Estado do Rio de Janeiro foi suficiente para anular a que ele teve no Estado de São Paulo, o que torna ainda mais ridículo o papo de certo comentarista da tevê/jornal/internet/rádio da Globo (que continua a gozar de seu oligopólio dos meios de comunicação) de que temos um país "dividido".
E se houvesse divisão, e o PT houvesse vencido por apenas cem mil votos, e não mais por mais de doze milhões? Problema nenhum, é a regra do jogo. Entende-se facilmente o inconformismo do comentarista de poucas luzes e muitos flashes: somente os democratas aceitam as divisões e a pluralidade.

domingo, 31 de outubro de 2010

Néstor Kirchner e duas mortes entre a memória e o terror


Eu estava em Florianópolis quando ocorreu a morte de duas pessoas que viveram em trincheiras opostas do direito à memória e à verdade: Romeu Tuma, antigo delegado-chefe do DOPS/SP, polícia política do Estado de São Paulo, e Néstor Kirchner, ex-presidente da Argentina, que dirigia, quando morreu, a Unasur.
Estava no Seminário Direito e Ditadura, muito bem organizado pelo PET de Direito da UFSC, onde tirei a foto acima (http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/10/evento-seminario-direito-e-ditadura-na.html).
No dia 27 de outubro de 2010, eu iria proferir uma palestra sobre direito e segurança nacional, a partir da análise de documentos do DEOPS/SP. Ao ser informado do acontecimento, incorporei à apresentação mais um documento, em que certo banco agradecia ao então delegado pela ação na repressão à greve, comunicando o comparecimento dos trabalhadores e sua jornada de trabalho. A questão social continuava sendo, como se dizia na República Velha, uma questão de polícia.
Ao lado, vê-se outro momento do cotidiano da repressão política no Brasil: receber correspondência da Anistia Internacional dirigida a presos políticos do Presídio Tiradentes. A fonte do documento é o Arquivo Público do Estado de São Paulo - APESP.
No dia 28, morreu Néstor Kirchner. Deve-se lembrar que ele impulsionou fortemente as políticas de memória (ao contrário de Menem, que as sabotou). Durante o seu governo as leis de anistia argentina foram revogadas, e ele propiciou as condições políticas para tanto, o que o distingue tremendamente do atual presidente brasileiro.
Para homenageá-lo, li no sarau do evento da UFSC, no mesmo dia, um poema de Julián Axat (sobre quem escrevi aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/07/o-poeta-e-jurista-julian-axat-nasceu-em.html), que imagina um pacto entre dois poetas assassinados pelo terror de Estado na Argentina, Francisco Urondo (1930-1976) e Miguel Ángel Bustos (1933-1976). O poema foi publicado em médium (poética belli) (Buenos Aires: Paradiso, 2006). Eis a minha tradução, que sairá, espero, em uma futura antologia:


pacto entre F. Urondo e M. A. Bustos (Pacto maior)



encontraram-se
e o pacto foi
que dessa noite
nesse impossível lugar
surgisse
o destino final da poesia

então
convocaram
os poetas caídos
os assassinados
os que ficaram cantando sozinhos
os que em alguma vez empunharam a palavra justa

todos se fizeram presentes
a brindar com suas armas-taças

para que nada seja em vão
para que o oco que separa

a nós deles
eles de nós

não possa ingressar
de novo nas palavras


O próprio Julián Axat, por sinal, homenageou Néstor Kirchner com um poema de Joaquín Areta, outro autor, assassinado pelo terror de Estado, que Axat vem recuperando na coleção Detectives Salvajes: http://coleccionlosdetectivessalvajes.blogspot.com/2010/10/lds-recuerdan-al-ex-presidente.html
Na postagem, pode-se verificar que o próprio Kirchner lê o poema no vídeo indicado.
Acabo de ver que Flávia Cera, uma das conferencistas do Seminário (com um ousado trabalho sobre as políticas do corpo e a Tropicália), escreveu também a respeito, referindo-se aos recentes julgamentos dos acusados de crimes contra a humanidade na Argentina: http://www.culturaebarbarie.org/mundoabrigo/2010/10/para-que-nao-se-esqueca-para-q.html.
Para que não se esqueça, é preciso travar a batalha pelo significado do que passou. Para tanto, a pesquisa histórica é fundamental, mas não basta: parte desse significado é jurídico, por isso os juristas e políticos que advogam a impunidade fazem um desserviço para a questão.

sábado, 30 de outubro de 2010

Eleições no Brasil: Imprensa e censura, Maria Rita Kehl

Sugeri a colegas professores que, em prova de Lógica, usassem duas frases de Dilma Rousseff que o semanário Veja estampou na capa de um dos números de outubro de 2010: "Acho que tem de haver a descriminalização do aborto. Acho um absurdo que não haja." e "Eu pessoalmente sou contra. Não acredito que haja uma mulher que não considere o aborto uma violência."
O aluno que encontrasse contradição entre as declarações mereceria uma nota baixa. É evidentemente possível ser pessoalmente contra algo que se queira descriminalizar. Não acho que adultério deva ser crime, porém não pretendo cometê-lo nem quero que o façam comigo.
É difícil entender isso? Difícil é fazer com que isso não se entenda, mas a esse nefasto ofício (uma forma de privatização da esfera pública) se dedicam veículos impressos como esse.
A aposta na irracionalidade por essa imprensa no Brasil explica que a inteligência tenha de ser demitida, como foi o caso de Maria Rita Kehl no Estado de S. Paulo.
Conheço pessoalmente a escritora e psicanalista. Sua trajetória na imprensa começa no fim dos anos 1970, quando, muito nova, militou na imprensa alternativa. Em minha pesquisa nos documentos do DEOPS/SP, vi como ela e outros eram acompanhados pela ditadura militar.
Conheço pouco de psicanálise, porém me atrevo em dizer que a considero um dos maiores intelectuais brasileiros. O que escreve e diz vai muito além dos muros de uma disciplina: convoca os diversos saberes sociais, como se vê em seu O tempo e o cão (ainda se pode votar nesse livro para o prêmio popular Jabuti de não ficção: http://www.cbl.org.br/jabuti/telas/voto-popular/). Nada mais adequado para uma fala vocacionada para a esfera pública.
Contra essa fala, os conservadores empunham a censura. Ela acabou depois da vedação na Constituição de 1988? Como órgão do Estado, apenas. A censura continua, inscrita no seio da sociedade, como bem lembra meu brilhante amigo Alexandre Nodari: http://jornalurtiga.blogspot.com/2009/08/censura-ja-nao-precisa-mais-de-si-mesma.html (e sobre que eu mesmo escrevi, numa perspectiva do direito internacional: http://idejust.files.wordpress.com/2010/04/ii-idejust-fernandes1.pdf)
Chico Buarque, no disco Almanaque, gravou a canção "A voz do dono e o dono da voz", em que retratou sua briga com a Polygram. Quando o jornal faz com que todas as vozes submetam-se ao mesmo dono, troca-se a polifonia por um ruído de uma nota só. O empobrecimento é evidente.
Que a única voz seja a voz do dono, eis a distopia dessa imprensa; Kehl escreveu bem o oposto em sua última coluna para o Estado de S. Paulo, dedicada a desmistificar preconceitos contra o Bolsa-Família, que encobrem outros: http://www.cartacapital.com.br/politica/dois-pesos%E2%80%A6-maria-rita-khel-diz-tudo A desvalorização do voto dos pobres revela o desejo de que não sejam donos de sua própria voz. Eis o que indigna tantos: qualquer odor, mesmo distante, de justiça social, de mudança na partilha do comum. Trata-se de um exemplo de "escândalo democrático", como diria Rancière.
A mesma postura estava no texto "Repulsa ao sexo" http://antoniocicero.blogspot.com/2010/10/maria-rita-kehl-repulsa-ao-sexo.html, também publicado naquele jornal, em que argumentava como a criminalização do aborto representava um aspecto do domínio patriarcal sobre o corpo da mulher, e do castigo por separar o prazer sexual do dever de procriação.
Volta-se, pois, ao aborto, bandeira aparentemente abandonada por Mônica Serra, mas reavivada há pouco pela voz teocrática de Ratzinger (talvez esperando que Locke estivesse certo ao afirmar que os católicos obedeceriam ao soberano de Roma).
Algo semelhante ocorreu há pouco em Portugal. Eduardo Pitta conta, em seu blogue Da literatura (indico a ligação ao lado), o uso de declarações da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen pelo PPV, Partido Português Pró-Vida:

Um deles, Maria Andresen, é peremptória: «Uma coisa era a minha mãe ser pessoalmente contra o aborto e outra estar contra a sua legalização. Conversámos imensas vezes sobre isso e sei que a minha mãe sempre recusou militar em qualquer movimento anti-aborto, precisamente por respeitar a liberdade de consciência de cada um.»
http://daliteratura.blogspot.com/2010/10/invocar-sophia-em-vao.html

Porém, em Portugal, esse partido só teve 0,15% dos votos... Seria tão bonito que o mesmo ocorresse no Brasil...