http://www.guardian.co.uk/world/2013/jun/06/nsa-phone-records-verizon-court-order?CMP=twt_fd
Al Gore, que conhece seu partido e o governo, afirmou que se trata de algo "obscenamente ultrajante":
http://www.washingtonpost.com/blogs/post-politics/wp/2013/06/05/al-gore-calls-obama-administrations-collection-of-phone-records-obscenely-outrageous/
Talvez operações com cartões de crédito (afinal, deve lembrar-se que tais empresas, no caso Wikileaks, mostraram-se braços financeiros da política dos EUA) incluam-se no panóptico: http://online.wsj.com/article/SB10001424127887324299104578529112289298922.html
No entanto, trata-se simplesmente de como é aplicado o "Ato patriótico", legislação antidemocrática que o governo de Obama conseguiu estender por mais quatro anos, algo a ser estudado à luz de Foucault - um belo exemplo de vigiar e punir... E, mais do que isso, de biopolítica, que se serve desse aparato de controle e vigilância. A plutocracia estadunidense é exemplo de regime para o qual "os massacres tornaram-se vitais", como escreve Foucault em A vontade de saber.
A ideia, no melhor das hipóteses ingênua, de que se pode ter um governo democrático com leis antidemocráticas, que mencionei há pouco sobre a Argentina (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/antologia-mural-de-viagem-argentina.html), só poderia fazer sentido para um lunático que achasse que o direito não tem importância ou, ao menos, não tem importância para a política.
O exemplo dos Estados Unidos, importante precedente para a legislação congênere no Chile, no Equador e na Argentina (nestes países sul-americanos, direcionada contra os índios e os movimentos sociais), mostra como as leis antiterroristas não são outra coisa senão a base legal para o terrorismo de Estado.
Talvez alguns cidadãos dos EUA tivessem a esperança racista e etnocêntrica de que seu governo fosse vigiar, prender, torturar e matar apenas estrangeiros. Afora a incompatibilidade dessa posição com o direito internacional e com os direitos humanos, devemos ressaltar sua completa ingenuidade. Pois há o que Hannah Arendt chamou, brilhantemente, de efeito bumerangue: uma política externa contrária aos direitos humanos acaba por surtir efeitos também no plano interno. No meu livrinho Para que servem os direitos humanos?, escrevi, às páginas 32 e 33:
Na sua análise sobre Kosovo[31], Virilio defendeu a existência de um “putsch mundialista”, na sequência do qual um “grupo armado” fugiu ao controle das Nações Unidas[32]. Previu também que os Estados Unidos, libertos da ONU, agiriam dispensando o manto da NATO em busca da sua “dimensão solitária e hegemónica”[33] - foi o que ocorreu na guerra do Afeganistão, quando os EUA exigiram uma coligação global, à revelia de ambas as organizações. O mesmo se verificou no Iraque em 2003, ocasião em que não se formou coligação alguma e a NATO foi deixada de lado para isolar a França e a Alemanha. A política externa imperialista precisou de se apoiar na limitação doméstica dos direitos fundamentais, o que foi realizado através do USA Patriot Act. Estamos perante um “efeito bumerangue”, segundo Hannah Arendt: a dominação externa acaba por gerar dominação também no plano interno[34].A afirmação kantiana de que um Estado republicano seria menos dado à guerra, pode, portanto, ser revertida desta forma: uma política externa violadora dos direitos humanos acaba por gerar violações a esses direitos também internamente, o que revela a importância do controle social da política exterior.
Esse efeito não pode mais ser escondido. Nessa falta de controle social na plutocracia dos EUA, temos a irresponsabilidade jurídica dos governantes pelos seus crimes. Se os membros do governo do último Bush, e ele mesmo, saíram ilesos, por que imaginar que atividades criminosas cessariam no governo de seu sucessor, Obama? A impunidade em relação aos abusos cometidos na "guerra contra o terrorismo", devo lembrar, foi defendida até mesmo por um jurista cujo falecimento recente gerou notas de louvores quase onipresentes, Ronald Dworkin. Ouçam-no nesta interessante entrevista dada à BBC em 25 de janeiro de 2010 (http://www.bbc.co.uk/programmes/p005vc49).
Pouco antes dos vinte minutos, ao ser perguntado se membros da administração federal do governo do último Bush deveriam ser processados em razão da "guerra contra o terrorismo", tendo em vista as mentiras, torturas, sequestros e assassinatos que viraram política pública nos EUA, ele responde que não. Dworkin afirma que se lançaria um precedente para que uma administração processasse membros da anterior, o que seria típico de uma "república das bananas".
O lamentável arrazoado do filósofo mostra-o inferior como pensador político, nessa questão, a Woody Allen. Como se sabe, a origem desse tipo frutal de repúblicas está em uma companhia multinacional apoiada pelo governo dos EUA, United Fruit (hoje, Chiquita Brands), que fomentou diversos golpes de Estado na América Central, e foi um dos braços estadunidenses de combate à democracia no continente. O grande cineasta, em um de suas comédias de juventude, mostra bem que a verdadeira república das bananas era os EUA. Quem não conhece Bananas, pode ver esta cena de julgamento, em que, depois de cantar "O mio babbino caro", a testemunha (Miss America) diz que o réu é um traidor do país porque não concorda com os pontos de vista do presidente da república: https://www.youtube.com/watch?v=sYp9WtbMo2k
Dworkin, apesar de não cantar Puccini, é bem mais sofisticado do que ela, mas não nesse ponto da entrevista. O curioso é que ele apoiou a justiça de transição na Argentina e escreveu a introdução do Nunca más na edição em inglês. cito-a do espanhol:
No consideraban a los terroristas de izquierda meramente como criminales -que debían ser perseguidos y castigados con el poder de policía-, sino como una amenaza letal e inmanente a la civilización argentina; un ejército del mal, al que tenían la misión de destruir, en lo que llamaron "guerra sucia". No obstante, los militares no consideraban que esta amenaza estuviera limitada a las guerrillas, ni a los terroristas en sí mismos sino que también incluía, más profundamente, aquello que el General Jorge Videla (el representante del Ejército en la Junta inicial) denominó "pensamiento subversivo" y que implicaba cualquier tipo de disenso.O texto pode ser lido na Revista Argentina de Teoría Jurídica: http://www.utdt.edu/ver_contenido.php?id_contenido=2935&id_item_menu=5858.
Note-se que os argumentos dos generais argentinos são parecidos, na sua invocação do mal, com os da "guerra contra o terror". Ademais, no tocante ao controle do pensamento, há também paralelos: o alinhamento forçado da imprensa à invasão do Iraque já prefigurava tudo o que ocorreria depois. Faço coro com Idelber Avelar: "não resta fiapo de credibilidade à ideia da imprensa 'mais livre do mundo', com que tantos brasileiros à direita do espectro político se referem aos conglomerados de mídia norte-americanos".
Voltemos a Dowrkin, que morreu pouco antes de ver mais este passo do declínio dos EUA. Processar ex-membros do governo é bom no país dos outros, não é isso? Fica feio no excepcionalismo estadunidense... Que deve ser ressignificado: temos que entendê-lo não mais como expressão de uma terra de liberdade, e sim como de um regime de leis de exceção.
Dworkin, no seu último livro, Justice for hedgehogs, escreveu que "George W. Bush was one of the most unpopular presidents in history [ao autor nem ocorre acrescentar "dos Estados Unidos" porque o capítulo não enxerga realmente além-fronteiras], but he remained adamant in pursuit of the policies that made him unpopular. The majoritarian conception of democracy might suppose, as I said it did, that politicians will always be anxious to do what the majority wants. But history teaches otherwise."
A ideia de que políticos em uma democracia representativa manter-se-iam fiéis aos interesses da maioria era uma esperança que estava presente em O Federalista, no final do século XVIII, e ela foi uma das bases do sistema político dos EUA. Dworkin, no começo do XXI, poderia ter ido muito além. Teria sido interessante acrescentar que muitas dessas políticas eram, além de impopulares, inconstitucionais e contrárias ao direito internacional; mas, nesse ponto, o filósofo teria que criticar radicalmente a falha de muitos dos juristas daquele país e o próprio Estado. A esse ponto, no entanto, ele não pôde chegar; vejam esta candura, no mesmo livro: "The recent reactions of both the United States and the United Kingdom to terrorist threats illustrates a failure of nerve and honor in both theses somewhat different political cultures, for instance."
P.S.: Nicholas Thompson, de The New Yorker, resumiu no twitter, comparando as posições opostas de Bradley Manning e do governo dos EUA, o atual quadro político-juridico daquele país: "Bradley Manning: government shouldn't keep secrets from the people. NSA: people shouldn't keep secrets from the gov." https://twitter.com/nxthompson/status/342809027308310528
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