O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Sobre Alberto Pucheu, "Mais poético do que o poético"

Escrevi esta resenha em 2016 para um sítio que, aparentemente, não existe mais. Enquanto não escrevo novamente sobre o autor, deixo-a aqui. 


Mais poético do que o poético...


Pádua Fernandes



... que bem pode ser um dos sentidos do título Mais cotidiano que o cotidiano, do último livro de poesia de Alberto Pucheu, publicado pela Azougue em 2013, uma vez que todos os seus livros, ao menos desde sua segunda estreia, em 1993, buscaram utilizar poeticamente materiais da linguagem cotidiana. Não deveríamos esperar menos do autor que, em Escritos da indiscernibilidade, havia dito que “a linguagem, por fundamento e definição, é poética, mesmo nos momentos em que não a imaginávamos sendo”, trecho destacado por Renato Rezende em resenha na qual escreveu que Pucheu “expande os limites do poético”1.

É certo que essa expansão integrava o projeto do modernismo no Brasil, como escreveu Miguel Saches Neto na apresentação do livro de 2013, e (acrescento) pode ser identificada em autores do século XIX. Resta ver como Pucheu a realiza, e que tipo de novidade sua literatura continua a trazer.

Entendo que essa expansão pode-se dar, nesta obra, por meio: a) do eu lírico multiplicado e/ou alheio (especialmente pelo que chama de “arranjos”); b) do desguarnecimento de fronteiras (para usar uma expressão cara ao poeta) entre poesia e outros discursos, operação que é, em si, poética; c) da dissolução do eu na natureza e no corpo; d) da busca do inarticulado.

Essas quatro linhas da poesia de Pucheu, que se cruzam e se recombinam, já apareciam com graus variados em livros anteriores. Mais cotidiano que o cotidiano mantém os arranjos, poemas que o autor afirma serem totalmente composto por recortes de discursos alheios e que aparecem com esse nome desde A vida é assim, justamente na parte homônima deste último livro.

Originalmente, a seção desta obra de 2001 fazia significativa referência a sua segunda coletânea (e estreia oficial), a plaquete Na cidade aberta, mas a referência foi suprimida na reunião de quase todos os seus primeiros livros de poesia, A Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007). Deve-se lembrar que A cidade aberta tinha como epígrafe exatamente um “poema colhido na boca de um transeunte na marina da Glória”2 e terminava com poemas produzidos a partir de falas recolhidas na cidade, método já antigo na poesia de Pucheu.

Também suprimido na poesia reunida foi o significativo posfácio a A vida é assim escrito pelo grande poeta português Alberto Pimenta, que bem viu nessa poesia “um memento da liquidação lenta do eu, ‘tornado consciente do arrepio da própria limitação e finitude’ (Adorno)”3.

O uso de frases alheias, retiradas do cotidiano das ruas, dos meios de transporte poderia ser uma forma de o poeta, a partir de seus materiais, apresentar a vida tal como ela é, se isso fosse possível, e de dizer, pelo seu próprio modo de produção, que “a vida é assim”. De certa forma, é viável fazê-lo, mas apenas por meio de uma invenção, e nisso temos a poesia.

Na publicação anterior ao livro do poema que se tornou, em A vida é assim, o “Arranjo para mensagens eletrônicas” (que seria um arranjo de frases da correspondência eletrônica passiva do poeta), temos um curioso adendo que não foi incluído no livro de 2001, tampouco na poesia reunida:


Caros amigos, resolvi fazer um poema, quero dizer, um arranjo, com fragmentos de mensagens eletrônicas recebidas por mim nesses últimos dias. Uma das coisas que mais me provocam é experimentar o quanto de «não-poético», de cotidiano, de ordinário, a poesia consegue suportar. Talvez se lembrem de «na cidade aberta nº 3» e de «Poema para a maior audiência do país». O primeiro, com vozes de vendedores ambulantes que circulavam no trem e com o aviso de seus destino e horário de partida. O outro, uma disposição de frases que foram ditas no programa do Ratinho por diversas pessoas [...] Essa escrita, composta apenas com frases alheias, vem me perseguindo desde o começo. Descubro, com ela, uma possibilidade da qual só sou capaz enquanto arranjador, afrouxando, assim a unidade do eu lírico, a subjetividade daquele que escreve e a força do princípio conjuntivo. [...]4


Essa parte do texto possui um caráter demasiadamente explicativo, o que deve ter levado a sua não publicação no livro. No entanto, é interessante lê-la pelo que o poeta escolheu falar dos próprios procedimentos, e pelo que ela revela a contrapelo do autor. Temos aí uma tensão entre ser ninguém (“quem escreve jamais deixará de ser ninguém”5, escrevera em Escritos da frequentação, de 1995) e entre uma superafirmação da subjetividade do poeta arranjador, que, afinal, manipula os discursos alheios. A autoria, no entanto, sempre está posta: na escolha da matéria, na seleção dos elementos e na sua disposição.

Creio que se pode aplicar à poesia de Pucheu o que o ensaísta Pucheu explica da poesia de Leonardo Gandolfi:


[...] em poesia a imersão radical no (des)criativo acaba por ser uma criação do mesmo jeito que o aprofundamento radical no não autoral finda por demarcar um novo modo e uma nova assinatura de escrita, ainda que desejosamente fragilizada6.


Apesar da tentação homonímia, sem dúvida a noção de arranjo musical é pobre para pensar a questão; ele é mais do que um arranjador. Poder-se-ia inicialmente pensar que temos aí mais o poeta como regente do que como compositor, e que o regente, de qualquer forma, cria sua própria interpretação do material dado. No entanto, a subjetividade envolvida na criação dos arranjos de Pucheu é muito maior do que aquela que um maestro pode dar a uma composição alheia, pois o material com que o maestro lida já era considerado musical, porém as frases que escolhe não eram necessariamente poesia antes de ele lhe dar o seu tratamento de “arranjador” – que é, na verdade, um tipo de poeta e, por isso, mostra-se análogo ao compositor.

É certo que na tendência forte a uma intertextualidade explícita com textos poéticos na poesia brasileira desde os anos 1990 temos, certas vezes, algo parecido com esse procedimento do arranjo. No entanto, esses outros poetas com um emprego forte da intertextualidade, em geral, estão presos ao gênero literário e raramente vão para as falas das ruas; preferem, muitas vezes, discursos mais nobres, mais consagrados, sem se guiar por falas de outra extração, mais cotidiana, sem atender à divisa que Pucheu escrevera em Ecometria do silêncio: “se inclassificável, é poesia7. Ele é capaz de citar ao mesmo tempo Aristóteles e vendedores de bananada, mais ou menos como, na primeira metade do século passado, Varèse podia colocar sirenes no meio do discurso musical.

Em Mais cotidiano que o cotidiano, o “Arranjo para tornar o mundo cada dia pior e mais violento (antivoz)” combina as falas de dois autores de atos de terrorismo não estatal, Wellington Menezes de Oliveira, do Rio de Janeiro, e Anders Behring Breivik, da Suécia, tentando construir um discurso contínuo fascista independente das fronteiras. O “Arranjo para tornar o mundo cada diz menos violento (pós-voz)” é uma sequência dos nomes das vítimas de ambos.

Nesses arranjos, opera-se um desguarnecimento da poesia com outros discursos, o que é feito também pelo ready made “Arranjo para tornar o mundo cada dia pior e mais violento, II”, que transcreve a fala do comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro após a violenta repressão das autoridades estaduais contra as manifestações populares em julho de 2013. Nesse caso, os procedimentos desta poética são menos os de artesania textual do que os de arte conceitual, de performance.

Também apresenta uma poética de performance o poema atribuído a outrem (um amigo de longos anos que foi por ele supervisionado no pós-doutorado, o poeta Caio Meira), “Perfil parcial de um procedimento, escrito por Caio Meira”. Ele trata nada menos do que da suposta vida do poeta Alberto Pucheu e de como ele teria concebido a técnica dos arranjos antes de teóricos como Marjorie Perloff se ocuparem de poéticas desse tipo. No entanto, trata-se do texto menos bem sucedido do livro: embora, de fato, tenha êxito em parecer de outra pessoa, o estilo e a frase não oferecem nem de longe o horizonte de pensamento dos outros textos de Pucheu.

A frase de Pucheu, meio verso, meio prosa, como vemos desde Ecometria do silêncio, de 1999, apresenta, em regra, uma argumentação sem sobressaltos, uma voz baixa, contínua, como se ele quisesse tornar indistintos o pensamento e a respiração. Essa característica rítmica tem relação, creio, com a questão do inarticulado, outra das linhas desta poesia. Não que ela ignore sobressaltos ou um acorde final surpreendente; veja-se no poema que publicou em O Globo sobre a posse de Lula na presidência da república, recolhido em Mais cotidiano que o cotidiano: “Poema para ser lido na posse do presidente (antevoz)” vai realizando uma reflexão enquanto o eu lírico anda na rua, pelas calçadas, cruzando com os corpos, tratando desses corpos:


[...] São corpos dúbios,

quando dançam o funk sob a mira

dos AR-15, quando fogem dos tiros

saltando atleticamente por telhados,

caixas d’água, correndo por becos,

quando se explodem na terra ou no ar

contra o concreto de um edifício

ou quando se jogam das alturas

do mesmo edifício. São corpos funcionais,

como nas caixas lotadas dos supermercados,

dentro das britadeiras fritados sobre o asfalto

do sol, dentro da cozinha da minha casa,

ao meu ouvido, na central de telemarketing.

São corpos... São corpos que, em algum momento,

esquecidos, anônimos, sobem e descem uma rua,

nada mais. [...]8


Ele já havia escrito que, “em longas caminhadas,/ quem enxerga são as pernas.”9; neste importante poema da literatura brasileira contemporânea (goste-se ou não do homenageado), o eu lírico mostra-se consciente de sua posição de classe, o que nem sempre os comentaristas da obra de Pucheu percebem10. Esses corpos são feitos de vazios, de faltas, e acabam simbolizados em “a poesia/ do dedo que falta na mão do presidente.” A mutilação se deve a algo mais cotidiano do que o cotidiano no Brasil, os acidentes do trabalho, que se multiplicam amparados em outra falta: não têm efetividade alguma as previsões penais sobre segurança do trabalho, em razão da (in)eficácia do direito burguês, diferida segundo a classe social. Essas faltas se materializam na mão daquele presidente, que foi alvo de deboche de setores que lhe fizeram oposição e que, nesse gesto mais do que mesquinho (debochar de uma mutilação que, na verdade, é uma marca de classe social), mostraram também seu desprezo pela situação do trabalho no país.

É uma das ocasiões em que a opção pelo cotidiano gera o poético em alta intensidade. Creio que, num registro cômico, é o mesmo que ocorre em “Transcrição ipsis litteris de uma fala em uma banca”, um momento de autoficção em que ao menos esta passagem é metapoética:


[...] estou vendo o Fábio ali na última fileira que me chama de Professor, o Domingos, aqui do lado, me chama muitas vezes de amado, a minha namorada me chama de Betô, de Querido e de outros nomes que não vêm ao caso. Eu acato todos esses nomes. Neste momento, eu lhe digo que eu falo com esses nomes todos, mas falo também com o que há entre um e outro desses nomes. São todos apelidos e eu respondo a todos. Eu respondo a todo e qualquer chamado11.


O poeta é o que deseja acolher todos os nomes, ele deseja ser a própria cidade aberta, embora a própria cidade apresente diversos fechamentos.

Um momento em que ocorre o contrário, um fechamento e uma fuga à cidade, são as raras ocasiões em que Pucheu resolve brincar de Borges, avizinhando-se do beletrismo. “Édipo e o enigma” tem mesmo um fecho banal: “E se nós todos formos simplesmente/ os que nunca sabemos o que somos?”12.

Uma estratégia para essa abertura está em outra linha desta poesia, a dissolução do eu na natureza e no corpo que com ela se funde. Já se encontrava em Ecometria do silêncio uma intenção como esta: “só encontro o movimento do que me cala: o amarelo do peixe no aquário do shopping, a musculatura operária, o cérebro no impacto do soco, a punção do trocarte e o momento seguinte ao acidente consumado”13.

Os poemas sobre boxe cumpriram essa função certa época em que os jornalistas noticiaram, por um breve momento, que poetas podiam lutar boxe. O belo “Minhas Amizades de Hoje são Feitas como Antigamente”, recolhido na poesia reunida, não revela, no entanto, nenhuma ruptura na poética de Pucheu, o que ele trouxe de novo foi um motivo (no sentido de motivo musical), não novas estruturas:


[...] O menor vacilo

custa alguns dentes, um filete de sangue no nariz,

uma dor no fígado, no baço, uma falta de ar... e de siso.

Pouco falam do que pensam ou sentem.

O conhecimento que um tem do outro é passado

pelos poros, pelos suores que se misturam

a cada esquiva mútua em que a lateral de um corpo

se esfrega na mesma lateral malcheirosa do corpo alheio,

pela velocidade dos jabs e dos tapas defensivos

tirando o punho do caminho da face, pela porrada

do explodir da luva nos músculos compactos e protetores.

É dessa maneira que hoje faço meus amigos14.


O corpo, quase mudo, fala por meio dos golpes, e nesse jogo pode ser deformado. Em Mais cotidiano que o cotidiano, o boxe não é mais o motivo; temos, em vez dele, o jet-ski, o tow-in e o surfe, com suas ameaças de dissolução dos corpos, na primeira seção do livro, intitulada justamente “Tow-in”. Ela termina com um “Arranjo em busca de um paradigma para a relação entre o crítico literário e o poeta”.

O título do último poema da seção muda tudo o que foi lido. O poema é composto, segundo a nota, por falas de surfistas: “Sem a ajuda da outra pessoa a algumas centenas de metros, o surfe de onde gigante é suicídio. [...] O surfe com reboque fez o impossível ser surfável. [...] No tow-in, você deixa seu parceiro escolher a onda. Era um monstro gigante atrás de meu parceiro e ele era apenas um grão de areia diante dessa boca enorme.”15.

É interessante que da fala de esportistas não rivais, e sim parceiros, o poeta anuncie uma relação entre crítico e poeta. Talvez, no entanto, ela seja direta demais. Se a poesia é essa natureza ameaçadora, entre crítico e poeta, quem reboca quem? A poesia é um esporte radical que pode engolir os dois? Ou é a crítica quem naufraga nesse arranjo, que bem pode virar um compadrio de grupos literários?

Pucheu entende a crítica de caráter poético e criador, tentando a indiscernibilidade entre o crítico e o teórico. Ademais, ele precisa da empatia com a obra para escrever sobre ela; escreve sobre os poetas de que gosta, e não dos outros – algo mais comum na crítica de artes plásticas. Pode-se desconfiar, porém, de que a última parte do poema não ficou à tona, após as quatro primeiras, parecidas demais. Prefiro-a como foi publicada em 2011 na Babel Poética, em duas partes, precedida de “O que [alguns críticos] fizeram com a poesia brasileira e o contemporâneo”, que é abertamente um texto sobre a crítica de poesia. Nele, Pucheu refere-se rapidamente a avaliações da poesia contemporânea feitas por João Adolfo Hansen, Silviano Santiago, Alcir Pécora, Iumna Maria Simon, Paulo Franchetti, Luiz Costa Lima e outros, qualificando-as de “momentos com pretensões de medalhões eruditos”16. O contraste entre as duas seções torna o conjunto mais interessante, e a imagem do tow-in, bem mais surpreendente.

No tocante à busca do inarticulado, que se articula à dissolução do eu, ela é mais anunciada como desejo do que realizada; no poema “Em outras palavras”, lemos que “talvez, o melhor que ele conseguisse fazer fosse um murmúrio indecifrável de todas as frases soando juntas, homogeneamente monótonas, ao mundo de cada palavra que não quisesse se sobrepor às suas vizinhas.”17. Trata-se de uma difícil proposta de poética, mais facilmente realizável na música.

Essa linha de força da poesia de Pucheu chega mesmo a se opor ao que os defensores de animais chamam de especismo. Em “Iaque”, que evoca o conhecido “Poema em vão (ou Poema Ungulado)” de A fronteira desguarnecida, lemos que “Há dias em que gostaria de falar de mim com a sensação de um iaque ao atravessar um despenhadeiro do Himalaia. Há dias em que eu gostaria de não me reconhecer em nada língua em que falo.”18.

No “Poema em vão”, não havia esse desejo de identificação com outras espécies animais (neste caso, com os rinocerontes): “O que dele me aproxima, me afasta. Anterior a mim e a Adão. [...] Nunca escutei sua voz, que do silêncio anuncia estrondos.”19. O livro seguinte, nesse sentido, representou um avanço, com o “Poema ungulado, nº 2” : “[...] um guindaste se apropria do meu sexo, o chifre crescendo pelo nariz. Quando o queixo começa a se empinar, guincho o que nunca escutei: a voz anginosa do rinoceronte.”20.

Mais adiante, no “Poema ungulado, nº 3”, Pucheu logrou inventar a identificação desse inarticulado com a origem do discurso: “O rinoceronte, um vírus em nossas quatro coronárias,/ ainda nos unia. Desta vez, em mim,/ era um estranho corpo impalpável,/ contra o qual, carne a não-carne, eu lutava, mesmo sabendo/ que iria perder. Digo: perder-me em mim mesmo [...]”21.

Este último poema é de amor, tema que parece suscitar o inarticulado como metáfora para os jogos do corpo, inclusive os sexuais. Mais cotidiano que o cotidiano menciona uma “sintaxe esburacada” do amor, e o inarticulado nos uivos concorrentes: os que os corpos emitem e os que cercam os corpos, em “O livro de hoje do amor”:


[...] se é tão difícil

separar os corpos agora, para que,

então, não escutar os uivos dos corpos

de modo que eles possam se sobrepor aos outros uivos

que, por fora dos corpos, insistem em se fazer escutados?22


Esse inarticulado adquire uma dimensão social no marcante poema “Luiz Carlos Marques da Silva”, que havia sido publicado em 2011 antes de ser recolhido em Mais cotidiano que o cotidiano. O título é o nome de um senhor em situação de rua cuja história foi contada em figurinhas, entre outras de pessoas em situação análoga, por Rubens Pileggi no projeto Nowhereman. No poema, não ouvimos propriamente o que conta Marques da Silva; ouvimos primordialmente o lugar de onde o outro fala, o fundo do poço – a descrição desse lugar de onde o outro fala é a própria mensagem, até a ironia final:


[...] ele me falava que, no fundo do poço, pouco importava a já mínima vontade, mas o único e exclusivo gesto, o de amar – ao ponto de não se sentir incomodado em ter seu fundo do poço contrabandeado para esse evento na cobertura em que estávamos, onde iria dormir no chão, ao lado do artista que o trouxe, de frente para o mar, na qual, trazendo-nos o fundo do poço, do qual jamais saía, ele me falava23.


Aqui, tornar-se aberto para a cidade significa “aprender a se camuflar de fumaça, asfalto, lixo”24, e até aceitar ter sua fala contrabandeada pelos artistas de classe mais alta do que a dele, o que inclui o próprio Pucheu.

Mais cotidiano que o cotidiano reafirma a trajetória única de Pucheu na poesia brasileira; sua continua a provocar o espanto, isto é, a convocar o poético, lembrando que o seu contrário, para este autor, não é a prosa, mas “o próprio poético, quando, previamente estabelecido, mesmo cansado, quer se reproduzir”25.

1 REZENDE, Renato. Dois poetas vigorosos de nosso tempo. O Globo. Caderno Prosa e Verso, 31 jul. 2004.

2 PUCHEU, Alberto. Na Cidade Aberta. Rio de Janeiro: UERJ, 1993, p VI.

3 PIMENTA, Alberto. ...Assim é também a poesia. In: PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, p. 58.

4 PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Edições Cosmos e Cátedra Jorge de Sena, 2000, n. 1, p. 85.

5 PUCHEU, Alberto. Escritos da frequentação. Rio de Janeiro: Editora Paignion, 1995, p. 16.

6 PUCHEU, Alberto. Apoesia contemporânea. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2014, p. 112.

7 PUCHEU, Alberto. Ecometria do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, p. 41.

8 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 33.

9 PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, p. 11.

10 Pode-se lembrar de Mariana Ianelli, que celebra afetivamente uma “literaturavida” na obra de Pucheu, “libertando-se do pessimismo por uma resistência maior, um princípio de alegria”, sem pensar nas condições políticas e sociais dessa resistência e desse princípio, no entanto problematizadas por esta mesma poesia (IANELLI, Mariana. Alberto Pucheu. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2013, p. 32).

11 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 54.

12 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 83.

13 PUCHEU, Alberto. Ecometria do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, p. 11.

14 PUCHEU, Alberto. A Fronteira Desguarnecida (Poesia Reunida 1993-2007). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007, p. 235-236.

15 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 19-20.

16 PUCHEU, Alberto. O que [alguns críticos] fizeram com a poesia brasileira e com o contemporâneo. Babel Poética. Santos, ano II, n. 6, ago./set. 2011, p. 23.

17 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 44.

18 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 47.

19 PUCHEU, Alberto. A fronteira desguarnecida. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997, p. 34.

20 PUCHEU, Alberto. Ecometria do silêncio. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999, p. 16.

21 PUCHEU, Alberto. A vida é assim. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, p. 29.

22 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 94.

23 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 40.

24 PUCHEU, Alberto. Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013, p. 39.

25 PUCHEU, Alberto. Escritos da indiscernibilidade. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003, p. 24.

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