Hoje, em São Paulo, sairá o último volume da trilogia de romances de Micheliny Verunschk sobre a ditadura militar brasileira: O amor, esse obstáculo (São Paulo: Patuá, 2018). Deixo aqui o início da apresentação que fiz para este livro, que cruza as dimensões das memórias individuais e coletivas. Um dos traços originais do livro é o fato de sua trama se passar já depois da atuação da Comissão Nacional da Verdade. Ele busca explorar o campo que a CNV deixou por descobrir, e cuja atualidade se mostrou dramaticamente tão viva com as eleições de 2018, na vitória, inclusive para presidência da república, de candidatos negacionistas da história e incentivadores de crimes contra a humanidade. No livro, a personagem com Alzheimer é apresentada como símbolo da memória do país...
A memória, esse país canibal: a trilogia de Micheliny
Verunschk sobre a ditadura militar brasileira
Depois dos romances Aqui,
no coração do inferno (Patuá, 2016) e O
peso do coração de um homem (Patuá, 2017), Micheliny Verunschk completa sua
trilogia sobre a ditadura militar com O
amor, esse obstáculo.
Os personagens do rapaz canibal e da filha do delegado
torturador, que haviam se encontrado na imaginária cidade de Santana do Mato
Verde na primeira parte da trilogia, voltam a cruzar-se neste volume, que
representa mais um exemplo do novo ciclo de memória cultural na literatura
brasileira contemporânea.
Neste último romance, Laura, a personagem principal, tenta
encontrar a verdade sobre a própria história familiar, especialmente no tocante
aos crimes cometidos por seu pai, um torturador que atuou para a ditadura sob o
codinome de Capitão Garrote.
Além da tortura e das execuções extrajudiciais de caráter
diretamente político, ela tenta entender a violência doméstica que ele
produziu, o que pode ter incluído tortura e feminicídio avant la lettre, e que leva à ideia do amor como obstáculo,
escolhida como título do livro. A repressão política e a violência de gênero
cruzam-se de maneira complexa em O amor,
esse obstáculo; elas podem aliar-se, mas também podem ser cometidas de
maneira autônoma, e ambas sobreviveram à ditadura.
O peso do coração de
um homem teve Cristóvão como centro da narrativa. Agora, Laura volta a ser
narradora. O livro inicia-se com a notícia da morte do pai. Ele é encontrado
enforcado, o que suscita suspeitas: cometera suicídio, ou fora assassinado por
haver comparecido à Comissão Nacional da Verdade para depor sobre as graves
violações de direitos humanos por ele perpetradas durante a ditadura? O
episódio não deixa de evocar o assassinato de Paulo Malhães pouco depois de
seus depoimentos à Comissão da Verdade do Rio e à Nacional.
As providências do enterro do Capitão Garrote são tomadas
pelo clube militar, que ele frequentava.
A protagonista decide retornar à cidade natal para recuperar
o seu passado, que se confunde, sob certos aspectos, com a história recente do
país. Confrontada com as várias dificuldades na tentativa de esclarecer os
crimes cometidos pelo pai, desabafa: “Mas o que eu gostaria mesmo é que o mar
se levantasse e devolvesse os mortos que foram atirados do céu, que cada um dos
desaparecidos nos voos da morte retornasse com seu nome, suas histórias, seus
dedos refeitos em coral e sal a apontar os culpados”. Laura sabe, no entanto,
da impossibilidade desse resgate.
No romance, conta-se também o reencontro de Laura com
Cristóvão, o rapaz canibal, no Rio de Janeiro, o que gera mais desdobramentos à
narrativa. Nos volumes anteriores da trilogia, vimos que o pai dela o havia prendido
em casa para evitar que ele fosse linchado, e que ela escolhera perder a
virgindade com ele. Agora, essa história se torna mais evidentemente alegórica
do país: “O fato cru e sem retoques é que papai tornara a nossa casa uma
casa-canibal”.
A história é contada, por conseguinte, a partir do prisma da
memória e da busca da verdade.
Por essa razão, há algo muito significativo em comum entre
esta trilogia e o primeiro romance de Verunschk, Nossa Teresa – vida
e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, 2014). No livro anterior, também nos
deparamos com a exploração da memória e a busca pela verdade, além da
tematização da violência contra a mulher.
Nesta última parte da trilogia, permanece o traço
estilístico de usar citações como sequências da narrativa; um dos capítulos é
um poema de Juan Gelman, escritor argentino que foi vítima, com sua família, da
ditadura de seu país e da uruguaia.
Nesta apresentação, não contaremos o final do livro; fazemos
notar, no entanto, que o desfecho deixa ainda elementos a resolver, assim como
o processo histórico que o país hoje atravessa no tocante às continuidades da
ditadura.
Da personagem da madrasta, que perdeu a memória por causa do
Alzheimer, temos uma revelação importante da história. Ela repetidamente é
apresentada a Laura, e dela se esquece, o que leva a este comentário: “Assim a
memória individual, assim a história de um país”.
No século XXI, teria começado, segundo Rebecca J. Atencio
(em Memory’s Turn: Reckoning with
Dictatorship in Brazil, The University of Wisconsin Press, 2014), um novo
ciclo de memória cultural na literatura brasileira contemporânea: depois de os
temas relativos à ditadura militar terem sido postos de lado, os escritores
passaram a retomá-los ou reinventá-los.
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