O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Um recitativo favorito: "O retorno de Ulisses à pátria", de Monteverdi (30 dias de ópera: Dia 12)

Carolyn Abbate e Roger Parker, em Uma história da ópera, sustentam que a invenção do recitativo foi obra do poeta Ottavio Rinuccini e do compositor Jacopo Peri, em uma das primeiras óperas, Euridice, de 1600. Foi uma invenção genial, o recitar cantando, que ainda sobrevive.
Por exemplo, no século XIX, vejam estes dois exemplos do Rigoletto, de Verdi, obra de 1851. O protagonista  é um bobo da corte em Mântua. Ele acabou de conhecer um assassino profissional e, em um monólogo, começa a pensar na sua semelhança com ele; depois, vocifera por ser bobo e corcunda, lembra que foi amaldiçoado por um pai de cuja honra ele debochou, lamenta não ter o conforto das lágrimas, indigna-se com os cortesões, sente-se um outro homem no próprio lar, volta a lembrar da maldição, mas acaba descartando o mau presságio. Tantas pensamentos diferentes habitam a mente de Rigoletto que Verdi o faz recitar, mudando o tempo todo de expressão; neste vídeo, o barítono Cornell MacNeill, com décadas de experiência neste papel: https://www.youtube.com/watch?v=1-d9M1LXKw8
Uma simples linha melódica não daria conta daquele turbilhão.
Depois, os cortesões enganam Rigoletto e raptam sua filha, Gilda, para ser estuprada pelo Duque de Mântua. Nesse momento, ela canta uma ária, não um recitativo, depois da conversação e das risadas do início da cena; primeiro, canta movido pelo ódio; mas não consegue nada, e passa a se humilhar àqueles da "vil raça danada" ("Cortigiani, vil razza danata", quase a escolhi para o Dia 9), e está apropriado, este solo combina com a poesia e o drama neste momento: https://www.youtube.com/watch?v=YZSCruIv3LI
Verdi, no século XIX, acompanha seus recitativos, que, em geral, precedem árias (como fazem os compositores dessa época ou, ao menos, desde o século XVIII); no barroco, porém, eram comuns os recitativos secos (podem ser ouvidos mesmo em Mozart), com um acompanhamento com poucos instrumentos.
O público que vai aos teatros ouvir árias pode se entediar com os recitativos. Esta reação, ironicamente expressa em uma recitação, pode ser ouvida na boca do Conde, que não gosta de ópera, na ópera Capriccio, de Richard Strauss e Clemens Krauss: https://youtu.be/T4tsPsmvW7w?t=4675
Ela estreou em 1942. Como boa parte da ópera pós-wagneriana, temos aí uma conversação em música que não tem como objetivo primordial criar solos fechados para cantores, e tende a borrar a diferença entre ária e recitativo, ou seu intermediário, o arioso.
Voltando ao século XVII, podemos lembrar do primeiro grande mestre da ópera, Claudio Monteverdi. Uma de suas obras que não se perderam, O retorno de Ulisses à pátria ("Il ritono d'Ulisse in patria"), com libreto de Giacomo Badoaro, estreou em 1640. A história, claro, inspira-se no final da Odisseia, de Homero. Ulisses finalmente conseguiu voltar de Troia para Ítaca, onde sua esposa está sendo assediada por nobres que querem tomar seu lugar. Por obra da Deusa Minerva, ele consegue camuflar-se como um ancião. Penélope canta um belo recitativo, "Ecco l'arco d'Ulisse"; aquele que conseguir dobrar o arco que foi de Ulisses conquistará a mão dela. Os pretendentes não conseguem fazê-lo.
Ulisses, na forma de velho mendigo, pede para tentar (aqui, na montagem com o regente Nikolaus Harnoncourt; nesta outra ligação, a com regência de Emanuelle Haïm, com o texto mais completo). A rainha concede, não sem criticar os jovens que tentaram antes. Ulisses invoca os Deuses; ele dobra o arco, e os nobres só conseguem pronunciar palavras soltas, "meraviglia", tal é o estupor.
Ulisses invoca primeiro Júpiter (Giove), depois Minerva (na voz do tenor Rolando Villazón; com o barítono Dietrich Henschel). Com Villazón, ouvimos duas vezes a passagem "Alle morti"; mas é com Henschel que ouvimos o "alle ruine" lá no agudo num acorde sol-si-ré. Ele vai para o sol, nota bem aguda para esse tipo vocal. A partitura original é grave, ambos transpõem o chamado de Minerva uma oitava acima. No entanto, no todo, a tessitura é aguda para um barítono e grave para um tenor.
O triunfo de Ulisses, com seu ritmo marcado, ao som da "sinfonia de guerra" da partitura, irrompe realmente em contraste com o que veio antes. No entanto, ainda se pode ouvi-lo como algo que nasceu da fala. Como a própria música, possivelmente.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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