O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Ópera e negacionismo: "O Guarani", de Carlos Gomes (30 dias de Ópera: Dia 21)

Não se exige, em geral, da ópera fidelidade aos fatos históricos. Um exemplo famoso de liberdade com a matéria histórica são as óperas sobre rainhas inglesas de Donizetti. O ponto alto de Maria Stuarda está no encontro entre Mary Stuart e Elisabeth I, que jamais ocorreu fora dos palcos. Vejam a Maria de Joyce DiDonato chamando a Elisabetta de Elza van den Heever de meretriz: https://www.youtube.com/watch?v=aKmOVN5_BOo
O insulto não aconteceu, mas tem bom rendimento cênico. O Don Carlos de Verdi, que teve como uma de suas fontes a peça de Schiller, bastante livre com as fontes históricas, é outro caso. O escritor alemão criou, entre outros elementos, o personagem anacronicamente iluminista do Marquês de Posa, e Verdi o manteve, um contraponto importante às figuras mais comprometidas com o Antigo Regime, o Imperador e o Grande Inquisidor, e gerou estas belas árias, da cena de prisão e execução do personagem; aqui, em concerto, com Dmitri Hvorostovsky: https://www.youtube.com/watch?v=7f9OhEzO-vw.
A ópera Capriccio, de Richard Strauss, foi escrita durante a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha nazista, por um libretista nazi (o regente Clemens Krauss) e um músico que, permanecendo na Alemanha (e chefiando em 1933 e 1934 a Câmara de Música do Reich, embora sem perseguir os judeus, ele não era antissemita) serviu para legitimar o totalitarismo, enquanto Schönberg e outros eram obrigados a sair para não morrer, e vários foram efetivamente mortos. Seu enredo, que se passa num dia entre nobres e artistas no século XVIII, e sua questão (primeiro a palavra ou a música?) soam como um belo exercício de evasão em 1942. Dito isso, também não creio que seja um caso de negacionismo, a não ser para aqueles que, de forma autoritária, exigem que a obra de arte deva ter sempre um compromisso político explícito.
A Khovanschina, de Mussorgsky, oferece um problema de outra dimensão. No fim do quarto ato, vemos o perdão dos Streltsi, militares rebeldes contra o Czar Pedro. No entanto, o massacre deles é um fato histórico, ordenado pelo soberano.
Aqui, começo do ponto em que o Andrei (Vladimir Atlantov) os chama e foge, vendo que corre perigo, escondido por Marfa (Ludmila Semtschuk): https://youtu.be/X7JUbJWSKrY?t=8356. A negação do fato histórico do massacre acontece nesta bela passagem; a regência é de Claudio Abbado: https://youtu.be/X7JUbJWSKrY?t=8632https://youtu.be/X7JUbJWSKrY?t=8632.
Trata-se de uma ópera póstuma de Mussorgsky; ela só estreou em 1886, com a versão revista e completada por Rimsky-Korsakov, hoje preterida pela de Chostakovich, considerada mais fiel ao estilo do compositor. Não sei se as autoridades czaristas deixariam, naquela época, que a cena fosse mais fiel à história russa. Afinal, tratava-se do Império e do século XIX, que tantas vezes empregou a arte (e a ópera) aos interesses políticos do Estado e dos nacionalismos. Neste ponto, relembro da célebre conferência de Ernest Renan, "O que é uma nação?":
O esquecimento, e eu diria até o erro histórico, são um fator essencial da criação de uma nação, e é por isso que o progresso dos estudos históricos é frequentemente um perigo para a nacionalidade. A pesquisa histórica, com efeito, traz à luz os fatos violentos que se aconteceram na origem de todas as formações políticas, mesmo daqueles cujas consequências foram as mais benfazejas. A unidade sempre se faz brutalmente [...]
Essa é uma das razões por que o direito à memória e à verdade surge em tensão com o Estado, algo que pode passar desapercebido pelas teorias que simplisticamente assimilam o Direito ao Estado.
O Guarani (Il Guarany), outra obra do século XIX, música de Antônio Carlos Gomes e libreto italiano de Antonio Scalvini e Carlo d'Omerville, com base no romance homônimo de José de Alencar, é outro exemplo da negação da história em nome da ideologia da nação defendida pelo Estado.
Houve quem negasse o lugar de Carlos Gomes na música brasileira. Murilo Mendes, em poema, o chamou de Carlos Verdi. De fato, ele escreveu dentro do espaço da ópera italiana, porém...
Marcus Góes, cujo Carlos Gomes: A força indômita nunca encontrei, analisou como procedimentos da música brasileira, rítmicos e harmônicos, levaram o compositor a introduzir inovações na escrita operística que influenciaram a ópera italiana da época. Nesta entrevista dada a Adriana Menezes em 1996, Góes explica que a xenofobia italiana fez com que não reconhecessem que Carlos Gomes havia sido o precursor da renovação operística, e preferiram apontar Ponchielli; em depoimento mais recente, o pesquisador explica que esse primeiro grande sucesso na Itália já encarnava esses novos ares que influenciariam os compositores veristas: "No Guarany, Carlos Gomes não usa recitativos nem cabalettas, dá continuidade ao discurso musical, procura maior adequação da música à palavra."
Trata-se de um dos elementos que garante o interesse da música deste compositor brasileiro. O Guarani estreou no Scala de Milão, nada menos, em 1870, e causou grande sensação, que nunca mais seria repetida pelas outras obras do compositor, embora ele ainda viesse a ter sucesso com Salvator Rosa. Na década de 1870, ele foi o segundo compositor mais representado no Scala.
O êxito de Carlos Gomes foi impressionante; pelo que li em O Movimento, somente quase um século e meio depois outro compositor brasileiro teria uma ópera montada na Europa: Jorge Antunes com sua Olga, escrita sobre a história de Olga Benario, montada em 2019 na Polônia pela Ópera Baltycka Gdansk, dirigida pelo maestro brasileiro José Maria Florêncio.
Dito isso, Il Guarany não é perfeita, tampouco é a melhor ópera do compositor. Nem José de Alencar gostou do libreto. Os Aimorés aparecem demonizados. A cena de batismo de Pery é basicamente uma ode à colonização. Nesse sentido, em vez de estrangeirado, Carlos Gomes estava DEMASIADO em consonância com o império brasileiro. Lembro de Maria Alice Volpe e seu estudo de como esta ópera ratificou a ideologia oficial da identidade nacional, "Remaking the Brazilian Myth of National Foundation: 'Il Guarany'" (publicado em 2002 na Revista de Música Latinoamericana, facilmente encontrável nos repositórios de artigos acadêmicos), com a miscigenação do português e do indígena, com o etnocídio e a cristianização dos povos originários, elementos fundamentais do "indianismo": "The sacrificial myth, in which the Indian sacrifices his or her identity or life through symbolic or actual death for the sake of "civilization," was a key element of Indianismo ideology."
Trata-se de uma edulcoração da violência colonial, mas não tão radical e nefasta quanto as políticas anti-indígenas e antiambientalistas do governo Bolsonaro. A negação da violência genocida do Estado brasileiro contra os povos indígenas, um dos temas que voltou à baila com as Comissões da Verdade (porém somente com algumas: a do Comitê do Amazonas, de São Paulo, do Paraná, da Nacional e a de Minas Gerais), tendo em vista o extermínio de pelo menos 8350 pessoas dessas etnias pela ditadura militar, certamente inspira projetos inconstitucionais e de negação dos tratados internacionais para permitir mineração em terras indígenas, como o que o ocupante da presidência da república assinou neste 5 de fevereiro de 2020. O ditador Figueiredo pretendeu fazer o mesmo, com apoio de O Globo e de O Estado de S. Paulo, mas não conseguiu.
O recentíssimo escândalo suscitado pelas políticas culturais nazistas do governo Bolsonaro levou à demissão do secretário, mas não à mudança ideológica do governo. Como um dos prêmios previstos pela secretaria de cultura era a montagem de cinco espetáculos de novas óperas brasileiras, houve gente tão alienada da história da música deste país que perguntou incredulamente em redes sociais se já foram compostas cinco óperas neste país. Somente Carlos Gomes compôs oito.
A Protofonia do Guarani, que não tinha sido ainda composta na estreia da ópera (neste vídeo, pode-se ouvi-la com Roberto Duarte regendo a Sinfônica do Theatro da Paz em uma apresentação completa da ópera), é tocada até hoje no programa oficial Voz do Brasil. Certamente a maior parte dos brasileiros já ouviu essa música. Mas a afirmação autocomplacente da própria ignorância tornou-se em argumento de autoridade nas redes sociais. É uma pena que a música popular também seja maltratada com essa audição perfunctória e essa ignorância ostentada de nossa história artística.
Na montagem de Belém, Adriane Queiroz cantou Ceci; vejam sua ária, "Gentile di cuore": https://youtu.be/XTIpAyXyvFA?t=1473. Acho bonita a cena de batismo, apesar de sua violência simbólica: https://youtu.be/XTIpAyXyvFA?t=9371.
Essa violência, no entanto, poderia ser colocada em xeque por uma montagem criativa, que desfizesse o colonialismo da obra. Essa montagem precisaria, claro, como a ópera italiana daquela época, de grandes vozes para funcionar. O protagonista tem de ser um tenor com bastante potência vocal. Mario del Monaco, com sua voz dramática, interpretou-o no Brasil.
O tenor Roberto Alagna gravou recentemente, dessa ópera, "Sento una forza indomita" com o soprano Aleksandra Kurzak no disco em homenagem a Enrico Caruso, acompanhado da Orchestre National d'Ile de France com a regência de Yvan Cassar. Esses dois cantores bem poderiam interpretar os protagonistas, pois têm a voz certa para os papéis. Os franceses montariam Il Guarany para o casal Alagna e Kurzak? Ou os poloneses?


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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