O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Uma ópera que se tornou ópera: Don Juán segundo Mozart e segundo Schulhoff (30 dias de ópera: Dia 27)

A lenda de Don Juán originou diversas obras musicais, como o balé de Gluck e o poema sinfônico de Richard Strauss. Sua versão literária mais antiga é de Tirso de Molina, a peça El Burlador de Sevilla y convidado de piedra, que faz o protagonista definir-se nestes termos:
Sevilla a voces me llama
el Burlador, y el mayor
gusto que en mí puede haber
es burlar una mujer
y dejalla sin honor. 
O apelo da história do sedutor nobre e assassino que é arrastado ao Inferno pela estátua do pai de uma das nobres que ele tentou estuprar chegou ao gênero operístico. Leio em ensaio de Jeremy Gray que somente em 1787, ano de estreia da ópera de Mozart, outras três foram compostas sobre a mesma história, e Lorenzo Da Ponte teria fortemente se inspirado no libreto que Giovanni Bertati meses antes escreveu para Gazzaniga, e até mesmo o compositor austríaco teria encontrado alguns rumos a seguir na música do italiano, eis que há similaridades. Por sinal, o tenor que cantou o primeiro Don Ottavio na ópera de Mozart interpretou Don Giovanni na de Gazzaniga.
O Don Giovanni, de Mozart e do libretista Lorenzo da Ponte, é uma obra-prima tão impressionante,  a "ópera das óperas" para alguns, que arrastou para o subterrâneo suas predecessoras. Ela tem tudo; o céu, nesta oração feita por Donna Elvira, Donna Anna e Don Ottavio antes de entrarem disfarçados no baile oferecido por Don Giovanni: https://www.youtube.com/watch?v=kNS_7TjsxMU; o inferno: https://www.youtube.com/watch?v=7cb1QmTkOAI;  o povo, no noivado de Zerlina e Masetto: https://youtu.be/i7Teu60nNYc?t=2202; os nobres, aqui Donna Anna lamentando sobre o corpo de seu pai, o Comendador, com seu noivo, Don Ottavio: https://youtu.be/i7Teu60nNYc?t=903; situações bem humanas, como a surra que Masetto leva de Don Giovanni à noite: https://youtu.be/Hnd5ULYG2no?t=6260; o sobrenatural, como a voz fantasmagórica da estátua do Comendador respondendo a Leporello e Don Giovanni: https://youtu.be/XINUIzWriMQ?t=138;  o cômico, na lista das bem mais de mil mulheres conquistadas que Leporello apresenta a Donna Elvira, a traída e abandonada esposa de Don Giovanni: https://youtu.be/dUW_lFGXti4?t=1798; o trágico no apelo de Donna Anna para que seu noivo a vingue: https://youtu.be/dUW_lFGXti4?t=3377. Tudo, magnificamente expresso em música. Como retomar o assunto depois?
Nesses casos, o melhor é fazer algo muito diferente. A única ópera de Erwin Schulhoff, Flammen ("Chamas") parte de outra fonte literária, a peça Don Juan de Karel Josef Benes, que lhe foi sugerida por Max Brod. Benes elaborou o libreto e Brod traduziu-o para o alemão, leio no ensaio de Josef Bek para a gravação de estúdio regida por John Mauceri para a coleção Entartete Musik da extinta gravadora London ("Música degenerada", dedicada a obras proibidas pelos nazistas; uma nota: lembro que, quando as políticas nazistas da secretaria de cultura de Bolsonaro foram desveladas no início de 2020, houve gente que dissesse, muito absurdamente, que só a música popular era considerada degenerada pelos alemães; fiquei muito chocado com essa posição, de um negacionismo histórico antissemita e/ou antissocialista e/ou antimodernista, que atinge Schönberg, Krenek, Eisler, Alban Berg e tantos outros músicos).
Flammen estreou em 1932 em Brno; o compositor nunca mais a veria, pois a montagem alemã foi impedida pelo nazismo, que mais tarde mataria o compositor, assassinado no campo de concentração de Wülzburg.
Ela dialoga, com estilos musical e teatral muito diferentes, com a obra de Mozart. Don Giovanni existe em um clima onírico. Ao contrário do que acontece na ópera de Mozart, ele consuma sexualmente suas conquistas. Em outra notável diferença, não há muito humor aqui. Nunca a vi, talvez nunca tenha sido montada no Brasil.
A ópera começa com as vozes das Sombras, que são femininas e estão presentes em quase todas as cenas. As referências pertencem à gravação de 1994, regida por Mauceri, com Kurt Westi e Iris Vermillion nos papéís de Don Juán e La Morte. Jane Eaglen canta a Mulher, a Freira, Margarethe e Donna Anna.
Don Juán faz sexo com uma mulher que pede para ser ferida e ter o sangue bebido; as Sombras repetem "sangue" ("Blut"): https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=661. Ele, no entanto, quer finalmente conhecer a morte; entendiam-no as diversas mulheres que se lhe oferecem: https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=1056. Chega uma freira para perguntar se ele se arrepende dos pecados, mas ela ri quando ele pergunta sobre a alma: https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=1238. Ele se depara com demônios; com estátuas de nobres e de ancestrais. A personagem La Morte aparece, mas ainda não fala. Está com outra mulher, que pressente nele pensamentos ruins. Ele a deixa. Ele se relaciona com Margarethe; mas La Morte chega, apaga a luz do dia e a assassina: https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=3450; Juán não consegue proteger sua amada, pois não é possível matar a morte. Ele vai para a praia e dirige-se às ondas. No ato seguinte, baile de máscaras de carnaval: https://www.youtube.com/watch?v=MY71PqF6R-Q. Ele está com Donna Anna, que teme a reação do marido: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=685. Ele tenta raptá-la, mas ela resiste e o marido, o Comendador, chega e o desafia. Arlequim chama todos para verem o duelo. Don Juán mata-o, claro, e passa a dançar tango: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=944. Donna Anna suicida-se com a espada dele, afirmando que ela pertence a quem realmente ama e que, embora vivo, ele é a própria imagem da morte: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=1310. Na cena seguinte, ele está diante do corpo dela no caixão e lamenta. Ele tenta agarrar alguma das Sombras que dançam em torno; não tem êxito; La Morte aparece, ele a chama de noiva e cobre o cadáver de Anna, dizendo que ela não mais os atrapalhará, agora não passa de uma sombra como as outras. Ela se declara a Juán: (https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=2589), que lhe rasga o véu. Ele é o único homem que consegue ver a nudez da Morte e não recuar. No entanto, eles não podem ficar juntos: ele não se unirá à dança da morte pois foi condenado a viver para sempre. Don Juán resigna-se a continuar a sua vida de sedução: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=3001. Quando as chamas do amor e da morte se reunirão, pergunta La Morte no final.
Flammen passa-me a impressão de um poema sobre a proximidade e a incompatibilidade entre a morte e o desejo. Ficou como uma obra isolada, pois seu compositor, em razão do totalitarismo, da Guerra Mundial e do genocídio, não pôde voltar a escrever para o palco e foi morto anos depois, e a própria carreira desta singular obra-prima foi interrompida, ao contrário da ópera de Mozart, que jamais deixou de ser apresentada.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro (A Judia, de Halévy, e Em busca do tempo perdido, de Proust)
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme (La serva padrona, de Pergolesi, por Carla Camuratti)
Dia 26: Uma ópera que se tornou música (O Anjo de fogo, de Prokofiev)
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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