O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Desarquivando o Brasil CLXII: Raphael Martinelli (1924-2020)

O antigo ferroviário, sindicalista, membro da Comando Geral dos Trabalhadores na época do presidente João Goulart, um dos cassados já em 1964, militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), fundador do Partido dos Trabalhadores, Raphael Martinelli, que continuava bem lúcido, morreu em 16 de fevereiro de 2020 de câncer. Ele vinha fazendo quimioterapia há algum tempo, mas por fim sucumbiu.
É um personagem muito conhecido; não lembro com quem foi parar meu exemplar da biografia, Estações de ferro: Raphael Martinelli, escrita por Roberto Gicello Bastos e publicada em 2014, época dos 90 anos do militante. Vejam-no apresentar o livro e falar de sua trajetória de operário no canal de Adriano Diogo, que na época fazia campanha para deputado federal: https://www.youtube.com/watch?v=SleoC03JnHM
Para a Comissão Nacional da Verdade, ele deu em setembro de 2014 um longo depoimento que foi transcrito: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/depoimentos/vitimas_civis/Raphael_Martinelli.pdf. Ele conta que sua primeira prisão pelo DOPS ocorreu em 1955. Eis a ficha no acervo do DEOPS/SP, sob a guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo:


Em 1970, preso pela Operação Bandeirante, ele encontrou um dos representantes do empresariado de São Paulo, que não só financiava mas frequentava os centros de tortura:
1075 Raphael Martinelli – E, é bom que fique claro também, no começo que eu estava
1076 preso, junto com os companheiros, nos primeiros dias, num daqueles dias, apareceu
1077 aquele cara que depois foi morto, como é o nome dele? Que o pessoal matou ele, que
1078 era da Ultragaz lá, como é que era?
1079 Raissa Ventura – O Boilesen?
1080 Raphael Martinelli – O Boilesen, apareceu o Boilesen lá e, o cara falando para o
1081 Boilesen, apontando para mim: “Está próximo a chegar o chefe de vocês.”
1082 Entendendo? O cara falando isso, quer dizer...
As linhas dos depoimentos são numeradas. Depois ele foi torturado no DEOPS/SP. Vejam que um dos erros de revisão do documento está no nome de Olavo Hanssen, que não foi entendido e foi transcrito como "Lauance". Certamente Martinelli falou¨o nome de forma correta, e a pesquisadora identificou logo quem era a vítima e conhecia esse caso, como se pode ver abaixo na referência ao veneno, mas a transcrição errou:
1210 Raissa Ventura – E essa história de que ele se suicidou com veneno? Existe alguma
1211 possibilidade dele ter a quem (ininteligível).
1212 Raphael Martinelli – Mentira, não tem, é tudo mentira, e mentira, mataram ele porque
1213 estava arrebentado por dentro, eu tive a sorte, não é que eu, eu lutei boxe, você ficando
1214 assim, sem querer dizer que está se defendendo [...]
O antigo stalinista solidarizando-se com o militante trotskista, que acabaria assassinado pela repressão.
Ele conta que ele, preso político, recusou-se a ser trocado pelo Embaixador da Suíça, pois não queria ser banido do país. Já que, hoje, as pessoas têm voltado a falar em queima de "arquivo", isto é, em morte de policiais ou ex-policiais que deteriam segredos que colocariam em risco os governantes, transcrevo este trecho sobre o Delegado, torturador, assassino, traficante de drogas e esteio da ditadura militar, Sérgio Fleury;
1635 Raphael Martinelli – O Fleury, você sabe o problema do Fleury, não me torturou, está
1636 certo, mas, me pressionou porque eu me recusei ir no, fazer o sequestro do Embaixador
1637 suíço, na época, me recusei, quer dizer, me preparei tudo para ir, tudo, respeitando os
1638 companheiros que fizeram o sequestro, só que na hora o Fleury queria que eu assinasse
1639 o banimento, aí estourei mesmo, falei: “Não, jamais eu vou assinar o banimento, esse
1640 país que eu amo, esse país que eu estou aqui, que eu quero acabar com (ininteligível).
1641 Aí é toda minha política, eu estou arrebentado, não precisa, não me mataram, estou
1642 ainda aqui, espero que jamais essa mão vai dizer que esse país não presta.” Que o
1643 banimento, você sabe o que é isso. Então, eu fiz o documento na hora, tudo mais, caiu
1644 na mão do meu irmão, saiu na imprensa na ocasião, está no meu livro, no meu livro vai
1645 sair a cartinha também, porque eu disse: “Jamais essa minha mão assina...” O Fleury é
1646 esse, era um bandido, um assassino, tudo mais, quer dizer, eles mesmo mataram o
1647 Fleury, entre nós, sabe disso, quer dizer, o cara era um arquivo.
No final do depoimento, vemos que permaneceu o orgulho de ter sido representante dos ferroviários, de ter-se engajado na luta coletiva dos trabalhadores:
1812 Raissa Ventura – Bom, em relação, só para finalizar, às organizações que o senhor
1813 militou, ALN, PCB.
1814 Raphael Martinelli – É, o Partido Comunista Brasileiro.
1815 Raissa Ventura – É PCB, Partido Comunista Brasileiro, Sindicato dos Ferroviários.
1816 Raphael Martinelli – Sindicato dos Ferroviários, da Santos-Jundiaí.
1817 Raissa Ventura – Da Santos-Jundiaí.
1818 Raphael Martinelli – E, o que eu fui, então, coloque a coisa aí, eu fui Gerente,
1819 também, da Cooperativa dos Ferroviários, eu fui Diretor de Patrimônio do Clube
1820 Nacional, que eu era, do SPR e eu fui representante dos empregados na Rede
1821 Ferroviária Federal, eleito por 22 ferrovias, por unanimidade, isso eu sempre me
1822 orgulho, é essa mesmo, eu sempre me orgulho, sabe? 22 ferrovias, não é fácil, não.
1823 Raissa Ventura – E, em relação a, tem uma última questão, imediatamente antes dos
1824 fatos, ou seja, das perseguições por motivos políticos, qual era a sua situação jurídico
1825 penal, o senhor já tinha tido algum problema legal que não fosse por questões políticas?
1826 Raphael Martinelli – Não, o problema, vamos dizer, a anistia é uma coisa, é uma luta
1827 que a gente travou todos esses anos pela anistia, eu fui dispensado todos esses anos pela
1828 anistia, eu fui dispensado com 20 e tantos, 26 anos de empresa, sem indenização, sem
1829 anda [nada], perdi casa, perdi telefone, perdi tudo.
Martinelli tinha sido condenado a uma pena de oito anos, diminuída para quatro pelo Superior Tribunal Militar, com base no tipo penal indeterminado do artigo 25 da então norma vigente de segurança nacional, o decreto-lei n. 898 de 1969 (sob vários aspectos, a mais draconiana das normas desse tipo na história do Brasil): "Praticar atos destinados a provocar guerra revolucionária ou subversiva".
Só fui ver Martinelli pessoalmente na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva". Seu carisma era impressionante. Na qualidade de membro do Fórum dos Ex-presos e Perseguidos Políticos de São Paulo, ele participava do Conselho Consultivo da Comissão e prestou depoimento em algumas audiências.
Sua família foi tema de uma das audiências do seminário Verdade e Infância Roubada, sobre crianças que foram atingidas pela ditadura. No vídeo, os filhos se emocionaram muito, e o pai deixou a mesa antes mesmo das falas: https://www.youtube.com/watch?v=WwkZs_0e-Jc&t=1896s.
Suas histórias foram recolhidas no livro Infância roubadahttp://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20800_arquivo.pdf. Amelinha Teles, na introdução, explica as consequências da ditadura para a família:
Enquanto ele foi perseguido e sequestrado pelos agentes da repressão, ela [Maria Augusta Martins Martinelli, a esposa] foi levada para as dependências do DOI-CODI, do jeito como costumava ficar em sua casa, descalça. A esposa de Martinelli não tinha nenhuma participação política. Mas seus três filhos ficaram sós e abandonados enquanto ela estava submetida aos interrogatórios e torturas naquele órgão.
É interessante, no livro, ver o que um dos filhos, Jaime Martinelli Sobrinho, escreve sobre a "linha stalinista" do pai; não faz sentido, evidentemente, posicionar-se contra a tortura e ser stalinista. Mas ele achava que Stálin não havia torturado... Dito isso, com o tempo, ele pôde rever alguns posicionamentos. Em 5 de abril de 2013, na vigésima nona audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva", ele saudou o funcionamento da instituição e o seu presidente, Adriano Diogo, e ofereceu auxílio:
Mas analisa o que a ditadura fez; não só como o problema de tortura, porque muitos falam nos crimes atuais; já em 1964, nós temos vários ferroviários mortos só no Golpe militar; ferroviários mortos, como os camponeses, etc., etc.
Quer dizer, a luta foi braba, foi violenta. Mil, novecentos e sessenta e oito, foi um exemplo para nós. Eu sou um cara de Esquerda, sou da ALN, fundador da ALN; mas a experiência sindical foi uma experiência nova, de 1968; porque foi a tomada, da fábrica, pelos trabalhadores. Quer dizer, uma coisa que nunca nós fizemos, porque nós fazíamos as greves, às vezes ia para casa, ia pra igreja, ia para outro lado; então, 1968 foi uma grande experiência.
Eu estou satisfeito, porque hoje encontrei, no início da Comissão da Verdade, aqui do Adriano; está colocando os velhos combatentes, que ainda nós somos aí; eu vou fazer 89, mas estamos aí, os companheiros estão aí; então, estamos discutindo para ver a influência, que nós ainda podemos ter, para que as organizações, as centrais sindicais, comecem a ter coragem de pegar isso na mão. (Palmas.) Ter coragem de pegar isso na mão. Então, nós vamos dar a nossa participação.
Em seguida, fez uma autocrítica sobre as divisões dentro da esquerda:
Está aqui o companheiro da Frente; eu era comunista e nós criticávamos a Frente. Nós não tínhamos aquela compreensão do que significava a Frente. Na greve de Perus, que era a estação ferroviária nossa, a fábrica de cimento, nós não entendíamos. Por que nós tínhamos que fazer o que? Uma frente, com a Frente também, no movimento operário. Mas nós não entendíamos isso. Nós éramos um pouco mais de Esquerda radical – os comunistas, na época.
A Frente Nacional dos Trabalhadores tinha origem no movimento católico, por isso o contraste com os sindicalistas comunistas.
A vida sindical de Martinelli começou em 1941; ele falou um pouco desse início na audiência da Comissão "Rubens Paiva" sobre as relações entre o consulado dos EUA, a Fiesp e Ditadura Militar, em 18 de Fevereiro de 2013; ele lembra que era "da greve de 1949": https://youtu.be/PhMJWjvuZY4?t=3515.
Na Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, em audiência de 13 de setembro de 2016, apresentação das recomendações do relatório, que ficaram prontas antes do texto final, aos 93 anos
Eu sou da área mais sindical. Está aqui representante até das centrais sindicais. Nós exigimos e conseguimos um dos últimos atos da menina minha presidente, o arquivo de todas as intervenções dos sindicatos do Brasil. Todo o arquivo nós conseguimos. Não sei se vai funcionar com este governo, mas conseguimos com ela, que (ininteligível) comissão, todo o arquivo. Veja a importância que nós vamos querer criar também na área sindical dos trabalhadores, o que significam os pelegos, os policiais, os canalhas que intervieram em tudo que é sindicato, federações, confederações. Isso que é importante. Isso é coisa que nós temos que deixar para a história. Isso que se faz, todas essas recomendações nós temos que jogar nas escolas, no movimento sindical, para saber o que é feito e o que foi a ditadura.
Em uma audiência da Comissão "Rubens Paiva" sobre o caso de Olavo Hanssen, ele esteve presente, pois foi testemunha ocular da tortura sofrida por Hanssen. Na foto abaixo, que tirei nesse dia, 25 de maio de 2013, Clarice Hanssen, a irmã do morto político, está de pé e fala ao microfone, e Martinelli é o penúltimo à direita sentado à mesa.


Martinelli contou que foi torturado com Hanssen; os policiais queriam saber deste os nomes da direção do Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT) no Rio Grande do Sul, bem como o local de sua gráfica, mas o operário químico não revelou nada e morreu em decorrência da tortura.
Clarice Hanssen criticou indiretamente o governo do PT na audiência (Dilma Rousseff era a presidenta), porém Martinelli o fez de forma bem explícita, especialmente a Comissão Nacional da Verdade, a questão do imposto sindical, e a lentidão da reforma agrária.
Ele estava, evidentemente, à esquerda do governo.
Ele continuou trabalhando. Quando, em setembro de 2015, as diversas entidades sindicais que haviam participado do Grupo de Trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores, às Trabalhadoras e ao Movimento Sindical, o conhecido GT 13 da Comissão Nacional da Verdade, apresentou representação ao Ministério Público Federal contra a Volkswagen, por conta dos diversos documentos que revelam a colaboração da empresa com a ditadura militar brasileira, ele foi um dos signatários como pessoa física.
Ele não viveu para ver o fim desse caso (deve sair uma proposta de acordo pela empresa no futuro próximo), tampouco para a a estreia (adiada pelo governo federal) do filme de Wagner Moura sobre seu antigo companheiro, Carlos Marighella. Permanece, no entanto, seu exemplo de luta.

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