O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Uma ópera que se tornou música: "O Anjo de Fogo", de Prokofiev (30 dias de ópera: Dia 26)

Evidentemente, se se trata de ópera, há música. Não necessariamente por todo o tempo, pois a obra pode conter várias seções de teatro falado, como no Singspiel alemão (A flauta mágica, de Mozart e Schikaneder, é um exemplo) ou no estilo da opéra comique francês (a Carmen, de Bizet, é o exemplo mais famoso).
Talvez seja algo simples para o ouvido (a melodia de "La donna è mobile", do Rigoletto de Verdi, pode ser aprendida em uma só audição, e ela é repetida no último ato da ópera), mas pode ser bastante complexa (como este conjunto vocal da crise do capital financeiro em Lulu, de Alban Berg).
Quando pensei neste tópico com título meio provocador, imaginei em óperas cuja música foi parar em outra peça musical.
Liszt fez suas paráfrases de ópera para o piano, como a do Rigoletto. Nessa época em que não havia gravações, uma forma de poder ouvir a música era tocando-a; certo é que nem todo mundo poderia tocar com a qualidade de Vladimir Horowitz o final de Tristão e Isolda de Wagner; https://www.youtube.com/watch?v=OvdQPMXerIE. Aqui, o próprio Rameau reaproveitou um tema de Les Indes Galanteshttps://www.youtube.com/watch?v=ShpQD4de-EI
Além disso, há o antigo procedimento de criar suítes instrumentais a partir dos temas das óperas, e assim poder apresentar a música sem a cena e os cantores.
Outra possibilidade é a música da ópera que o compositor tem dificuldade em encenar, ser aproveitada em uma sinfonia. Foi o que aconteceu com O Anjo de Fogo, com música e libreto de Serguei Prokofiev a partir de um roman à clef de Valery Bryusov. Ela estreou postumamente; o compositor consegiu que apenas alguns trechos fossem executados em concerto regido por Koussevtsky. Alguns de seus temas foram posteriormente aproveitados na Terceira Sinfonia.
Nunca vi esta ópera fascinante; eu a descobri nos anos 1980 graças à valorosa Rádio MEC do Rio de Janeiro.
Trata-se de uma história de possessão no século XVI. Um anjo de fogo, Madiel, apareceu a Renata quando criança. Ela vive obcecada por ele, que desapareceu depois que ele recusou fazer sexo com ela; Ruprecht ouve a história, excita-se e a assedia, mas ela o afasta. Renata quer saber o futuro, uma vidente vê sangue. Renata procura livros de magia para resolver seu problema. Ela crê ter encontrado Madiel encarnado no Conde Heinrich, que se esconde dela. Ruprecht chama o livreiro Glock para fornecer obras sobre cabala. Conseguem invocar demônios e ouvem batidas na porta. É muito linda a música do momento em que ela se desespera e cai no chão ao perceber que não conseguiu invocar o anjo, bem como o comentário de Ruprecht de que continuará a estudar magia. Ele vai atrás de Agrippa von Nettesheim, um personagem histórico. A música do entreato é intensa e parece conjurar os demônios que os personagens não conseguiram dominar. Ruprecht tenta arrancar segredos de magia de Agrippa, que mente (os esqueletos denunciam-no, porém) e nada revela. No terceiro ato, os dois estão em Colônia para buscar Heinrich. Ruprecht não consegue convencê-la de que o conde é um homem como qualquer outro. Ela conta que ele lhe disse que ela era demoníaca e exige que Ruprecht a desagrave. Ela reza para que ele apareça, e isso acontece! Ruprecht desafia-o para duelo, enquanto Renata canta seu amor por Heinrich (um papel mudo). Ela pede para que Ruprecht morra, mas não toque em Madiel... De fato, ele é quase morto no duelo. Com Ruprecht desfalecido, Renata sente-se apaixonada. Um coro feminino e os delírios do barítono ajudam a tornar a cena fantasmagórica. Ela passa a viver com o convalescente, mas o abandona depois que ele fica bem para vier em um mosteiro. Quando ela diz que há um demônio nele, fere-se, Fausto e Mefistófeles aparecem. Mefistófeles sente-se mal servido pelo menino garçom e o devora. O dono da taberna suplica para que devolvam o rapaz e isso é feito. Mefistófeles, vendo Ruprecht e sabendo que ele recebeu um fora, e lhe oferece sarcasticamente ajuda. Combinam ver-se no dia seguinte. A ópera termina no convento, onde Renata se interna, buscando paz interior; a Madre Superiora pergunta-lhe se acredita em demônios; coisas estranhas acontecem desde que chegou lá: visões, dedos que tocam as freiras no escuro, batidas na parede. O inquisidor foi chamado para exorcizar demônios. No entanto, diante dele, acaba acontecendo uma possessão coletiva das freiras! Mefistófeles, Fausto e Ruprecht aparecem na galeria. Ruprecht tenta alcançar Renata, mas é impedido por Mefistófeles. Parte das freiras avança contra o inquisidor, que proclama que ela teve intercurso carnal com o Demônio, e deve ser torturada e queimada.
Os exemplos que indiquei nas ligações vieram de uma produção inglesa encenada no Teatro Maryinsky com direção cênica de David Freeman e regência de Valery Gergiev. Galina Gorchakova interpretou Renata e Serguei Leiferkus, Ruprecht. A gravação ao vivo está disponível também em CD.
O Anjo de Fogo apresenta personagens dos mais alucinados de todo gênero histórico, confirma-o o barítono Laurent Naouri, que cantou Ruprecht. Apesar de todos os encantamentos, Prokofiev não teve sorte com a obra: ele a terminou em 1927, mas ela somente estreou em 1954, em Paris, no ano seguinte à morte do compositor, que morreu no mesmo dia que Stálin, sob cujo governo ele sofreu várias ameaças.



Só vi a Terceira Sinfonia em janeiro de 2013, pela Orquestra de Paris, naquela cidade. Também lá, poucas vezes essa música parece ser apresentada, apesar de ter estreado em Paris em 1929 sob a regência de Pierre Monteux. Somente em 1989 a Orquestra de Paris tocou-a pela primeira vez, sob a direção de Semyon Bychkov, e ela voltou a fazê-lo apenas em 2013, com Nicola Luisotti, nesse concerto em que Gil Shaham foi o solista do concerto para violino de Stravinsky. Não foi uma grande interpretação. O terceiro movimento, especialmente, não foi executado com clareza.
A abertura do primeiro movimento (Moderato) já traz o tema da obsessão de Renata. No segundo (Andante), mais calmo, ouve-se  música do Fausto. O terceiro movimento (Allegro agitato). parcialmente inspirado em Chopin, começa com música ouvida na cena de Renata tentando invocar espíritos. O final dele, porém, lembra o final da ópera. O último movimento, Andante mosso - Allegro agitato, termina com música da cena com Agrippa, tendo passado pela possessão no convento.
De acordo com Prokofiev, esta sinfonia correspondia a música pura e não dependia da ópera. Prefiro ouvir, porém, nesta música, uma possessão da sinfonia pelo drama da ópera, que lá permanece como um atraente horizonte de catástrofe.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro (A Judia, de Halévy, e Em busca do tempo perdido, de Proust)
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme (La serva padrona, de Pergolesi, por Carla Camuratti)
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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