O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Homofobia ou a porta de saída da cultura, Che Guevara, João Saldanha e Frias, novo secretário de Bolsonaro (Desarquivando o Brasil CLXIX)

Eu havia escrito, no ano passado, uma nota sobre a homofobia como porta de entrada do fascismo; não foi à toa que algumas das notícias falsas usadas com sucesso na campanha eleitoral de 2018 tivessem relação com a homossexualidade, tão mais difundidas quanto mais inverossímeis. Afinal, a inverossimilhança serve para reforçar o estigma na mente do preconceituoso. Com as injúrias homofóbicas, cultivadas também por políticos que fazem do cristianismo uma profissão, não se poderia deixar de esperar uma administração contrária a padrões decentes de dignidade humana. Algo parecido ocorreu com as declarações de campanha sobre mulheres, indígenas e negros.
Esta nota é derivada daquela outra, já que o governo continua e o problema não se resolveu.
O atual ocupante da presidência decidiu cortar o financiamento a filmes com temática LGBT em setembro de 2019, de acordo com Lauro Jardim. A homotransfobia não foi apenas tática de campanha, ela continua como ideologia de governo. J. Bolsonaro teria combinado o mesmo com a breve secretária especial de cultura, Regina Duarte, e com seu sucessor, Mario Frias, que nos revelou: "O patrão quer uma linha estética. E é essa linha estética que será privilegiada."
Essa afirmação, o Uol Notícias e Bruno Cavalcanti, no Observatório do Teatro, associaram à censura da temática LGBT. A ideia de que o governo federal deveria se curvar ao gosto de uma só pessoa é, por si só, abjeta e contrária à ideia de república. Que esse gosto se resuma a perseguição a minorias reitera a indignidade do governo, senão sua contrariedade ao direito, bem como sua hostilidade ao mundo da cultura.
Frias ainda não tomou posse, no momento em que escrevo; vejam o expediente do Diário Oficial do dia 2 de julho, com o indefectível erro de crase na última linha (repetido dezenas de vezes nesse dia) que cai tão bem nesta administração:


Frias há tempos tem dedicado suas redes à propaganda do governo, mas não o faz de forma realmente articulada; ao contrário do que se poderia esperar de um Secretário de Cultura, ou de um aspirante a esse cargo, ele nem mesmo escreveu um ensaio sobre a política cultural deste governo ou de qualquer outro. Por alguma razão que me escapa, ele parece ser mais eloquente com memes:


O absurdo de imaginar que o socialismo estivesse a atacar o Brasil, despautério multiplicado mil vezes pela fantasia de que o tal "President" estivesse a se sacrificar para defender a pátria brasileira (escrita com Z, claro), não parece prefigurar muita sensatez para a eventual gestão do futuro secretário. Momentos de infantilidade política como esse, que povoam as manifestações de Frias, chegam a colidir, noto aqui, com seu passado.
Relembro entrevista que o ator concedeu à revista Sui Generis, que surgiu no fim do século passado para cobrir temáticas ligadas aos homossexuais, com mais ênfase nos gays. Em 1999, o número com Cássia Eller na capa, além da matéria com a cantora, tinha outra, longa, com Mario Frias, com o singular título  "Sou espada, quer dizer, punhal!". O texto era de Heloiza Gomes com fotos do ator, algumas sem camisa, tiradas por Cecília Junqueira. Não vou reproduzi-las.
O curioso título reproduzia uma das falas do ator, que afirmou achar preconceito "uó", mas que "espada corta dos dois lados", então ele era "punhal", pois era "hetero assumido" [sic]; explicou ainda que era "cantado por homem para cacete. A bicharada me ama. E eu amo as bichas".
Outro ponto estranho para um ator: a entrevista não primou por análises da arte dramática, nem mesmo da sexualidade. Ele reclamou da barriga dos 28 anos, fez votos de ter cara de 33 aos 40 anos, e explicou que lia "bastante". Qual era seu livro de cabeceira? Che Guevara:


A homofobia de Che Guevara, ao menos, não era inteiramente compartilhada pelo jovem ator. 
A publicação citada era uma breve coletânea de pensamentos organizada por Emir Sader, e não exatamente um livro do revolucionário. Frias explicou ainda na entrevista que votou em Collor e em Fernando Henrique Cardoso duas vezes (sem saber, no entanto, se este era um bom presidente). 
Infelizmente, nada do que ele afirmou na entrevista de 1999 lograva erguer-se até o senso comum. Talvez somente uma pessoa ignorante da política, como ele mesmo se declarava, poderia combinar o amor por Che Guevara com opiniões como fazer campanha política era coisa para caras "feios, gordos e escrotos"... Guevara, um sex-symbol da revolução, provavelmente entrou como ícone jovem, uma figura de homem bonito e rebelde, como um James Dean. Ele foi consumido assim no século passado pela indústria cultural. 
Outro ponto inquietante da entrevista era a ideia de que a "revolução não se exporta". Ela teria que ser melhor explicada, imagino, levando não só em conta a biografia deste argentino que combateu em Cuba e foi executado lutando na Bolívia lutando em guerrilha, mas tendo em vista os escritos do autor; em Guerra de Guerrillas, por exemplo, temos a questão da solidariedade internacional e do exemplo de Cuba para os outros povos; e outros escritos, onde o internacionalismo aparece de forma clara, como "Mensagem aos Povos do Mundo, Através da Tricontinental" e "Criar dois, três... inúmeros Vietnams é a palavra de ordem", de 1967, que cito na tradução de Juan Martinez de la Cruz:
E é preciso desenvolver um verdadeiro internacionalismo proletário, com exército proletários internacionais, onde a bandeira sob a qual se luta se torne na causa sagrada da redenção da humanidade, de uma maneira tal que morrer sob as insígnias do Vietnam, da Venezuela, da Guatemala, do Laos, da Guiné, da Colômbia, da Bolívia, do Brasil, para não citar mais que os teatros atuais da luta armada, seja igualmente glorioso e desejável para um americano, um asiático, um africano ou até mesmo um europeu.
O texto foi recolhido em Revolução Cubana, publicado pelas Edições Populares. A formulação faz lembrar a do direito cosmopolita kantiano, porém sob bases materialistas e com a ação revolucionária no lugar dos direitos humanos. Poucos anos depois, a guerrilha urbana seria derrotada no Brasil. A rural, no Araguaia, com militantes do PCdoB, seria descoberta pela ditadura antes mesmo de começar: sua luta foi de defesa, e entre eles estão vários dos desaparecidos políticos dessa época.
Talvez o jovem Mario Frias não fosse, de fato, a pessoa que tivesse a visão mais esclarecida sobre o que aconteceu no mundo e no Brasil durante as décadas de 1960 e 1970. Deveríamos ter esperado tanto dele? Talvez não, embora tivéssemos toda a razão em esperar que as décadas que se passaram lhe tivessem trazido um melhor entendimento da história. Afinal, os atores existem na sociedade, cabe-lhes expressar, potencialmente, todas as visões de mundo existentes e até mesmo as que não foram formuladas ainda, porém se materializam diante da plateia. É uma profissão que consiste em dar sentido ao humano e, por vezes, ao não humano e, nisso, imagino que ela exija quase tanto quanto a do escritor, que deve inventar esses sentidos no texto.
Respeito muito os a(u)tores; obviamente, eles têm que ler, sentir e experimentar muito para poderem realizar com dignidade seu trabalho.
Teria a compreensão histórica de Frias se desenvolvido às vésperas de completar cinco décadas de vida? Receito que talvez não, ou não completamente. No campo do "preconceito uó", tememos que tenha piorado, em razão de sua adesão à "linha estética" do chefe. Em outros temas, é provável que também tenha regredido. Vejam a resposta do ator a esta consideração justa de Marcelo Courrege:



O antigo leitor de Che Guevara está, em radical negacionismo histórico, tentando desmentir o histórico de João Saldanha no Partido Comunista Brasileiro, o que é absurdo. Não vou falar de Bebeto de Freitas, que foi contrário ao boicote das Olimpíadas de Moscou, mas do antigo comunista.
Neste relatório do SNI sobre a "Festa do 63o. aniversário do PCB", na verdade uma série de atos, um dos personagens foi, evidentemente, João Saldanha.


Ele se apresentava como militante, por sinal. Não se tratava de segredo descoberto pelo Serviço Nacional de Informações.


Evidentemente, quando, na volta das eleições diretas para prefeito das capitais, João Saldanha foi o vice da chapa encabeçada por Marcelo Cerqueira, seu nome foi uma escolha do PCB; agora, um documento do Centro de Informações da Aeronáutica:


Trata-se do ano, 1985, em que ele o PCB voltara à legalidade; seu programa pudera ser registrado novamente, depois de o Supremo Tribunal Federal tê-lo cassado em 1947. O SNI deu-se o trabalho de fazer um relatório com estes documentos públicos do Partido para fichar todos os signatários:


João Saldanha, claro, estava entre seus (re)fundadores:


Saldanha, porém, estava entre os militantes comunistas desde os anos 1940. Ele havia ingressado no PCB em julho de 1945, segundo esta informação do SNI de 1970, ano da Copa do Mundo de futebol masculino em que a seleção do Brasil, cujo time fora formado por Saldanha, chegou ao tricampeonato.


A vitória no futebol em 1970 foi usada politicamente pela ditadura militar, como se sabe. 
Está esgotada, infelizmente, a biografia João Saldanha: Uma Vida em Jogo, de André Iki Siqueira. Nela se conta que sua demissão da Copa de 1970 teve relação com a militância política do treinador de futebol, o que incluía a denúncia internacional das torturas e das prisões políticas. João considerava o ditador Médici "o maior assassino da história do Brasil", lembra o biógrafo, autor também de documentário.
Estivera vivo Saldanha, é possível que estivesse a denunciar o governo a que tanto quer pertencer seu sobrinho-neto, algo muito pior do que um time de pernas de pau.


Nota: Os documentos reproduzidos foram consultados no acervo do Arquivo Nacional, mais especificamente nos Fundos do SNI e do CISA.

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