Eu tive de ser convencido por gente muito próxima a iniciar um; eu não cogitava entrar neste exercício de escrita em razão, francamente, da preguiça: se ninguém iria ler, por que se dar ao trabalho de criar uma coisa dessas? O mesmo raciocínio que me levou a adiar a escrita de um romance até 2017 (publiquei-o em 2019).
A premissa do raciocínio não estava errada, claro. Mesmo assim, eu me enganava: não importa realmente que as pessoas não leiam, elas façam o que quiserem; o que importa é se ainda quero escrever algo neste veículo, que é útil para mim: o blogue serve para, na luta com a forma, pensar um pouco e para rascunhar textos. Trata-se um pouco da experiência de pensar com os outros, o exercício de escrever para um auditório potencial (nem precisamos pensar na teoria da retórica para sentir isso). Nisso, pode haver alguma alegria.
O blogue serviu até mesmo de rascunho para textos alheios, como as referências a documentos sigilosos da ditadura que fiz aqui e levei depois para os relatórios das Comissões da Verdade do Estado de São Paulo e da Prefeitura de São Paulo. Muitas vezes, porém, não consigo melhorar o que esbocei aqui, como o provaram Canção de ninar com fuzis e, em menor escala, pois tinha bem mais material inédito, O desvio das gentes. Evidente que, para ficar muito melhor, precisaríamos de outro escritor...
Acho improvável que o blogue sobreviva a mais dez anos, mesmo que, nesse tempo, eu mesmo não desapareça e que, ademais, continue apto para escrita, porque as virtualidades são muito efêmeras. Como o século XXI já é o das calamidades e dos acidentes globais (Virilio ainda será repensado, imagino), nem mesmo vejo como contar que essas coisas não se percam completamente ou não sejam apagadas, ou que alguma alteração no modelo de negócios na internet decrete o fim destes cantinhos para a leitura. O espaço da internet é o da amnésia, ou, melhor, do apagamento. Também o da censura, seja do capital, seja do Estado, que provavelmente encontra um meio muito mais propício na internet do que nas bibliotecas e discotecas físicas.
Um cantinho para... leitura? Sim, apesar da estupidez militante e/ou institucional do meu país; não precisamos nem lembrar desta nova temporada da série violenta e fracassada dos militares no poder, com o espetáculo de sandices que, no entanto, é tão representativo do Brasil. Nem mesmo é possível publicar algo como um Febeapá ("Festival de Besteira que Assola o País"), nos moldes do que Sérgio Porto criou, com três volumes de crônicas assinados como Stanislaw Ponte Preta, sobre o estado de coisas sob a ditadura militar. No bolsonarismo, o caráter enciclopédico de uma tal empreitada exigiria uma equipe numerosa. De 1964 para cá, muita coisa se degradou, até mesmo a instituição que produz generais que não sabem o tamanho do Brasil e da Europa, tampouco onde é traçada a linha do Equador. Isso, lamenta-se, foi o melhor do que a direita e o capital conseguiram produzir neste anão diplomático em que eles transformaram o país.
Em termos de registro do "Febolsoapá", que exigiria uma biblioteca infinita, minha última contribuição foi a nota sobre o secretário nacional de cultura: "Homofobia ou a porta de saída da cultura, Che Guevara, João Saldanha e Frias, novo secretário de Bolsonaro (Desarquivando o Brasil CLXIX)".
Não sei se este blogue consegue refletir sobre esta nova barbárie, ou se é apenas o reflexo dela. Gostaria de que fosse o primeiro caso. Mas cabe aos leitores julgar, e não os conheço. Quem lerá? Isso é um mistério. Muitas vezes a maior parte das visualizações deste blogue vem dos EUA; talvez nem todas sejam por acidente, pois há brasileiros, muitos, naquele país.
Sempre há alguém que dê uma olhada no que escrevemos, o que traz responsabilidade, embora não imaginemos quem o seja, o que gera surpresas. Tive vários exemplos que mo confirmaram, como o de uma nota que escrevi sobre o recital da obra de um(a) certo(a) autor(a). "Postei" a ligação em certa rede social e a pessoa envolvida apôs um coraçãozinho. Era algo completamente excepcional, ter recebido essa atenção; não foi isso que me espantou, porém, pois em geral os autores só divulgam ou gostam de algo daqui quando trato deles mesmos (não posso pretender que as resenhas que rascunho gerem muito interesse crítico). A revelação para mim, aconteceu depois, quando descobri, em conversa pessoal, que a pessoa não sabia que eu tinha mencionado na nota os poemas apresentados (nem mesmo os recordava, algo realmente notável). Embora a tivesse marcado na rede social, não leu a nota que escrevi (que ainda vale, creio, para documentar aquele ponto da obra).
As redes sociais servem para isso também, fingir leitura; engana-se quem pensa que se limitam a veículos de disseminação de discursos de ódio e notícias falsas.
No entanto, outras pessoas realmente tomaram conhecimento daquela nota que fiz, e a finalidade de divulgar a poesia brasileira foi cumprida, dentro dos limites do alcance do que escrevo. O procedimento de jogar nas ondas garrafas com mensagens, se levar a alguma comunicação, será com terras desconhecidas. Isso me agrada.
Um cantinho; como isto é quase invisível, efêmero e, enfim, pequeno, merece respeito; por essa razão, convenci-me a escrever esta nota, apesar da imodéstia um pouco ridícula de pensar no aniversário de algo que nós mesmos fazemos.
O blogue acabou não tendo realmente um foco temático, seguindo o que desde o início avisei; afinal, ele não espelha meus conhecimentos, e sim minha curiosidade; há coisas sobre música (que só posso escrever na minha condição de ouvinte e, talvez, de tenor de coro). Algumas receberam atenção, como a homenagem póstuma que escrevi ao barítono russo Dmitri Hvorostovsky; claro que foi bastante lida por causa do renome mundial do grande cantor, que tive a sorte de ver ao vivo duas vezes. Há notas sobre literatura, evidentemente; algumas delas estão entre as mais lidas, com destaque para a entrevista que eu e Fabio Weintraub fizemos com Vitor Silva Tavares, o grande editor português, responsável, com Alberto Pimenta, pela minha estreia em livro (O palco e o mundo, claro). Nós a fizemos em 2007, eu a publiquei aqui em 2012. O veículo onde ela saiu originalmente desapareceu, exemplo da efemeridade das coisas virtuais.
No blogue, claro, estão diversos diversos textos sobre Alberto Pimenta, o maior poeta vivo da língua portuguesa, inclusive o ensaio sobre a inexistência desse autor, publicado pela primeira vez em 2002 em outra revista on line que desapareceu. Resgatei o texto em 2010 para o blogue; em 2004, publiquei-o em versão ampliada na antologia A encomenda do silêncio, ainda a única da poesia de Pimenta publicada no Brasil. Dos vários escritores brasileiros, o texto que escrevi sobre o poeta Zeh Gustavo é o mais consultado.
No campo do direito, há várias notas, sempre sobre aqueles campos ou temas que foram alvo de minha escrita acadêmica: direito urbano, teoria do direito, direito internacional público e justiça de transição e, sempre, direitos humanos, que foi a via que encontrei para entrar no assunto dos direitos dos povos indígenas, a quem o governo Bolsonaro resolveu negar até mesmo a água potável, enquanto o genocídio se acelera com a invasão de vírus, mineradoras e grileiros.
Sobre o último tema, recordo especialmente a palestra que dei em um seminário, "Memória, Verdade e Justiça: Passado e Presente na América Latina", organizado em contraponto ao convite que a FFLCH/USP fez a a um político que os movimentos indígenas já haviam chamado de genocida, e que deu assessoria na construção da nefasta Usina de Belo Monte: "Desarquivando o Brasil CXXXVIII: Ações anti-indígenas de Delfim Netto". O evento do poderoso personagem tinha muito mais público, evidentemente, apesar da presença de nomes como Amelinha Teles e Adriano Diogo, militantes históricos da esquerda brasileira, no seminário de que participei.
Essas notas de ordem jurídica, não as concebo para o público especializado. Outra recordação, a propósito, da imprevisibilidade do público: fiz com Joana Brasileiro a curadoria de uma exposição sobre documentos da campanha da anistia dos anos 1970. Um(a) professor(a) especialista no tema de justiça de transição ficou muito intrigado(a): como é que eu teria conseguido encontrar aqueles documentos? Euzinho? Bem, essa pessoa seria o público especializado e, como escrevi artigos acadêmicos a partir desses documentos, essa fala me alertou para a possível irrelevância da minha pesquisa; tenho refletido nisso.
Porém, com o público geral, para quem escrevo estas notas, talvez haja, de fato, alguma circulação desses textos, e certamente essas pessoas já notaram que comentei e/ou reproduzi centenas desses documentos, que, em regra, não foram analisados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV): tanta coisa ficou de fora, prefiro me concentrar nas lacunas. Na verdade, o trabalho das comissões da verdade, iniciado tão tardiamente no Brasil, NUNCA foi devidamente concluído; há muito ainda a investigar e descobrir embora o governo federal e os estaduais e municipais não tenham, em regra, criado órgãos para a continuidade das pesquisa. Nessa omissão, muitas vezes violaram recomendações de suas próprias comissões, como é o caso do governo federal. A recomendação 26 do tomo I do relatório da CNV previu, com propriedade, o "Estabelecimento de órgão permanente com atribuição de dar seguimento às ações e recomendações da CNV", que teria, entre outros poderes, o de "monitorar o cumprimento das recomendações da CNV, com acesso ilimitado e poderes para requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades do poder público, ainda que classificados em qualquer grau de sigilo, constituindo grupos de trabalho e pesquisa e instalando escritórios nas unidades federadas onde forem necessários". Nada disso foi criado, e Bolsonaro tem violado várias das recomendações do relatório. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", na segunda das recomendações de "medidas de memória e verdade", recomendou a "Criação da Comissão Permanente de Investigação dos Crimes da ditadura militar e suas consequências nas políticas atuais do Estado e na vida social". João Doria não realizou nada a respeito, Alckmin tampouco o fizera.
Boa parte desses textos sobre documentos que encontrei foi inspirada por algum assunto do momento. Provavelmente por essa razão, a maioria do material do blogue que jornalistas copiaram ou em que se inspiraram fortemente tratava de temas da ditadura.
Curiosamente, a nota que mais foi lida, a única com quase quinze mil visualizações (creio que a maior parte das visualizações seja meramente acidental; estimo que pelo menos um décimo desse número leu, porém, o texto) foi uma das que cruzava literatura com justiça de transição: "Desarquivando o Brasil CXXXIII: Raduan Nassar e a ditadura militar". Esse tipo de encontro de áreas é uma das coisas que sempre suscitaram asco em vários ex-colegas na academia (e eles venceram, devo reconhecer), mas continuo persuadido de que é necessário tratar do palco no mundo, e do mundo no palco. Não foi à toa que fui fazer o pós-doutorado em Teoria Literária na Unicamp (com a supervisão de Eduardo Sterzi, um dos maiores poetas brasileiros) para tratar de justiça de transição.
Ler, contudo, é realmente mais importante do que escrever, e um blogue também serve para ler os outros; não exatamente os comentários a meus textos, que não são frequentes, o que deve ser o resultado da necessidade de minha aprovação para que o comentário seja publicado (publico quase todos, inclusive os que me xingam; apago só os que conclamam ao extermínio de minorias e à pratica de chacinas, infelizmente não incomuns, tendo em vista a extrema-direita no poder) e das instabilidades do blogspot. O blogue representa uma oportunidade especial para ler outros; por isso, à direita, está a lista deles, configurada de forma que o último a ser atualizado apareça primeiro. A seleção que fiz apresenta blogues são de natureza diversa: alguns publicam textos com caráter de crônica; outros, de ensaios; alguns são de divulgação científica; há os literários... Esta modalidade de plataforma pode abrigar tudo isso, ela não se restringe a um gênero específico.
Desde 2013, dou-me o trabalho de fazer uma retrospectiva anual, sempre com um tema diferente. Claro que nunca faço algo ensimesmado como uma antologia dos textos do próprio blogue; em 2017, tive a ideia de fazer uma com referências aos textos de outros blogues, apresentados pelos meus breves comentários. Foi divertido fazer e pensar numa ideia de rede desses veículos - que, reconheço, é algo mais potencial do que efetivo, tendo em vista que prevalece, mesmo em autores que se dizem de esquerda (falsamente, claro), a cultura neoliberal de escrever como um "empreendedor", produzindo produtos para o mercado em concorrência com os outros. Gente assim não vai entrar em rede, salvo no espírito de oligopólios... Ou, quem sabe, no de "capital social"...
Algumas das notas deste blogue que pretendiam participar de alguma intervenção talvez tenham efetivamente ajudado na divulgação dos problemas concernentes, como uma das que escrevi sobre o Teatro Oficina e sua luta contra a sanha antiteatro e antiurbanística do grupo S. Santos: "O Teatro Oficina vs. o reino da Devastação: O Rei da Vela de Oswald de Andrade e o Condephaat". Felizmente, a mobilização do Teatro, que encontrou grande respaldo social, encontrou êxito. Não foi o caso de outras, como a de Pinheirinho, Aldeia Maracanã, da campanha contra Belo Monte... No entanto, creio que em todas estive no melhor lado. Pena que minha contribuição não pudesse ser maior do que eu mesmo.
Não sei se me surpreendeu em algum momento que, das séries que fiz aqui, como sobre educação, sobre direito urbano (a última foi em 2019, "Desbloqueando a cidade XII: O direito à cidade e a imaginação jurídica", com dois temas que me interessam provocar no direito, o da imaginação e o da cidade), aquela em que mais perseverei tenha sido a "Desarquivando o Brasil". Este nome foi dado a uma campanha de anos atrás de que participava, entre outros, a historiadora Janaína Teles; mais recentemente, foi o título de uma campanha virtual sobre justiça de transição, coordenada pela jornalista Niara de Oliveira, e a que resolvi aderir. Por causa desse campo, tive de criar a página no blogue sobre justiça de transição, que organiza um pouco os assuntos e indica os documentos em ordem cronológica. A série chegou em 3 de julho ao número 169, com o texto sobre a Secretaria Nacional de Cultura.
Continuo persuadido de que a questão do legado da ditadura é central para a sociedade brasileira. É claro que fracassamos redondamente nessas campanhas, a eleição de Bolsonaros, bolsobíblicos, bolsoliberais, bolsopistolas, bolsocítricos, bolsomotosserras e bolsogenéricos comprova-o. Nesse assunto como em outros, fiz neste blogue e alhures o papel de Cassandra. Lembrem que a primeira crítica ao 00 feita aqui data de 2011: "Sexualidades que se desviam da direita: Bolsonaro e a Medicina Legal". No fim de 2017, falei das consequências para a política e para a esfera pública dos bots, que foram tão importantes para as eleições do ano seguinte: "Filosofia política e robôs na internet: uma nota sobre democracia, notícias falsas, ilusões e políticas grosseiras".
Não estou sozinho, contudo, nessas críticas.
Enfim, é necessário tentar de novo para fracassar melhor... Não há como escapar de Beckett, se lidamos com literatura! E, provavelmente, também com a justiça.
Lembro de uma carta da época do Nobel de Literatura para Beckett. Em 14 de novembro de 1969, ele escreveu a Stuart Maguiness (que havia indicado sua candidatura à Academia sueca) sobre o prêmio: "Tentei não ganhá-lo & falhei." Em ganhar há também um fracasso, naturalmente. No entanto, o oposto seria melhor? Ele continua: "Não sei se era certo aceitar. Provavelmente não existe certo nesta situação." É mais ou menos o que penso sobre continuar escrevendo, aqui ou alhures: não se devem superestimar fracasso e sucesso que, ademais, nem sabemos no que realmente consistem.
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