Sobre a pretendida reforma da previdência no Brasil, ele afirma: "se houvesse uma democracia, o povo seria convidado a tomar uma decisão". Ele deixou bem claro que não estamos em uma democracia, e o público presente não discordou; creio que uma boa parte era da própria UnB, que é um dos alvos de sucateamento do governo de Temer. A Jornada reuniu pesquisadores de vários Estados e também estrangeiros.
Sobre a tendência de as pessoas só falarem com semelhantes em redes sociais, Milton Meira do Nascimento considerou que "o espaço público não pode ser um espaço de bolhas" e indagou: "por que não sentar-se à mesa e discutir?"; depois de falar dos efeitos nefastos da privatização e do "descaso generalizado" com o que é público, considerou que "a invasão das bolhas no espaço público impede que haja uma percepção do espaço público, pois, quando você entra como bolha, você entra defendendo seus interesses até a morte".
O filósofo estipulou pontos para a reforma política, no sentido de fortalecer a soberania popular, bem no sentido oposto do que indica o Congresso Nacional; "nós estamos caminhando a largos passos para uma ditadura", advertiu.
Boa parte da discussão que se seguiu, e não foi gravada, teve como objeto esta questão: é possível conversar com os "coxinhas"; e com os fascistas? Alguns se opuseram a essa abertura proposta por Milton Meira do Nascimento. No último dia da Jornada, houve duas mesas simultâneas à tarde, que acompanhei parcialmente, que eram basicamente opostas: de um lado, os filósofos da guerra querendo o confronto e o enfrentamento; do outro, os psicanalistas falando de escuta clínica e de atendimento de não importa quem no espaço público.
Perguntei-me, então, com quem se pode falar? Todos que estão a proferir discursos são, realmente, cidadãos? O espaço da discussão, creio, fecha-se com a presença de milhões de identidades falsas na internet, que não foram criadas para discussão, mas para fins de guerra ou de disputa (de mercados, de cargos), seja de governos, de partidos ou de empresas. Não correspondem a membros da comunidade política.
Essa questão não foi abordada naquele instante, mas, depois do evento, fiquei a observar mais detidamente essas identidades talvez falsas. Alguém que entendesse da internet poderia escrever algo interessante sobre isso; não é meu caso, apenas escreverei uma nota lembrando de Hannah Arendt sobre o descarte dos homens no mundo da produção: eles poderiam tornar-se inúteis até para serem explorados - e isso seria o pior que poderia acontecer. No artigo "Sobre a violência", de Crises da república, em que explica a diferença entre violência e poder, ela imagina outra possibilidade de descarte do humano: "Somente o desenvolvimento de soldados robôs que eliminassem [...] o fator humano por completo e permitissem a um só homem com um botão de comando destruir a quem lhe aprouvesse, poderia mudar esta supremacia fundamental do poder sobre a violência." (cito a tradução de José Volkamnn, publicada pela Perspectiva).
E os robôs no discurso, no mundo da ação, substituindo os homens? O robô sempre será, imagino, a voz de quem o produziu, seja o mercado, seja o Estado. Não teremos um contrato social com ele. Arendt não chegou a pensar nisso, mas creio que, nos termos dela, esse seria o final da política.
Na minha pequena experiência, creio, pelas centenas de spams que recebo em outro blogue, creio que a maior parte da internet é composta por robôs, entes automáticos ou semiautomáticos. Além do uso para golpes e outros tipos de negócios, eles estão na política. Matéria do El País (de Javier Salas, "Robôs e ‘trolls’, as armas que Governos usam para envenenar a política nas redes", em 24 de novembro de 2017) indica apenas trinta Estados em que os governos empregam perfis falsos para distorcer o debate público, com referências aos milhões de contas falsas russas comandadas pelo que chamam de "mais famosa fazenda de trolls do planeta: a Internet Research Agency (IRA)", tão significativas para a vitória do atual presidente dos EUA. As contas no Twitter não foram apagadas para não prejudicar "o crescimento da companhia"; em outubro deste ano, a empresa reconheceu que superestimou seu número de usuários (vejam a matéria de The New York Times). O Twitter tem verificado contas, e uma das razões para perder a verificação é a de enganar as pessoas intencionalmente ao alterar nome ou biografia, bem como promover a violência (segundo este texto, que, aparentemente, não tem sido aplicado a governantes).
Foi chamada de efeito de "comportamento de manada" a possibilidade de perfis falsos direcionarem comportamentos. Eles estão sendo "incorporados" às Forças Armadas dos Estados para "modelar comportamentos por meio de narrativas dinâmicas", "shaping behaviours through the use of dynamic narratives", como anunciou o Ministério da Defesa do Reino Unido em 2015: trata-se da guerra na era da informação. É significativo que funcionários do Facebook, que tem "Big Data" de seus usuários e sabem como direcionar anúncios por meio dos algoritmos, tenham sido consultores da campanha de Donald Trump.
Além de perfis falsos, há quem veja malefícios na própria dinâmica das redes sociais. Leio que um ex-diretor no Facebook, Chamath Palihapitiya (outra matéria de El País), pensa estar ocorrendo uma limitação nas "interações humanas", bem como um défice no "discurso civil", o que envolve as informações falsas; outros nomes que trabalharam nessa rede afastaram-se dela completamente e a criticam como "ferramenta de manipulação em massa".Talvez a dinâmica de redes sociais como o facebook suscita seja favorável ao fascismo na medida que a polarização política permite mais venda de anúncios e mais lucros, apontam outros (The Verge, "How Facebook rewards plarizing political ads", por Casey Newton):
“Facebook’s profits depend on people coming back, clicking and sharing things,” said Alex Howard, deputy director of the Sunlight Foundation, which advocates for transparency in political advertising. “It’s not based on, ‘did we arrive at a resonated discourse on this policy proposal?’ or ‘did the best questions get asked at this town hall?’ or ‘did this politician get fact-checked on the lies that he or she was propagating?’”
Há perfis automatizados, programados para disseminar certos tópicos ou mensagens de determinada contas, mas há também aqueles, humanos, pagos para determinada campanha, legenda política ou produto (tudo, enfim, é um produto). Esta sequência de tweets mostra como os "bots" conversam: https://twitter.com/RedIsDead/status/939480257073004544. Um deles foi apagado pela rede social.
Transcrevo o curioso diálogo:"Trump is Protecting America! He is our president!", "yeah he sure is", "I ordered 2 of them", "oh great i am also going to order", "That would be great" "We Love our President". Ele todo segue a lógica da mercadoria; a inusitada frase de que encomendou ou comprou 2 deles, embora aparente quebrar o contexto, revela-o plenamente, pois não estávamos diante de uma discussão política, e sim apenas de propaganda do plutocrata em questão.
Os ciborgues são comandados em parte por computadores, em parte por humanos e imitam de maneira mais eficaz o comportamento de uma pessoa real. Esta matéria de Juliana Gragnani estabelece uma taxonomia desses perfis, ("Como identificar os diferentes tipos de fakes e robôs que atuam nas redes", BBC Brasil, 16 dez. 2017) destinada a ficar obsoleta mais adiante, com os novos produtos do mercado da desinformação.
Como identificar um "bot"? Kyle Murray deu algumas dicas analisando este perfil de admiradora de Trump e Putin: https://medium.com/@TheKyleMurray/fight-on-line-the-curious-case-of-proud-trojan-jenifer-stevens-c6bf35b12f7. No Twitter, ela não tinha fotos pessoais, não identificava a empresa de que seria CEO; no Facebook, usava a mesma foto para diferentes postagens, e as fotos do perfil não eram da mesma pessoa.
Muitos simplesmente repetem a mesma mensagem: https://twitter.com/KaizerGabriel/status/943552159664230402
Esses eram da Igreja Universal, combatendo a reportagem portuguesa sobre o tráfico de crianças que seria promovido por essa Igreja. No Brasil, curiosamente, muitos desses perfis são seguidores de J. Bolsonaro, político mencionado por Milton Meira do Nascimento, naquela palestra, como alguém que deve ser enfrentado no debate público. No entanto, uma das formas de ele (e seus filhos) evitarem esse debate é justamente cercar-se desse exército virtual, pronto a realizar ações de massa contra eventuais adversários. Por algum motivo que me escapa, há uma série de perfis duvidosos nesse entorno. Imaginem uma suposta página de feministas com aquele político que não só responde como se fosse um sujeito masculino como faz piadas contra as mulheres? Vejam aqui: https://twitter.com/AnarcoFino/status/921568357681389568
Fernando Marés de Souza apontou, já em 2014, a falsidade da maior parte desses apoiadores virtuais. Ele escreveu que o "Brasil tem 140.646.446 eleitores. Destes, 140.647.451 assinaram petição a favor de Bolsonaro": https://twitter.com/roteirodecinema/status/450298497359970304.
Como ele poderia ter mais apoiadores do que o Brasil tem eleitores? Fenômenos como esse podem explicar-se como o fruto milionário do uso de robôs. A "inundação de perfis reacionários" na internet deve-se a isso.
A possibilidade de um pequeno grupo parecer uma multidão (cito Jake Laperruque: "Essentially, the software allows a small group of individuals to pose as an extremely large group of people online") tem implicações no direito eleitoral, tendo em vista a possibilidade de manipulação do debate público. Tendo em vista a propensão desses perfis de propagar notícias falsas, o desafio é grande. Gilmar Mendes, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, previu dificuldades no combate às notícias falsas.
Na verdade, o Judiciário não quer atacar a questão: "Os ministros não devem proibir definitivamente o uso de robôs em campanhas para divulgação de agenda e plataformas de governo". É necessário, no entanto, distinguir os robôs que fingem ser humanos, e não tratar a questão como qualquer outro tipo de propaganda: quem tem mais dinheiro, compra mais panfletos, por exemplos. Proibir, para efeitos eleitorais, notícias falsas e não perfis falsos parece-me um contrassenso, pois esse tipo de perfil é, em si mesmo, uma informação não verdadeira: a informação de que existe aquele eleitor e ele apóia ou combate determinado partido ou candidato.
Além da barreira linguística, mais pronunciada para cidadãos daquele Estado, há o fato de o perfil nunca ter escrito nada e ter poucos seguidores (doze), todos, aparentemente, na mesma situação de militância política.
Claro que não digo que esse perfil é um bot, mas apenas que se parece com um, neste momento em que tantos humanos se assemelham a robôs e vice-versa, inclusive no nível de domínio das estruturas linguísticas.
Pode-se até pensar que aqueles dois perfis vieram da mesma origem.
Alguns desses perfis querem dados alheios e apresentam mensagens do tipo "Quer ganhar dinheiro? Cadastre-se no link". Deve funcionar, há ingênuos que têm algum dinheiro...
Pode ser um sinal de identidade falsa o nome do avatar e da arroba não coincidirem, e o da arroba parecer uma combinação aleatória de algarismos e letras.
Outro elemento a se considerar é o fato de terem poucos seguidores (alguns deles, no entanto, têm centenas de milhares, como se fossem latifúndios de robozinhos), e, desses, muitos com perfis em inglês, em geral com referências a Jesus, e/ou a Trump e o Partido Republicano, e/ou a serviços sexuais.
Acho que verificar quem são os seguidores é decisivo. Esses perfis de apoio a Bolsonaro que não se aparentam a pessoas reais são, em geral, seguidos por perfis em várias línguas, inclusive asiáticas, embora só escrevam em português, o que é estranhíssimo. Alguns não têm foto, muitos apresentam a bandeira brasileira (às vezes com um olho, talvez numa alusão a sua atividade de vigilância), afinal "Existe um povo que a bandeira empresta/ P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...". Muitos dos mais violentos apresentam-se com referências a times de futebol e/ou ao Cristianismo e pedem "intervenção militar", isto é, golpe de Estado. É possível que os criadores desses perfis esperem encontrar no futebol e nessa religião o exército de reserva do fascismo.
Muitos desses perfis apresentam fotos daquele juiz em Curitiba cuja imagem mais célebre mostra-o rindo com o senador da frase "um que a gente mata ele". Margaret Thatcher e Ronald Reagan aparecem também. Mas, principalmente, Trump. É curioso notar que outros perfis, embora apresentem frases para atrair indecisos, como "não possuo político de estimação", expõem fotos de políticos fascistas e retransmitam suas mensagens... Muitos são perfis que prometem retribuir todos os que os seguirem, ou prometem o impacto do Twitter para os negócios.
Existem perfis militantes que tuitam centenas de vezes por dia; em geral, repassam mensagens de outrem. Mas há também perfis automatizados que o fazem. Vejam, ao lado, esse, que não identifico, que repassa mensagens de Bolsonaro e de pessoas da direita (no caso, este senhor Moura Brasil). Na parte inferior, à direita, pode-se ver o horário de cada um dos três quadros. A cada minuto, sessenta tweets novos. Um por segundo; poderia ser ação humana?
Diversos perfis militantes do monarquismo fazem campanha por Bolsonaro, o que não deve surpreender, pois eles se encontram politicamente no campo do antirrepublicanismo.
É curioso, no entanto, que políticos (em geral de partidos de direita, como o PSDB) e militares sigam perfis obscuros dessa natureza, que estão em campanha por aquele político (campanha ilegal, ademais, pois ainda não chegou a época no calendário eleitoral).
Talvez esses políticos e militares o façam em uma atividade de vigilância, em vez de adesão ao projeto político? Pode-se indagar. Veja-se este general, comandante militar da Amazônia, que segue diversas contas de pequena expressão que defendem o golpe militar e/ou Bolsonaro.
Este artigo de Robert Gowa, "Computational Propaganda in Poland: False Amplifiers and the Digital Public Sphere", realizado no âmbito do Computational Propaganda Project, da Universidade de Oxford, analisa os bots, os trolls e os perfis e notícias falsas na Polônia, e confirma que um "muito pequeno número de contas suspeitas de serem bots" é extremamente ativo nos tópicos políticos e pertence, a maioria, à direita. Suspeita-se da influência russa; jornalistas que escrevem artigos críticos sobre esse país recebem ameaças: "This seems to have become particularly common for journalists and other civil society members, with one interviewee noting that although he had gotten used to the spam and harassment that he would receive after he published articles critical to Russia, it became particularly worrisome when he began receiving private Facebook messages from anonymous accounts that threatened his wife and children by name."
Muitos dessas ameaças vêm dos trolls, os bots sendo menos comuns na Polônia; eles, no entanto, estão espalhando discursos altamente xenofóbicos e incitadores do ódio.
Há muitos desses perfis no Brasil; gostaria de ver um estudo como esse aqui. Como sou leigo na questão, imagino três questões vinculadas ao problema:
a) A quimérica autorregulação não funcionará. As redes sociais, em seu modo de produção, já mostraram que não controlarão o fenômeno, não apenas porque é uma fonte de lucro, mas porque a dignidade não faz parte daquela produção. Vejam que o pessoal que cuida de verificar o que está sendo escrito no Facebook ganha salário mínimo por jornada de oito horas diárias. Não se trata de uma atividade que a empresa valorize.
b) Um possível fim da neutralidade da internet assegurará um aumento da grande desigualdade no espaço público em prol do capital e do Estado, certamente acentuando e fortalecendo as contas e notícias falsas.
c) Parece-me, enfim, que o problema das notícias falsas talvez encontre um terreno mais fértil nos aplicativos de mensagens, mais ainda do que nas redes: com o iletramento estrutural e militante (a ruína da educação é dos projetos políticos mais tradicionais na sociedade brasileira, galhardamente acelerado por Temer), o fenômeno de pessoas se informarem antes por mensagens (com "memes" ou não) do que por periódicos se multiplicará. A impossibilidade de análise e de contextualização nesses meios infensos ao texto não impede, muito pelo contrário, insultos, conspirações e mentiras.
Levando em conta os grupos familiares, de amigos e de colegas, em que se divulgam essas coisas, trata-se de mais um fenômeno de privatização da discussão pública, cuja estupidez fundamental é diretamente proporcional às paixões de ódio e ressentimento que as mensagens suscitam. Daí ideias estúpidas como "nazismo de esquerda" se espalhem nesses meios em que a inteligência e a decência são estrangeiras (decência, pois penso na leviandade intelectual de criar ou divulgar informações sem fonte ou contrárias às fontes).
Lembrando de Milton Meira do Nascimento, especialista em Rousseau, termino esta nota com uma citação de A nova Heloísa. Na carta XXIII da segunda parte do livro, temos uma discussão sobre a Ópera de Paris e dos efeitos desse espetáculo sobre o público, que tem dificuldade em separar o ator do personagem (no teatro da internet, somos ambos, e está difícil separar o que é falso do verdadeiro), pois parece que os espíritos armam-se mais contra ilusões razoáveis do que contra as que são absurdas e grosseiras: "Il semble que les esprits se roidissent contre une illusion raisonnable, et ne s'y prêtent qu'autant qu'elle est absurde et grossière.". Que tipo de político é favorecido pelo desarmamento intelectual contra o absurdo?
Artigo maravilhoso. Muito obrigado!
ResponderExcluirAgradeço a você o comentário.
ExcluirOlá Pádua,
ResponderExcluirno mesmo sentido do teu artigo acabo de ler sobre uma experiência que 1 canal de televisão fez com o feice: https://www.dutchnews.nl/news/2018/10/dutch-tv-programme-claims-facebook-accepted-fake-news-election-ads/
Obrigado, eu não tinha visto.
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