O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Uma voz rara: Gregory Kunde e Otelo, ópera e masterclass

Ouço vários gêneros musicais, e também assisto a (e ouço) este gênero teatral para que foi escrita música de vários estilos ao longo de mais de quatro séculos, a ópera.
Já vi coisas muito absurdas sobre esse gênero, inclusive pronunciadas por músicos. Uma das coisas mais misteriosas do corpo, a voz, é alvo também de muitos equívocos: há quem pense que os cantores de ópera usam microfones e que podem fazer qualquer coisa, assim como um cantor de bolero pode escolher qualquer bolero para cantar. Isso é muito errado.
Os cantores chamados "líricos" têm que desenvolver seu instrumento, que é o próprio corpo, para projetar sons em um teatro de modo que possam ser ouvidos apesar da concorrência com uma orquestra (que pode ser enorme) e um coro. Eles demoram anos estudando canto, preparando seus músculos, sua respiração e sua ressonância para cantar um repertório que, às vezes, está nos limites das possibilidades humanas.
E os cantores não podem cantar "qualquer coisa", mesmo depois dos anos de preparação vocal e musical. Há fronteiras estilísticas, claro, como na música popular: um cantor de flamenco pode soar mal em samba, e vice-versa; simplesmente estão na praia errada, e até mesmo na língua errada, se se tratar de um estilo de outra cultura. Da mesma forma, um cantor ótimo na ópera barroca francesa pode interpretar horrivelmente ópera russa do século XIX.
Há também os limites vocais: o melhor cantor pode parecer um completo pateta se estiver fora de sua tessitura vocal. Se pensarmos só nos homens, há uma classificação vocal básica; do mais agudo ao mais grave, temos o contratenor (que frequenta alturas em que as mulheres cantam; ouçam o dueto final da Coroação de Popea com o contratenor Phillipe Jaroussky e a contralto Marie-Nicole Lemieux); o tenor (o famoso Luciano Pavarotti na primeira ária da Tosca de Puccini); o barítono, voz central (o grande Dietrich Fischer-Dieskau interpretando o Rei Lear na ópera Lear de Aribert Reimann); e a voz mais grave, o baixo (três grandes cantores dessa categoria, Kurt Moll, Samuel Ramey e Ferruccio Furlanetto cantando na penúltima cena de Don Giovanni de Mozart).
Mesmo assim, um tenor não pode cantar todos os papéis escritos para esse tipo de voz; há diversas subcategorias, e um cantor, por mais que estude, não pode mudar sua natureza vocal: se nasceu com a possibilidade de cantar os papéis leves e agudos, não poderá abordar os pesados e mais graves. Se o fizer, destruirá sua própria voz. E uma voz não tem volta.
Quando aparece alguém capaz de aliar agilidade e potência, como Maria Callas foi capaz de fazer, é um fenômeno. Em geral, para manter a saúde vocal, os cantores líricos iniciam suas carreiras cantando papéis mais leves para, com o passar dos anos, se a voz permitir, abordar papéis mais dramáticos.
Lembro disso por causa do tenor estadunidense Gregory Kunde. Ele cantou por décadas papéis leves e agudos - alguns nos limites da voz de tenor, como Arturo de Os Puritanos de Bellini, com dós e rés agudos e um fá que pouquíssimos atingem (a nota estava fora do alcance de Pavarotti, que só pode atingi-la em estúdio e em falsete). Kunde já passou dos sessenta anos. Nessa idade, muitos cantores líricos já se aposentaram ou estão quase sem voz (isso não é raro com os cantores populares). Mesmo Pavarotti era uma sombra de si mesmo aos 60.
Kunde, pelo contrário, não só continua com a voz inteira, como agora canta papéis que lhe eram inatingíveis quando jovem. Um fenômeno, e volta a São Paulo para cantar um dificílimo papel, um dos mais dramáticos da ópera italiana, o Otelo (em italiano, Otello) de Verdi. Em 2013, ele havia cantado no Teatro Municipal de São Paulo o Radamés da ópera Aida, também de Verdi, e eu fui vê-lo por causa da obra e para verificar se a metamorfose vocal havia de fato ocorrido. Foi impressionante.
Eu o vi cantar no último dia 18 de março. A montagem, concebida por Giancarlo del Monaco (filho do famoso tenor italiano, já falecido, Mario del Monaco, que cantou centenas de vezes o Otello de Verdi) é muito equivocada - Sidney Molina bem a descreveu como uma imitação de "Matrix", sem estabelecer "elos estruturais com a música".
Molina, porém, está errado no elogio à regência e à orquestra. No dia que vi, a orquestra parava totalmente de vez em quando; parecia o tempo para virar o disco; ela e o maestro (Neschling, o diretor do teatro, mais à vontade em Richard Strauss do que em Verdi...) pareciam não dominar a música. E a qualidade instrumental era às vezes sofrível ou pior. O final do segundo ato foi talvez o ponto mais baixo. Descubro que algo parecido aconteceu na estreia, a que o crítico da Folha parece ter assistido muito distraidamente; ouçam o desastre a partir de 3'05", especialmente 3'35'', 4'13": https://www.youtube.com/watch?v=O3xz85EfTFU. Kunde e o barítono brasileiro Rodrigo Esteves conseguiram cantar apesar das dificuldades da orquestra.
O si agudo de Gregory Kunde foi ainda mais retumbante na récita do dia 18. Comparem com outra gravação ao vivo, mas de outro nível orquestral - Toscanini rege; cantam Ramón Vinay e Giuseppe Valdengo: https://www.youtube.com/watch?v=hiQ6yTl7SHM.
Como se trata de ópera, nunca é apenas o canto que importa: o ator Gregory Kunde é convincente em cena, como podem ver neste impressionante vídeo que combina trechos de duas óperas baseadas na história de Otelo: a de Rossini (em concerto) e a de Verdi (encenada; a face do tenor está maquiada de preto para se adequar ao personagem, o que não foi feito em São Paulo, visto que não houve preocupação da direção cênica de estabelecer alguma conexão com a história...).
A ópera de Rossini exige muita flexibilidade (vejam, no início, como os outros dois cantores ficam impressionados com o desempenho de Kunde); a de Verdi, potência. São dois tipos de voz diferentes, e, segundo esta entrevista no VoceAllopera, Kunde é o único tenor da história que foi capaz de cantar os dois papéis na mesma temporada.
Certo é que a ópera de Rossini é muito menos encenada do que a de Verdi, por ser-lhe inferior em vários aspectos. Stendhal, bem antes de Verdi escrever sua versão da história, na famosa Vida de Rossini, critica-a nestes termos: "O que salva o Otello de Rossini é a lembrança do de Shakespeare." Isso não o torna fácil de cantar, no entanto: pelo contrário, a música é muito exigente vocalmente, e é o que justifica a ópera, cujo libreto não tem a qualidade teatral do que Arrigo Boito escreveu para Verdi musicar (Joseph Kerman, em A ópera como drama, chega a falar de "completa estultícia da concepção dramática de Rossini" comparando as duas obras).
Apesar da encenação, é um espetáculo que deve ser visto. A ópera de Verdi é uma obra prima fantástica, e que poucos tenores podem enfrentar dignamente. Mario del Monaco (que não é meu favorito, nem de longe), na sua autobiografia, Minha vida, meus sucessos, revelou como ficou inseguro ao interpretá-lo pela primeira vez, pois o papel "estava no limite das possibilidades humanas"; no Guia Fayard das óperas de Verdi, "O papel de Otello exige uma palheta vocal muito diversificada, uma inteligência vocal e dramática fora do comum". Ver um cantor adequado para enfrentar as dificuldades do Mouro é raro.
Quem não puder assistir a Gregory Kunde no dia 27 de março (com o excelente barítono Nelson Martinez, que evitou exageros interpretativos comuns nos intérpretes de Iago, e a soprano Lana Kos, de eloquentes pianíssimos, no papel de Desdemona), talvez possa consolar-se com a masterclass que o tenor dará na Escola Municipal de Música de São Paulo no dia 26 às 14:30h. Parece que ela estará aberta para o público assistir, mas confirmem antes.

P.S.: Esqueci de dizer que o solo do palco foi dividido em três placas que se levantavam ou abaixavam aleatoriamente, ao que parece. Além de não ter ligação com a história, a máquina faz um barulhão às vezes mais audível do que a orquestra.

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