O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 29 de março de 2015

A PEC teocrática do Daciolo e os joelhos dobrados do povo

Escrevo esta nota porque vi hoje uma senhora reproduzir, de maneira inexata, na rede do Zuckerberg, uma nota que fiz no twitter sobre a proposta teocrática de emenda à constituição apresentada por um deputado que havia sido eleito pelo PSOL/RJ, Cabo Daciolo, e tomou posse em 2015 no seu primeiro mandato como deputado federal. Contra ele, iniciou-se no dia 26 de março um processo de expulsão do partido.
A proposta é a PEC 12/2015, cuja tramitação pode ser acompanhada, por enquanto, no portal da Câmara dos Deputados. Ela é muito simples; trata-se de uma proposta de extinção do regime democrático para substituí-lo por um teocrático:

Artigo 1º O parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art.1.....................................................................................................................
Parágrafo único. Todo o poder emana de Deus, que o exerce de forma direta e também por meio do povo e de seus representantes eleitos, nos termos desta Constituição.”
Artigo 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação
A soberania popular, fundamento da democracia, é trocada pela soberania de um "Deus". O preâmbulo da Constituição, lembra a sumária justificativa da proposta, já possui a infeliz expressão "sob a proteção de Deus" (que não é inédita no Brasil: estava na Constituição de 1946).
A proposta, se aprovada, seria inédita na história das constituições do Brasil; mesmo a de 1824, que previa que a religião católica era oficial (no artigo quinto), não continha dispositivo semelhante.
Na verdade, Daciolo, em seu anacronismo político, foi capaz de voltar à era do Antigo Regime, anterior à independência do Brasil. A Constituição de 1824, progressista nesse aspecto diante do nobre deputado federal do PSOL/RJ, previa que os poderes políticos eram "delegações da nação", e não de Deus. Pimenta Bueno, político e jurista do século XIX, na obra Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, comentou como este novo fundamento afastava o absolutismo:
A sábia lei fundamental que rege os destinos do Brasil proscreveu, como devia, o dogma irracional dos Estados ou povos patrimoniais, do intitulado Direito Divino - sic volo, sic jubeo, sit pro ratione voluntas [assim quero, assim ordeno, que minha vontade substitua a razão] - dogma que o andar progressivo da civilização não tolera, e que os povos e os fatos abatem e aniquilam.
Em Estados teocráticos, fiéis de religiões que não sejam a dominante são oficialmente discriminados, para não falar dos que têm a coragem do ateísmo, que são, em geral, uma das minorias mais combatidas. Vejam como, na pobre justificativa da PEC, ele emprega a mesma frase de um salmo bíblico que Dilma Rousseff repetiu em sua última campanha presidencial, "Feliz a nação cujo Deus é o Senhor". Daciolo revela explicitamente seu intento de subjugação do povo pelo projeto teocrático: "O povo que vai às ruas, o povo que protesta, não verá o seu poder mobilizador se apequenar, mas entenderá que todo joelho deve se dobrar diante do Deus Altíssimo".
Não imagino que armas ele gostaria de usar nos joelhos de feministas, dos movimentos LBGT, dos adeptos de religiões não cristãs etc. Imagino apenas que eles não se dobrarão.
Acho que este projeto, se fosse aprovado, sofreria declaração de inconstitucionalidade diante da vedação do parágrafo quarto do artigo 60 (as "cláusulas pétreas"): ele fere os direitos individuais, especialmente a liberdade de consciência. Por sinal, esta legislatura, sordidamente, está a apresentar projetos inconstitucionais, como de redução da maioridade penal, que não tem bom fundamento criminológico, mas atende ao populismo punitivista, que atinge especialmente os pobres e os negros. Como a investida sobre as terras indígenas também foi ressuscitada, tudo isso nestes primeiros meses, creio que o Legislativo federal ainda apresentará muitas ameaças contra a democracia no Brasil nestes quatro anos.
A PEC teocrática apresentada pelo deputado federal do PSOL recebeu o número suficiente de adesões para ser apresentada: originalmente 172 deputados federais. Paulo Pimenta, do PT/SP, em 27 de março, requereu a retirada de sua assinatura. Sem ele, teríamos este quadro de apoiadores, com, entre parênteses, o número de deputados em exercício de cada legenda:


DEM – 10 (22)
PCdoB – 3 (13)
PDT – 7 (20)
PEN – 1 (2)
PHS – 3 (5)
PMDB - 16 (66)
PMN – 1 (3)
PP – 15 (40)
PPS – 2 (11)
PR – 12 (34)
PRB – 7 (20)
PROS – 8 (12)
PRP – 2 (3)
PRTB – 1 (1)
PSB – 8 (32)
PSC – 5 (13)
PSD – 15 (34)
PSDB – 17 (53)
PSDC – 2 (2)
PSOL – 1 (5)
PT –9 (64)
PTB – 9 (25) 
PTC – 1 (2)
PTdoB – 1 (2)
PTN – 2 (4)
PV – 4 (8)
SD – 9 (16)

Entre os partidos com maior bancada, houve pouco entusiasmo, com exceção do PSDB, que teve quase um terço da legenda a assinar a PEC. O PSL, representado por apenas um deputado na Câmara, foi o único partido que não teve parlamentar algum a apoiar a proposta.
Devo lembrar que essas assinaturas não significam que os deputados estejam realmente de acordo com a PEC, ou que eles venham a nela votar. Muitas vezes, os parlamentares barganham apoio de suas propostas em troca de suporte mútuo, às vezes ignorando o assunto do que estão a apoiar, tendo em vista a seriedade com que tantos encaram suas atividades.
O artigo 60, I da Constituição da República exige que a proposta seja assinada por, no mínimo, um terço dos deputados. Como temos a enormidade de 513 dessa espécie parlamentar, bastaria que o número caia para 170 para que a proposta caísse.
A te(rat)ológica proposta, no entanto, está longe de ser a menor façanha do deputado federal, que estaria melhor na Arena durante a ditadura militar. Lembremos de alguns de seus discursos:
Em 9 de fevereiro, um absurdo histórico sobre as Forças Armadas (provavelmente uma negação de que houve a ditadura militar) e a retirada dessas Forças do controle civil:
[...] eu peço a ajuda dos meus nobres companheiros Parlamentares, para que possamos dar entrada hoje a um projeto de resolução - a Defesa Nacional está na Comissão de Relações Exteriores -, a fim de constituirmos uma Comissão de Defesa Nacional autônoma e assim começarmos a lutar pela defesa do nosso País. Falo do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que sempre, sempre prestaram um serviço maravilhoso à população [...]
Em 19 de março, fez uma declaração polêmica (aparentemente, o estopim para o partido se indispor) sobre a tortura, a execução extrajudicial e o desaparecimento forçado de Amarildo de Souza:
Eu estou falando do Caso Amarildo. Eu tenho 25 militares respondendo por um crime que não cometeram. Doze deles estão presos e um faleceu no dia 13 em decorrência de problemas cardíacos adquiridos na prisão.
Momento marcante foi o da tietagem que Daciolo fez dos deputados federais Bolsonaros, pai e filho, defensores da ditadura e da tortura, documentada nesta foto, de março deste ano.
Daciolo despontou publicamente como líder da greve de bombeiros no estado do Rio de Janeiro, em 2011, que o governo de Sérgio Cabral Filho tentou reprimir usando procedimentos típicos da ditadura militar, ilegais mesmo na época do último regime autoritário. É ironicamente triste que agora se mostre simpático aos princípios da velha doutrina de segurança nacional, que também tinha previsões nada ortopédicas para os joelhos do povo.
Em 9 de fevereiro, o nobre deputado federal teve um ataque de teocracia e cometeu atentado mortal contra a lógica:
Venho dizer que eu não estou aqui pregando religião nenhuma, mas estou aqui, sim, para engrandecer, honrar e glorificar o nome do Senhor Jesus.
O mesmo em 25 de fevereiro:
Quem está no controle de todas as coisas é Deus, independentemente de religião - não estou aqui pregando religião. Todos os joelhos se dobrem a Jesus Cristo! 
Pregar Jesus e simultaneamente dizer que não se está defendendo religião alguma poderia ser sinal de estupidez e/ou de cinismo e/ou de loucura. Como vem de um nobre parlamentar, certamente estamos diante de outra coisa, mais notável. Alguma coisa que o faz, talvez sentindo-se culpado, a proferir tais pedidos de ajuda em vez de cumprir suas tarefas parlamentares (também em 25 de fevereiro):
Eu gostaria de fazer um pedido à população brasileira: orem por mim! Orem por mim, por favor! Orem pelo Cabo Daciolo! Por favor, gentilmente eu peço oração.
Imagino que ele julgou ter recebido orações em número suficiente para que, mm 5 de março, se revelasse profeta:
Falei de Deus, e o Deus que eu sirvo é o Deus das causas impossíveis, e Ele me ensina a profetizar. Queria revelar ao senhor algo que eu acredito e sei que vai acontecer num futuro bem próximo: o Brasil vai ser a próxima grande potência mundial.
Na sessão de 10 de março, em que apresentou sua PEC teocrática, ele deixou bem claro que está a ver "principados e potestades" espirituais (no Congresso?):
Eu gostaria de deixar aqui bem claro a todos que nós estamos vivendo uma verdadeira guerra espiritual, e essa guerra espiritual é contra principados e potestades. Alguns podem não estar entendendo o que eu estou falando aqui.
Também não estou entendo o que ele está falando; tampouco percebo o que o PSOL pretendeu ao acolhê-lo, exceto ser, talvez (peço aos historiadores que me corrijam), o único partido de esquerda que tenha apresentado projeto para a instauração da teocracia no país desde a redemocratização.

P.S.: Dito isso, Daciolo apresentou algumas propostas simpáticas, como a revogação do aumento dos subsídios dos membros do Congresso Nacional (simpática e inviável) e a aceleração no trâmite dos projetos legislativos de iniciativa popular, o que me parece necessário.
P.S. 2: O jornalista Antonio Luiz Costa chamou a atenção para novo discurso de Daciolo, em que o nobre deputado defende o privilégio heterossexual no estatuto jurídico da família. Para quem tinha dúvidas de que ele era antidemocrático...

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