Tentando visitar a mãe em 1970, sua filha, Eugenia Zerbini, foi estuprada por um oficial do Exército. Destaco um trecho do depoimento que deu à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva":
Eu falei que eu era filha do General Zerbini e eu queria falar com o oficial do dia [...]. Logo em seguida veio alguém. Assim, ninguém usava crachá, ninguém! Ele veio e fomos para uma sala. A única coisa que me chamou a atenção, era uma sala muito nua, não tinha nada de referência, não tinha folhinha, não tinha uma imagem, não tinha nada para se ter referência. Nem a fotografia do Garrastazu Médici que, em todos os lugares públicos estava. Ele disse: “O que você veio fazer aqui?”. Eu disse: “Eu vim trazer essas coisas para a minha mãe”. E ele: “O que a sua mãe fez?” Aí, até hoje eu me arrependo, eu falei: “Vocês devem saber melhor do que eu, porque vocês a prenderam e não eu”. Eu acho que eu não devia ter dito aquilo. Ele respondeu: “Ah! Pois não”. Levantei e aí ele me agarrou e eu fui violentada ali.
A violência sexual contra mulheres e homens não era acidental; ela integrava o modus operandi dos órgãos de repressão. Não é à toa que tantos defensores da ditadura militar sejam paladinos da impunidade e da opressão contra a mulher.
Creio que o ponto mais alto da biografia de Therezinha Zerbini foi o Movimento Feminino pela Anistia. Ele era, de fato, feminino, mas não feminista; ele não tinha como pauta as questões de gênero. Vejam estas considerações em entrevista dada à revista Mais, publicada originalmente em janeiro de 1978 e incluída no livro Semente da liberdade, publicado no ano em que o projeto governamental de anistia foi referendado pelo Congresso Nacional:
Mais: Como você encara as proposições de Betty Friedan e o Women's Lib? São um caminho?Ela fazia críticas aos movimentos feministas. No entanto, ao colocar as mulheres na linha de frente da luta política, teve efeitos positivos no campo do gênero.
Therezinha: Não. Vi a Betty no México, e sei que ela é extremamente inteligente e culta e, sem dúvida, é uma líder, mas esse congresso feminino de Houston provou bem a loucura que foi aquilo.
Mais: Que tipo de loucura?
Therezinha: Assistimos à desorganização de uma iniciativa séria de mulheres que querem lutar na sociedade. Mas lá houve elementos com sérios desvios de comportamento e conseguiram dar uma ideia falsa ao que o congresso se propunha, que era a luta das mulheres por seus direitos mais justos.
Conta Paulo Moreira Leite em A mulher que era o general da casa (Porto Alegre: Arquipélago, 2012):
Ela organizou a entidade com apoio de antigas senhoras que haviam formado o Movimento das Mães Paulistas contra a Violência em 1968. Reuniu milhares de perseguidos políticos que ajudara tantas vezes e também mobilizou colegas de cela no Tiradentes. [...] Dilma Rousseff foi a primeira coordenadora do movimento em Porto Alegre.
Em março de 1975, ficou pronto o Manifesto da Mulher Brasileira em Favor da Anistia. A campanha nascia, e ela foi ao México divulgá-la em evento da ONU sobre as mulheres. As Nações Unidas haviam declarado 1975 o Ano Internacional da Mulher.
Já citei este documento mais de uma vez. Trata-se de informação confidencial da Aeronáutica, de 24 de setembro de 1975. Zerbini tinha feito palestra em Porto Alegre sobre o Movimento, caracterizado na informação como "pequeno e bem organizado grupo, comprometido com ideologias e políticos afastados pela Revolução de 64."
O machismo da informação vem com a menção do "lado sentimental da mulher". No entanto, estava certo ao afirmar que o Movimento "ainda sem expressão e apoio popular, representa mais um desafio e uma contestação aberta aos princípios defendidos pelo movimento revolucionário."
Na morte, talvez assassinato, de João Goulart, o governo entrou em ação para evitar demonstrações políticas de apoio ao presidente deposto. Em São Paulo, a missa de sétimo dia oficiada na Sé por Dom Evaristo Arns foi espionada por agentes do DEOPS/SP. No relatório de 10 de dezembro de 1976, de que destaco o final, lemos que, enquanto Franco Montoro e Ulisses Guimarães, importantes políticos do partido de oposição, o MDB, diziam amenidades, ela pôs o dedo na ferida: "já é tempo de políticos nacionais deixarem de morrer no exterior" e lembrou que estava em pauta a bandeira da anistia.
Apenas morto ele pudera voltar ao país, como ela destacou em conferência proferida em 1977, também recolhida no Semente de liberdade:
Nós não podemos aceitar situações de injustiça, como a de não termos habeas-corpus, que o direito de nacionalidade seja negado aos filhos de nossos exilados, que pessoas continuem presas depois de terem cumprido suas penas, ou como no caso dos presos políticos de Florianópolis, que forma obrigados a usar do recursos extremo da greve de fome, para através dela chamar a atenção dos Juízes do Supremo Tribunal Militar, que cidadãos brasileiros morram fora de sua pátria, como a estudante de Medicina que se suicidou na Alemanha sobre os trilhos do Metrô em Colônia e nosso presidente João Goulart impedido de voltar à nossa terra.A brasileira que havia se suicidado em estação de metrô na cidade de Berlim era Maria Auxiliadora Lara Barcellos, que era da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares quando foi presa. Ela dá um dos principais depoimentos no importante filme de 1971, rodado no Chile, "Brazil, a Report on Torture": "A mim me fizeram torturas sexuais". Ela escreveu: "Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos. Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, um grito no escuro".
Em 1977, o Movimento lançou o boletim Maria Quitéria, cujo nome, claro, homenageava a guerreira do século XIX, a primeira mulher brasileira a conseguir lutar oficialmente pelo Brasil, na Guerra de Independência.
O boletim noticiava os eventos do Movimento; também publicava matérias de convidados, em geral sobre questões vinculadas à democracia. No segundo número, como podem ver ao lado, a questão era a reivindicação de uma assembleia constituinte. Tratava-se, com efeito, de bandeira imprescindível para a redemocratização. A constituinte, no entanto, somente viria uma década depois.
Nesse número do jornal, podiam ser encontradas citações incômodas de militares, como o de Castelo Branco, primeiro ditador do regime, afirmando que as Forças Armadas "não são forças para empreendimentos antidemocráticos".
Nesse mesmo ano, ela tentou entregar à Primeira Dama dos Estados Unidos, Rosalyn Carter, uma carta com um elogio à política de direitos humanos de Jimmy Carter e um pedido de apoio ao Movimento Feminino pela Anistia, sem críticas diretas à ditadura militar. A cautela justificava-se para impedir a aplicação da Lei de Segurança Nacional.
Zerbini acabou conseguindo fazer a entrega da carta em 1978.
O Movimento prosseguia, e Therezinha Zerbini continuou sendo vigiada. Ao lado, nós a vemos com o jornalista Thomas Hammarberg, jovem na época, importante militante de direitos humanos, em foto catalogada no DOPS/SP em 2 janeiro de 1978.
Em 1978, o Movimento Feminino pela Anistia juntava forças aos movimentos contra a carestia, em que a presença da Igreja Católica era bastante forte. Vejam nesta informação do DEOPS/SP, que a ditadura via os movimentos contra a carestia como "contestatórios" ao regime.
Na criação do Comitê Brasileiro pela Anistia, Zerbini teve um papel fundamental. Destaco o trecho de um relatório reservado do DOPS/SP, de 29 de julho de 1979, que traçava a história da formação do Comitê Brasileiro pela Anistia, e destaca o papel do Movimento Feminino pela Anistia. Zerbini teria dado a ideia de colocar um "testa de ferro". Desta forma, com desprezo policial, é qualificado Luiz Eduardo Greenhalgh, na época advogado de presos políticos. A ideia seria dar ao CBA "respaldo suficiente e a pretensa legalidade perante a opinião pública".
Para as autoridades, a campanha pela anistia somente possuía uma aparência de legalidade (esse diagnóstico, ao contrário, caberia bem à ditadura militar, mas não à campanha), o que ensejou a prisão de militantes que apenas distribuíam panfletos pela anistia.
Já apontei esse fato algumas vezes, denunciando o absurdo histórico do Supremo Tribunal Federal, que, em 2010, referendou a lei de anistia sob o pretexto de que ela teria vindo de um amplo pacto social.
É mais do que tempo de o STF rever essa interpretação que fere tanto a história quanto o direito.
Zerbini, no entanto, era contrária à revisão da anistia: "A anistia foi uma conquista. Não foi dádiva, foi luta. Não tem que rever."
Com a volta de Leonel Brizola ao Brasil, Zerbini apoiou-o para a recriação do PTB, extinto com a imposição do sistema bipartidário pela ditadura. Ivete Vargas logrou tomar para si a sigla, e Zerbini acompanhou Brizola na criação do PDT. O partido divulgou uma nota sobre o falecimento desta sua fundadora.
A OAB/SP também publicou uma nota.
No portal Memórias da Ditadura, podem-se ver algumas de suas entrevistas: http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/therezinha-zerbini/
Os documentos foram encontrados no Arquivo Público do Estado de São Paulo.
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