O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Mortes de Naomi Munakata e Martinho Lutero, coronavírus e eugenia bolsonarista

Dois dos maiores regentes de coro no Brasil, Martinho Lutero Galati e Naomi Munakata, morreram em 25 e 26 de março de 2020, respectivamente, por causa do vírus corona, apesar de o brasileiro "não pegar nada", de acordo com as ideias infecciosas do governo federal.
Ouçam a matéria da CBN, "Regentes Naomi Munakata e Martinho Lutero morrem por coronavírus".
Eram dois dos maiores músicos brasileiros e dispensam apresentações; para os estrangeiros que lerem esta nota, sugiro ler esta matéria com as atividades no Brasil e na Europa de Lutero; esta outra, sobre o currículo da regente.
Eu assisti a várias apresentações de ambos. Tinham concepções diferentes de som: Munakata preferia que seus cantores emitissem de forma mais seca e com pouco vibrato. Lutero, por vezes, queria bem o oposto, como nas épicas interpretações de "A Internacional" que vi.
O cd "Canções do Brasil", com o coro da Osesp, parece-me dar uma boa ideia do que Munakata queria atingir em termos de qualidade sonora. Trata-se, como se sabe, de um disco obrigatório para os interessados pela rica música coral brasileira, não só pela qualidade dos cantores da Osesp, mas pela escolha do repertório, que reúne o popular e o erudito.
Nunca cantei sob a direção de nenhum deles. Uma vez, numa apresentação do Coro Luther King em homenagem que a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo faria a Inês Etienne Romeu (a única sobrevivente da Casa da Morte, um centro clandestino de tortura e execução extrajudicial que a ditadura militar mantinha em Petrópolis), ele me convidou para cantar a "Suíte dos pescadores", de Dorival Caymmi, no arranjo de Damiano Cozzella, porque, antes do concerto, mencionei que havia interpretado essa peça no Coral da USP, e o Coro dele estava desfalcado. Mas não ousei fazê-lo, pois não tinha ensaiado.
Como naquela ocasião, Martinho Lutero participou de várias atividades de memória, verdade e justiça. Ele regeu na missa em homenagem a Vladimir Herzog em 2015, na Catedral da Sé, no aniversário de 40 anos da cerimônia inter-religiosa realizada após a tortura e a execução do jornalista pela ditadura militar. Escrevi uma nota sobre este emocionante momento: https://opalcoeomundo.blogspot.com/2015/12/retrospectiva-2015-palavras-publicas.html
Essas atividades devem ter representado algum peso na demissão política que o afastou do Coral Paulistano em 2016, que comentei no blogue. Munakata assumiu a instituição criada por Mário de Andrade.
Adriano Diogo, que foi presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", convidou-o para se apresentar em algumas audiências públicas, como a do caso Olavo Hanssen. Por isso, no seminário de 5 anos da Comissão, ele foi chamado para dar um testemunho; embora estivesse previsto na programação, na véspera decidiu não aparecer por causa do concerto que regeria à noite. Ele havia chegado da Itália. Provavelmente já estava infectado pelo vírus que o mataria doze dias depois. Sua esposa, Sira Milani, agora viúva, falou em seu lugar. Ele regeu o concerto do dia 13 e o do dia seguinte, neste ano do cinquentenário do Coro Luther King.
Munakata tinha 64 anos, e Lutero, 66. A eugenia bolsonarista do "Infelizmente algumas mortes terão, paciência" parece apostar em que a população (ou, ao menos, seus eleitores, que não recuam diante do elogio à tortura e a outros crimes contra a humanidade) não ligará para colocar em risco as pessoas da terceira idade. O capital certamente não se incomodará, ele é acumulado a partir de campanhas como esta; vejam esta foto de Isadora Neumann, "eu pago teu salário", em carreata gaúcha, que documenta a violência de classe, bem como as declarações do dono do Madero sobre as 5 ou 7 mil mortes, e de Roberto Justus.
No entanto, há também vítimas jovens. As ações do governo federal apontam para o aumento dessas vítimas, o que gerou o rompimento com a maior parte dos governadores do Estado (uma exceção é Zema, de Minas Gerais, eleito pelo Novo, um partido-satélite do bolsonarismo) até com aliados que se elegeram em 2018 na onda da extrema-direita, como Caiado, Witzel e Doria.
A combinação de provincianismo jurídico e geopolítico com a submissão aos Estados Unidos, outra das velhas novidades da ditadura militar requentadas por Bolsonaro, caracteriza a política externa deste governo, e parece estar na base na violação das recomendações da Organização Mundial de Saúde. Medida análoga em Milão acarretou a aceleração das mortes, razão pela qual o prefeito daquela cidade, com o peso de cadáveres às costas, reconheceu o que chamou de "erro". Aquela propaganda letal da Itália é similar à do governo federal brasileiro.
Nesta sexta-feira, dia 27, o ministro da saúde, nesta gestão lamentável, resolveu não aparecer em uma reunião virtual da OMS sobre o assunto; contatado por Jamil Chade, o governo tampouco esclareceu quem teria sido o representante oficial de baixo escalão na reunião! Parece que a administração está mais preocupada com a contratação sem licitação de empresas que doaram para a campanha do atual ministro, segundo apuração de Breno Costa.
Vi que algumas pessoas chamaram atenção ao fato de que no vídeo de propaganda "O Brasil não pode parar", compartilhado pelo filho investigado por alegado esquema de rachadinha em seu gabinete e lavagem de dinheiro, em contraste flagrante com a maior parte da publicidade, a maioria dos que aparecem no filme são negros, e fazem, em geral, o papel de trabalhadores em ocupações manuais e/ou de baixa qualificação. São essas pessoas que o governo federal, aparentemente, quer expor ao vírus. Enquanto isso, seus apoiadores mobilizam redes de desinformação para negar que o vírus corona provoque mortes.
Há jornalistas, como Kennedy Alencar, que já falam em "genocídio". O deputado Fábio Trad chamou de genocídio a iniciativa de ""isolamento vertical''' do governo federal, isto é, de isolar apenas pessoas que são consideradas grupos de risco. Esse deputado é, lembra o Congresso Em Foco, "primo do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e irmão do senador Nelsinho Trad, que contraiu covid-19 após integrar a comitiva de Bolsonaro que foi aos Estados Unidos no início de março"...
O Congresso em Foco divulgou que "Pesquisadores de Oxford projetam 478 mil mortes por covid-19 no Brasil". O estudo foi publicado em 14 de março.
"Bolsonaro Genocida" foi o tópico mais comentado no twitter no Brasil no dia 23 de março; foi o momento da Medida Provisória 927/2020, que foi elaborada para deixar os empregados quatro meses sem salário, e gerou tanto repúdio que obrigou o ocupante da presidência a recuar:


Há dez dias ocorrem protestos diários contra Bolsonaro no Brasil, em geral panelaços. Aqui em São Paulo, projetam-se em prédios imagens como estas, que fotografei no dia 25:



Além disso, subsistem as dúvidas sobre a saúde do ocupante da presidência: ele estaria contaminado pelo vírus corona quando compareceu às manifestações em seu favor no dia 15 de março e, assim, teria cometido crime contra a saúde pública? Ele nega sem mostrar os exames. Boa parte de seu entorno contaminou-se, inclusive o ministro Augusto Heleno. Seu filho que tentou ser embaixador do Brasil nos EUA sem saber inglês e ignorando quem é Henry Kissinger afirmou a Fox News que o pai testou positivo para o vírus, mas depois negou. O Hospital que atendeu o ocupante da presidência e sua esposa omitiu o resultado de dois pacientes.
Entretanto, o governo federal tenta ocultar informações sobre a epidemia. Afortunadamente, o Conselho Federal da OAB , na ADI 6351-DF, conseguiu que o Supremo Tribunal Federal suspendesse, em decisão liminar, o trecho da Medida Provisória 928/2020 que permitia ao governo suspender os prazos de resposta aos pedidos fundamentados na Lei de Acesso à Informação. Na decisão, o Ministro Alexandre de Moraes destacou o caráter antidemocrático, pois avesso à transparência, da medida de Jair Bolsonaro:
O art. 6º-B da Lei 13.979/2020, incluído pelo art. 1º da Medida Provisória 928/2020, não estabelece situações excepcionais e concretas impeditivas de acesso a informação, pelo contrário, transforma a regra constitucional de publicidade e transparência em exceção, invertendo a finalidade da proteção constitucional ao livre acesso de informações a toda Sociedade.
Não é possível realmente cantar em coro quando se está em isolamento social; a tecnologia não permite resolver os problemas dos pequenos atrasos na transmissão e de sincronização, muito menos de timbragem e prática de conjunto (os vídeos que supostamente mostrariam o contrário têm todos, no mínimo, uma base pré-gravada). Dessa forma, nós, que cantamos em conjunto, não podemos nos reunir, neste momento, para lamentar o falecimento de Naomi Munakata e Martinho Lutero, tampouco protestar em apresentação pública contra o governo que trata essas mortes como caso menor e engendra políticas que irão multiplicá-las. Teremos que achar outras formas de protesto, ou de canto, contra esta nova eugenia.

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