O sangue da menstruação, mas também o do aborto e até o das chacinas estão entre as coisas que escorrem nos poemas de Uma volta pela lagoa, de Juliana Krapp (Círculo de Poemas, 2023). Há momentos mais elusivos no livro, que outros leitores preferirão, porém o que me convenceu foi o cruzamento entre as violências domésticas e públicas e o seu vetor comum, o patriarcalismo.
Muito apropriadamente, o primeiro poema chama-se "Meu pai" e não tem nada da ternura que outros poetas encontram a tratar dessa figura (como "Pai", de Fabio Weintraub, em Novo endereço): pregos, revólver, cassetete, farda, cova rasa; "[...] o sangue/ do meu pai corre em mim como corre o medo de que me pegue em flagrante".
No entanto, quem morre no poema é o pai, de um tumor e, antes dele, com a ajuda da filha, o cabrito que ela ajudou a segurar enquanto o pai o abria com a faca: "[...] meu pai enterrou/ a faca bem na testa do cabrito eu vi o mesmo lugar/ onde nele crescia o tumor eu ouvi o urro eu vi o sangue/ brotar instantâneo [...]".
Pode-se pensar em tanta coisa: numa inversão da cena do sacrifício (não realizado) de Isaac por Abraão, especialmente em relação à questão do gênero, mas também numa radicalização da "estranha ideia de família/ viajando através da carne", de Drummond, com ênfase na violência. Por sinal, vejo também uma espécie de alusão a Carlos Drummond de Andrade no poema "Casa", em que a aparição dos ratos lembra "Edifício Esplendor".
Depois desse momento familiar, nada mais adequado do que outro, o que dá título ao livro, um poema sobre aborto; destaco este momento de ternura e coágulo:
Estou seguindo em velocidade mais baixa que o normal
talvez para te proteger
o que não faz sentido
algum amanhã você não vai mais existir será
apenas um pouco de sangue
extraído de mim como fazem
os homens ao sugar do chão
o petróleo penso
se o que sairá
é mesmo sangue
do meu sangue decerto
substância se avolumando em coágulo e estigma a contagem
de hormônios única prova
de uma vida
que não houve
É interessante que o poema aluda a um lugar desde o título, provavelmente no Rio de Janeiro, como outros momentos do livro. A conhecida canção de Laura Nyro sobre aborto, "Gibsom Street", faz o mesmo, pois o trauma tem um local de nascimento; revisitar o endereço reviva-o.
Mais adiante, "Caju" alude ao cemitério do Rio de Janeiro na Zona Portuária em termos quase alquímicos: a matéria morre para se transmutar: "[...] a água que cresce/ como germe escuro ao redor calafrio/ ante a morte ante aquilo que reverbera/ manchas de sangue sob os tonéis o úmido/ tornado negro [...]"; perto do fim, chega a "nesga de mar/ insidioso que nada retém nem desloca". O poema, dessa forma, realiza com uma fluidez notável essa passagem de imagens do sangue para o mar nesse espaço de morte.
O mar ressurge em "Bandeira", poema com que me identifiquei porque escrevi certa vez (nos Cinco lugares da fúria) sobre a bandeira nacional sendo impossivelmente pintada com secreções corporais durante uma sessão de tortura. Krapp imagina isto:
[...] eles podem
sobretudo estirá-la no assoalho
onde fazem as execuções e então logo será a imagem
autêntica de um país pacificado a firmeza o arrojo
da pátria a acolher o imobilismo você pode
usar um estilete sobre base sólida para recortar as estrelas
e pregá-las na blusa à moda do Terceiro Reich
Castro Alves, claro, viu antes de todos nós que a bandeira nacional é uma mortalha (em "O navio negreiro"); no entanto, como o problema não foi resolvido, pois o Estado continua a ser uma máquina genocida, temos que continuar a dizer essas coisas.
No poema de Krapp temos uma interessante imagem da apropriação dos símbolos nacionais pelos fascistas de hoje. O termo pacificação, que foi muito usado no Rio de Janeiro pelas políticas populistas de segurança do Estado (que tratam como inimigo interno as populações periféricas e racializadas), significa a paz das valas comuns.
Krapp, falando desse sangue derramado, opera no sentido oposto: uma denúncia da suposta "paz'". Essa denúncia tem sido feita por alguns dos melhores artistas brasileiros. Na música popular, pode-se lembrar de O Rappa e sua música "Minha alma (A paz que eu não quero)", com a letra de Marcelo Yuka.
O irônico e terrível "Romance de formação", de Krapp, não é um romance, claro, porém conta bem a história da formação de crianças de classe média assistindo à tortura e à chacina de crianças pobres nas ruas:
Cadáveres na porta de casa
grumos de sangue
ainda morno
esfregados com vassoura de piaçava água
da mangueira levando tudo embora
Ora amarrados uns aos outros
ora apenas uma cabeça
apartada do corpo ou um corpo
que lembra um tronco
à semelhança da árvore
convulsionada após o incêndio
No final, vemos o eu lírico passar de uniforme escolar, desviando a vista de tudo isso, com a menção à "blusa branquíssima", que devemos ler numa chave racial, creio; afinal, o poema começa com o verso "Cadáveres por todos os lados" (isolado e sem enjambement, o que é pouco frequente nesta poética) e os meninos são chamados de ratazanas e gambás pela vizinhança. Certamente não são brancos.
Os poemas mais elusivos usam também essas imagens de sangue e violência, porém dissolvidas em outras; alguns desses poemas parecem parafrasear Ana Cristina Cesar; cito "O que é realidade o que é ficção", que é um dos pontos altos deste livro. Esta passagem poderia estar em A teus pés:
é que seus poderes estão crescendo
agora que está virando mulher
mocinha
vespa-assassina
barata medusa todo carnaval
Há até um poema chamado "Ana C." que questiona essa poeta em termos nada condescendentes, porém com a bela imagem final da "mudez lasciva de vozes/ barganhando/ na água envenenada/ sob a folhagem escura".
"Conversa séria", outro poema mais próximo do fim, parece vir de outra autora: sua ironia é mais próxima da superfície, talvez para que leitores masculinos consigam entendê-lo: "[...] não é razoável/ que você os critique por frequentarem debates políticos/ enquanto não se importam com as mulheres que limpam suas privadas [...]".
Aqui também há uma operação de despacificação desses momentos maiores ou menores da ordem patriarcal. Para a autora, todos eles são igualmente importantes. Este verso, de "Gavetas em tempos difíceis" parece sintetizar essa poética: "Parecem miudezas, são molotov".
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