O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCVI: Jair Bolsonaro, Carlos Alberto Brilhante Ustra e outros militares

Esboço esta nota por causa da trama recentemente descoberta de militares que conspiraram em 2022 para matar Lula e Alckmin, depois de eleitos em 2022, e o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre Moraes.

Quando resolvi escrever um livro sobre o processo em que a família Almeida Teles conseguiu o reconhecimento judicial, o Ilícito absoluto, não imaginava o quanto teria mencionar Jair Bolsonaro. São mais de noventa menções no texto. É claro que eu sabia que citaria o voto que ele proferiu em 2016, humilhando o país diante do mundo por homenagear um torturador no parlamento contra a presidenta eleita, Dilma Rousseff. 

Esse voto ignominioso, lido no plenário sem que nenhum deputado lembrasse que Carlos Alberto Brilhante Ustra já tinha sido declarado torturador pelo Judiciário brasileiro, aparece na introdução do livro; chamei-o de "elogio fúnebre" que "veio atrasado", pois o outro militar havia sido enterrado meses antes após uma longa doença (não, ele não foi assassinado).

Ele apareceu em parte por causa de Olavo de Carvalho, admirado tanto por Brilhante Ustra quanto por Bolsonaro; ele representou uma conexão entre ambos no soi-disant pensamento da extrema-direita brasileira, embora aquele ideólogo concedesse que a família Almeida Teles poderia ter razão no processo contra o coronel reformado.

Bolsonaro, quando subiu à presidência da república, chamou o falecido militar de herói nacional e convidou a viúva, Joseíta Brilhante Ustra, para trabalhar em sua equipe; ela recusou, mas ele a recebeu no Planalto algumas vezes.

Bolsonaro cortejou a extrema-direita militar e louvou os crimes de lesa-humanidade da ditadura mais de uma vez durante sua carreira política. Depois de Brilhante Ustra ter sido citado judicialmente pela família Almeida Teles, aconteceu um tumulto nos meios militares, que chegou ao governo federal e, em 2007, o Clube Militar no Rio de Janeiro fez um evento em defesa da extensão dos efeitos da Lei de Anistia aos agentes da repressão.

Militantes contra a violência do Estado e por memória, verdade e justiça protestaram; Brilhante Ustra saiu pela porta dos fundos e Bolsonaro soltou uma de suas frases emblemática: o "erro foi torturar e não matar", como se a ditadura não tivesse também matado. É um dos eventos em que os dois se cruzaram e que menciono no Ilícito absoluto:



Os dois se cruzaram no âmbito da extrema-direita militar e sua indisposição com o regime democrático. Não à toa, Bolsonaro passou a citar como seu livro de cabeceira A verdade sufocada, o compêndio de inverdades históricas de defesa da ditadura e ataque à esquerda e à democracia (nele, Vladimir Herzog é considerado suicida) que Brilhante Ustra publicou na época da propositura da ação pela família Almeida Teles.

Citei no livro trabalhos de Piero Leirner e de Marcelo Pimentel sobre como Bolsonaro foi escolhido informalmente como o candidato das Forças Armadas depois da reeleição de Dilma Rousseff em 2014. Na minha pesquisa, achei mais uma coisa: o apoio de Brilhante Ustra desde 2005 (uma carta aberta de Joseíta) a Bolsonaro como único representante das Forças Armadas no Congresso Nacional:




Aparentemente, Bolsonaro foi grato a esse apoio em uma época em que ele não detinha tanto prestígio, e em que outros colegas provavelmente não partiriam para o banditismo político para protegê-lo.
Anos depois, Amelinha e Janaína Teles gravaram depoimentos sobre a tortura no DOI-Codi chefiado por Carlos Alberto Brilhante Ustra para o programa eleitoral de Fernando Haddad em 2018; o programa gerou repercussão e logo foi tirado do ar pela Justiça Eleitoral a pedido da campanha de Bolsonaro. Ambas receberam ameaças anônimas.
O governo de Bolsonaro repetiu várias características da ditadura militar, algumas das quais listei no trecho abaixo, e marcou-se pelo negacionismo da ciência e da história.




Não por acaso, também dois órgãos que se ocupavam da justiça de transição, tentando remediar graves violações de direitos humanos da ditadura, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia, foram extintos pelo governo de Bolsonaro. Escrevei que isso parecia dizer algo sobre as Forças Armadas de hoje; copio o trecho, pois já disse isto tantas vezes:

[...] o engavetamento das recomendações da CNV, o golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018 parecem indicar algo além disso: a batalha continua, e as Forças Armadas mantêm seu ativismo pelo negacionismo histórico, isto é, pela negação dos crimes de lesa-humanidade da ditadura que comandaram.

Exatamente por isso, Bolsonaro continuava a ser uma ameaça à democracia. Francisco Assis, em 2018, na crônica para o jornal português O Público "Um canalha à porta do planalto", falou do caso da família Almeida Teles e do escândalo (ao menos para pessoas não fascistas) de o ídolo de Bolsonaro ser um torturador, um torcionário. Quatro anos depois, na campanha de 2022, Antonio Prata fez algo parecido lembrando de Janaína e Edson Teles, crianças diante dos pais torturados, em crônica publicada na Folha de S.Paulo. Escrevi no Ilícito absoluto que a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 parecia indicar que o "risco era muito real":




A tentativa de golpe de 2023 foi precedida pelo malogro em 2022 dos atentados planejados, agora sabemos. Os preparativos e a tentativa de assassinar o presidente e o vice presidente eleitos, Lula e Alckmin, e o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, seriam evidentemente apenas o começo: não é verossímil que o banditismo golpista parasse aí, pois já começaria em um patamar acima do primeiro de abril de 1964, que não buscou inicialmente assassinar João Goulart.
Viria enfim o trabalho "que a ditadura não fez", de matar trinta mil, segundo as palavras do Bolsonaro mais jovem, e provavelmente enganosas, pois o assassinato de indígenas bem pode ter chegado a essa cifra? 
É hora de tratar essa gente e os seus aliados, eleitos ou não, financiadores e/ou propagandistas como os inimigos da democracia que são. Falta saber se o país já possui instituições para isso, o que seria, de fato, uma novidade histórica, ao contrário de golpes de Estado, tentados ou efetivados.

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